Estamos livres, avisa o Grupo Galpão

Um ensaio sobre a cegueira. Grupo Galpão. Foto: Guto Muniz

 

Artistas e plateia, todos juntos no mesmo barco, não se deixe cair na tentação do mal, todos precisamos estar livres para seguirmos na estrada da vida. Essa é a mensagem do Grupo Galpão.

O Grupo Galpão é uma companhia de teatro originária do teatro de rua de Belo Horizonte. Fundado em 1982 por Teuda Bara, Eduardo Moreira, Wanda Fernandes e Antônio Edson, apresentou sua primeira peça, E a Noiva Não Quer Casar, na Praça Sete de Setembro, área central da capital mineira, em novembro do mesmo ano.

Os fundadores se conheceram em oficinas realizadas em Diamantina, durante o Festival de Inverno da UFMG. O grupo ganhou projeção nacional a partir de 1992, quando encenou Romeu e Julieta, de Shakespeare, em uma montagem típica de teatro de rua. A peça recebeu o prêmio do júri popular do Festival Nacional de Teatro de Curitiba e o Shell especial, em 1993. Já em 2000, tornou-se o primeiro grupo brasileiro a se apresentar no Globe Theatre, em Londres.

 

Sinopse

Uma epidemia de cegueira assola a cidade, privando seus habitantes de enxergar o mundo como antes. Tudo começa com um homem que, no trânsito, perde a visão repentinamente. A condição se espalha rapidamente e coloca à prova a moral, a ética e as noções de coletividade.

 

Teatro potente

No imenso palco do Teatro Carlos Gomes, o grupo estreia com um espetáculo de duas horas e meia, no qual artistas encenam, cantam e tocam diversos instrumentos, mostrando ao público toda a sua potência.

A narrativa inicia com um homem que fica cego e, ao visitar o médico, parece transmitir a doença. Como em uma pandemia, a cegueira se alastra, e todos os contaminados são conduzidos a um espaço recluso, onde são tratados miseravelmente, expondo a condição perversa do ser humano — condição que, infelizmente, conhecemos bem.

“Ah, mas é só teatro, Patrícia!” Não é só teatro, é advertência! Ou já esquecemos o cataclismo humano quando, nas enchentes do Rio Grande do Sul, comerciantes aumentaram o preço da água potável? É sobre isso: sobre em quem nos transformamos diante do caos, esquecendo que ele também pode bater à nossa porta algum dia.

Quando penso sobre o Grupo Galpão, a palavra que me vem à cabeça é soberania. Soberania artística. Isso se explica facilmente diante do espetáculo “Um Ensaio sobre a Cegueira”.

Trata-se de uma montagem de duas horas e meia sem figurinos suntuosos e nem cenário milionário. Vemos um grupo de artistas que nos define por meio de um texto contundente, corpo, voz e performances riquíssimas.

Não falo aqui dos patrocínios, que claro ajudam, mas da verdadeira riqueza: aquilo que é dito no palco. Se estamos diante de um grupo de pessoas como nós, em meio a um surto, por que apostar em figurinos requintados? Essa parece ter sido a pesquisa e o olhar do diretor e da figurinista.

O cenário dialoga com as cenas: mesas e cadeiras se transformam em diferentes elementos. Mesmo em um palco de trezentos e cinquenta metros quadrados, sem uma estrutura cenográfica grandiosa, o diretor conseguiu preenchê-lo por inteiro. Isso evidencia a competência de Rodrigo Portella, que não errou em nada.

Quanto à luz, temos outro espetáculo à parte. Refletores manipulados no palco pelos próprios artistas, que nos transportam a consultórios médicos ou nos fazem compartilhar da cegueira. Cada vez que um personagem era contaminado, uma iluminação forte no fundo do palco ofuscava os olhos da plateia, deixando-nos também com a visão embaçada. Não sei se foi intencional, mas funcionou. Sem falar nas cenas em que a luz destacava cada personagem em foco. Incrível! Os jogos teatrais aliados ao desenho de luz criaram efeitos fantásticos. Rodrigo Marçal e Rodrigo Portella foram aos céus e roubaram um pouco da lua para nós.

A direção musical de Federico Puppi foi novamente contagiante. Destaco uma cena em especial: em meio à detenção dos cegos, surge uma música latina. Parabenizo quem a trouxe, pois precisamos mais do que nunca nos conectar à nossa latinidade. Ao mesmo tempo, percebi referências eruditas, provavelmente composições do diretor musical, que cria como quem admira o desabrochar de uma rosa. Sempre magnífico! E ainda temos a musicalidade dos artistas em cena, como se unissem o útil ao agradável.

E já que falamos em música, falemos também em voz, nesse caso. Acho que jamais esquecerei o canto final do espetáculo, digno de louvores. Lydia Del Picchia parece apresentar a própria alma: ela explode em cena.

Aos artistas, cabe nosso mais profundo agradecimento. São como feras atrás da caça — e nós, espectadores, somos as presas, rendidos diante de sua força. A maturidade da atriz Inês Peixoto é notável, mas todos brilham de forma imensa.

Antonio Edson, Eduardo Moreira, Fernanda Vianna, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Luiz Rocha, Lydia Del Picchia, Paulo André, Rodolfo Vaz e Simone Ordones parecem nos dizer: “Somos artistas brasileiros e somos tão bons quanto qualquer outro no mundo.” E são!

O texto de Rodrigo Portella desnuda, no cárcere, o egoísmo e a crueldade humana. O dramaturgo toca sutilmente em questões da política atual e nos crimes contra a mulher — que, infelizmente, parecem crescer a cada dia. Isso é profundamente preocupante. A forma como o texto conduz a narrativa desperta a curiosidade pelo desfecho. O final é como se estivéssemos todos no mesmo barco: juntos, saímos da prisão. A força do povo e a liderança certa nos conduzem à vitória depois do mal. Foi assim que entendi.

Obrigada a JS Pontes, pelo convite, sempre tão queridos.

Ficha Técnica

Direção e dramaturgia: Rodrigo Portella
Diretores assistentes: Georgina Vila Bruch e Paulo André
Direção musical, trilha original e paisagem sonora: Federico Puppi
Cenografia: Marcelo Alvarenga (Play Arquitetura)
Figurino: Gilma Oliveira
Interlocução dramatúrgica: Bianca Ramoneda
Iluminação: Rodrigo Marçal e Rodrigo Portella
Adereços: Rai Bento
Visagismo: Gabriela Dominguez
Desenho sonoro, programação e mixagem: Fábio Santos
Assistência de direção: Zezinho Mancini
Assistência de figurino: Caroline Manso
Assistência de cenografia: Vinícius Bicalho
Construção de cenário: Artes Cênica Produções
Costuras: Danny Maia
Fotos: Igor Cerqueira e Mateus Lustosa
Registro e cobertura audiovisual: Luiz Felipe Fernandes
Comunicação: Letícia Levia e Fernanda Lara
Projeto gráfico: Filipe Lampejo e Rita Davis
Consultoria de acessibilidade: Oscar Capucho
Operação de luz: Rodrigo Marçal
Operação de som: Fábio Santos
Técnico de palco: William Bililiu
Assistente técnico: William Teles
Assistente de produção: Zazá Cypriano
Produção executiva: Beatriz Radicchi
Direção de produção: Gilma Oliveira
Produção: Grupo Galpão
Produção local no Rio de Janeiro: Caseiras Produções Culturais
Assessoria local no Rio de Janeiro: Stella Stephany e João Pontes (JSPontes Comunicação)

 

SERVIÇO

Espetáculo: Um Ensaio sobre a Cegueira – Grupo Galpão
28 de agosto a 14 de setembro, de quarta a domingo
Teatro Municipal Carlos Gomes – Praça Tiradentes, S/N, Rio de Janeiro
️ Ingressos: R$ 34 a R$ 80; experiências imersivas na bilheteria

 

Paty Lopes (@arteriaingressos). Foto: Divulgação.

Siga-nos nas redes sociais: @showtimepost

 

 

 

Author

Dramaturga, com textos contemplados em editais do governo do estado do Rio de Janeiro, Teatro Prudential e literatura no Sesi Firjan/RJ. Autora do texto Maria Bonita e a Peleja com o Sol apresentado na Funarj e Luz e Fogo, no edital da prefeitura para o projeto Paixão de Ler. Contemplada no edital de literatura Sesi Fiesp/Avenida Paulista, onde conta a História de Maria Felipa par Crianças em 2024. Curadora e idealizadora da Exposição Radio Negro em 2022 no MIS - Museu de Imagem e Som, duas passagens pelo Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com montagem teatral e de dança. Contemplada com o projeto "A Menina Dança" para o público infantil para o SESC e Funarte (Retomada Cultural/2024). Formadora de plateia e incentivadora cultural da cidade.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *