Eu e Carol matamos Sherazade, e que todas as mulheres o façam

 

Sherazade sempre foi exaltada, especialmente sob o olhar ocidental, como uma referência de insubmissão feminina, ao utilizar sua imaginação para sobreviver aos abusos de um sultão. Segundo Joumana Haddad, no entanto, ela não rompe com o sexismo. Pelo contrário, o perpetua por trás de histórias que ludibriam e que maquiam uma transformação do sultão, um assassino de mulheres.

“O sultão, que, a cada noite, matava uma virgem de seu reino como vingança por ter sido traído por sua primeira esposa, fica curioso com as fábulas de Sherazade, o que, para o mundo ocidental e para os próprios árabes, significa que a personagem não é submissa”, palavras da atriz.

E desde quando temos que contar histórias para não morrermos? Desde quando agradar um homem para que nada de ruim nos aconteça é o certo? A questão está fora de tudo que temos conquistado atualmente, Sherazade deveria sim ter bolado um bom plano contra esse sultão infeliz, aí sim, teríamos uma considerável heroína!

O que me leva a escrever sobre “Eu Matei Sherazade: Confissões de uma Árabe em Fúria” é a qualidade do espetáculo sem fomento, sem patrocínio, aonde o fazer teatro acontece, com simplicidade e toques de refinamento, emanado de uma fonte legitimada do saber fazer cenas. É isso.

Não escrevo somente como mulher, embora eu tenha vibrado com a dramaturgia, mas sim com o olhar de uma espectadora que escreve para as artes cênicas. O espetáculo apresentado está no Teatro Municipal Ziembinski, localizado na Tijuca, que abriu portas com obras merecedoras de estarem nesse palco. E Carol merece estar, merece ensinar as demais mulheres que matar Sherazade é um dever, para virmos viver em plenitude.

Com um cenário elegante, a peça acontece. São véus em tom pastel nos quatro cantos da caixa cênica que descem das varas cênicas, o que me lembrou pilares, um tapete que nos leva aos persas de bom tamanho que preenche o espaço, excelente ideia. A iluminação acompanha a atriz durante as picardias da dramaturgia. Vermelho quando ferve a cena e assim seguimos. Como se isso não fosse suficiente, a oscilação da iluminação também cai muitíssimo bem, assim como os cortes do refletor, impactante. A iluminação confere cenas belíssimas, palhetas de cores primárias e ficam riquíssimas.

Eu posso afirmar também que há beleza na simplicidade de um figurino que marca bem o corpo da atriz e também coopera com a elegância estética da montagem. Tudo com um olhar feminino, bingo! Todas feras e requintadas.

A sonoplastia é um escândalo, Beto Lemos é o parceiro de palco da atriz, culminando em uma musicalidade de excelência, com uma convicção assertada dos ritmos e instrumentos. A classe permeia nas mãos do artista, que insere seu trabalho/feito na obra como um anjo musical.

O que dizer da atriz?

O espetáculo começou não chamando tanto a minha atenção, mas do além a atriz que é muito delicada me tirou de um lugar longe e me trouxe para perto dela, bem perto, evoluiu como se fosse uma hélice de avião para alçar o voo, fiquei ligada nela, apreciando aquela moça doce que atuava com voz de leão, tentando deixar claro que sua atuação estava para além das artes cênicas, estava mais para um grito de alerta, afinal sabemos bem as nossas condições no Brasil, o perigo que nos cerca todos os dias, com taxas altíssimas de mortalidade de mulheres no país.

Carol cresce em cena, literalmente. Há objetos de cena no chão, duas imensas tiras que me levaram a papiros, estes são cruzados por ela no palco, e depois de uma cena que provocou picardia nos héteros presentes, pois a cena mesmo sem nudes alguma, vem mergulhada em sensualidade, deitada sobre as tiras, a atriz entra no meio delas e se levanta, fazendo dos “papiro” uma saia, ao se levantar ela se apossa de uma feminilidade engrandecedora e parece estar com duas pernas de pau, pois cresce. Embriagante a cena.

Outra informação é a qualidade do português que parte do espetáculo, um português rico, bem revisado, parabenizo esse olhar que engradece ainda mais meu respeito e admiração por essa equipe criativa, a responsabilidade educacional deve estar em todo fazedores de teatro.

A diretora Miwa é uma pérola do teatro carioca, não há um artista que não queira estar perto dela, aprender com ela, por sua sofisticação cênica. Sempre com obras preciosas e significantes, se erra? Deve errar, eu que ainda não percebi.

Na verdade, eu já tinha assistido à peça online e fiz uma resenha na época, foi no Jornal Portal onde eu escrevia, tanto ela quanto Suzana Nascimento com “Mãe de Todos” e a “Alma Despeja” da atriz Irene Ravache, chegaram no audiovisual durante a pandemia e voltaram este ano para o presencial. Eu admiro as três pelo profissionalismo, força e coragem. São igualmente grandes. Se eu tenho que olhar para alguém no intuito de crescer profissionalmente, que seja para elas, pelo engajamento delas.

Detalhe, ocupando espaços sem fomento, dependendo do público, haja maturidade e confiança para os feitos de cada uma delas, aplaudo de pé e com os olhos brilhantes ao refleti-las em minha retina ocular.

Um texto real, uma história bela que permeia entre versos do inusitado Marques de Sade, com a “Filosofia da Alcova”, onde a atriz faz uma performance provocante, enebriadora aos héteros presente e nos presenteia com a beleza do prazer dos nossos corpos, um momento imagético que precisamos nos permitir. O toque próprio é um alívio que nós mulheres merecemos, risos.

“Joumana Haddad é poeta, jornalista e ativista de direitos humanos. Ela foi selecionada como uma das 100 mulheres mais poderosas do mundo pela Arabian Business Magazine por conta de seu ativismo cultural e social. Em 2021, estava na lista da ONG inglesa Apolitical como uma das 100 pessoas mais influentes na política de gênero.”

Nesse momento ela está no país de origem debaixo de bombas, ouvindo o barulho da morte que por sorte ainda não alcançou a vida dela. Isso mexeu comigo, a forma que ela diz ser vista pelo mundo, não mais como ser humana, mas como alvo, isso é doloroso. Quando eu era mais jovem, eu me perguntava: como o mundo deixou Hitler matar tanta gente? Hoje infelizmente eu entendo bem, as pessoas não se enxergam, como disse Joumana, apenas assistimos aos jogos econômicos, a vida não vale tanto, cruel é o passado, presente e futuro, afinal já mostramos que o extermínio de vidas continua entre nós.

Ao final da peça a atriz explica porque quela e eu matamos a Sherazade, quer saber? Vá assistir ao espetáculo!

Na semana passada ouvimos “Criança não é mãe, estuprador não é pai”, foram gritos contra o projeto de lei 1.904/2024, que equipara o aborto realizado após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio. Fico me perguntando que Sherazade é essa em nossas vidas? Falta em cada uma de nós menos hipocrisia e mais hashtags (#eujaabortei), mais Joumana em nós, certamente não haveria presídios para todas nós, estou certa disso, e digo mais, menos mulheres pobres morrendo por não terem dinheiro para pagar por um procedimento especializado.

“Porque as perguntas podem perturbar a calma sombria dos pântanos”, parte do texto que se assemelha a nossa condição atual…

Viva o teatro e suas verdades!

Sinopse

O espetáculo aproxima ocidentais e coloca em cena o feminismo de uma das protagonistas mais emblemáticas da literatura oriental.Até que ponto a realidade das brasileiras se distancia do mundo em que vivem as mulheres árabes? Esta é uma pergunta básica que guia a construção do espetáculo.

Sherazade sempre foi exaltada sob o olhar ocidental como uma referência de insubmissão feminina, ao utilizar sua imaginação p/sobreviver aos abusos de um sultão.
Segundo Joumana Haddad, no entanto, ela não rompe com o sexismo. Pelo contrário, o perpetua por trás de histórias que ludibriam e que maquiam uma transformação do sultão, um assassino de mulheres.
Joumana Haddad é poeta, jornalista e ativista de direitos humanos. Ela foi selecionada como uma das 100 mulheres mais poderosas do mundo pela Arabian Business Magazine por conta de seu ativismo cultural e social. Em 2021, estava na lista da ONG inglesa Apolitical como uma das 100 pessoas mais influentes na política de gênero.

 

Ficha Técnica

 

Livre adaptação de um livro de: Joumana Haddad
Dramaturgia: Carol Chalita e Miwa Yanagizawa
Idealização e Atuação: Carol Chalita
Direção: Miwa Yanagizawa
Direção Musical e Trilha Sonora Original: Beto Lemos Cenografia: Constanza de Córdova
Figurino: Tereza Fournier
Costureira: Georgina Moallak Loureiro
Iluminadora: Nina Balbi e Pedro Carneiro
Operador de Luz: Walace Furtado
Interlocução de Movimento: Laura Samy
Preparação Vocal: Sonia Dummont
Fotos: Vinícius Mouchizuki
Programação Visual: André Senna
Assessoria de Imprensa: Berê Biachi – Equipe D Comunicação
Produção Executiva: João Eizô Y Saboya
Direção de Produção: Sérgio Saboya e Silvio Batistela Realização: M S Documenta Produções Artísticas e Jornalísticas

 

SERVIÇO

Eu Matei Sherazade: Confissões de uma Árabe em Fúria
Inspirada na obra de Joumana Haddad
Dramaturgia e atuação: Carolina Chalita
Direção: Miwa Yanagizawa

Dias e horários: Sexta, às 20h | Sábado e domingo, às 19h
Teatro Ziembinski: R. Urbano Duarte – Tijuca, Rio de Janeiro
Ingressos: Garanta já o seu ingresso para a nova temporada no @teatromunicipalziembinski.rio no link : https://linktr.ee/eumateisherazade
Valor: R$50,00 inteira | R$25,00 meia
Classificação: 14 anos

Paty Lopes (@arteriaingressos). Foto: Divulgação.

 

 

 

 

 

Author

Dramaturga, com textos contemplados em editais do governo do estado do Rio de Janeiro, Teatro Prudential e literatura no Sesi Firjan/RJ. Autora do texto Maria Bonita e a Peleja com o Sol apresentado na Funarj e Luz e Fogo, no edital da prefeitura para o projeto Paixão de Ler. Contemplada no edital de literatura Sesi Fiesp/Avenida Paulista, onde conta a História de Maria Felipa par Crianças em 2024. Curadora e idealizadora da Exposição Radio Negro em 2022 no MIS - Museu de Imagem e Som, duas passagens pelo Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com montagem teatral e de dança. Contemplada com o projeto "A Menina Dança" para o público infantil para o SESC e Funarte (Retomada Cultural/2024). Formadora de plateia e incentivadora cultural da cidade.

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