
Escrever sobre os espetáculos do artista Rodrigo França exige cuidado. Estamos diante de um nome que fez, faz e fará parte da história do teatro negro deste país. Um nome precioso, que abriu portas para muitos profissionais negros de excelência nas artes cênicas, antes invisibilizados. Além disso, ao falar dele, mencionamos um adaptador de textos, dramaturgo, ator e diretor — e, certamente, se buscarmos mais, encontraremos ainda outras funções. Afinal, quem conhece os desafios do teatro sabe que, para viabilizar uma montagem, nos transformamos em absolutamente tudo.
O teatro estava cheio — e, preciso mencionar, diverso!
Migrantes
O texto do premiado dramaturgo romeno-francês Matéi Visniec, dirigido e adaptado por Rodrigo França, coloca em cena uma montagem impactante, em consonância com o que temos visto nas notícias: questões sérias sobre migração e deportação, discriminações de todos os tipos e xenofobia.
Enquanto aguardávamos a abertura das portas do teatro, os artistas já estavam entre nós, trajados, quando uma voz ecoou:
“Nós temos fome! Alguém nos ajuda? O mundo desabou e eu precisei continuar em pé. Meu marido foi levado pela guerra — um som seco de explosão, e o silêncio depois. Desde então, sou só eu, meu filho… e esta vida que cresce dentro de mim. Estou fugindo com meus filhos sem saber onde vamos dormir ou o que vamos comer. A fome é uma presença constante, amarga, insuportável, mas é preciso seguir.”
Naquele momento, entendi o que seria a montagem Migrantes: tocar a nossa alma — ou, pelo menos, a daqueles que ainda a têm.
Sinopse
Migrantes é um espetáculo que coloca o público na pele daqueles que atravessam desertos e oceanos em busca de um futuro, expondo a brutalidade da crise migratória global. Com direção de Rodrigo França, a montagem combina narrativa fragmentada e ambientação sensorial, transformando o espectador em testemunha da travessia. A obra revela a hipocrisia de um mundo que prega liberdade enquanto ergue muros. Entre o trágico e o absurdo, a peça questiona fronteiras, pertencimento e humanidade, fazendo de cada cena um convite à reflexão e à empatia.
A peça estreou no Sesi Firjan, no Centro do Rio, e agora está em cartaz no Teatro Municipal de Ipanema, reformado recentemente pela prefeitura — uma conquista louvável, já que o espaço estava em condições precárias.
Ao entrar, também nos tornamos migrantes: o meu número era 003902927999, e dependia dele para salvar minha vida. Ali, eu e os demais éramos apenas números — sem mais, sem menos. Restava apenas a necessidade de sobreviver.
E assim a obra começa. No palco, a frieza humana se apresenta, revelando dores e desesperos ainda maiores do que imaginamos.
Fatos
Em 2019, o jornal francês Libération denunciou o tráfico ilegal de órgãos, mostrando como pessoas extremamente vulneráveis são levadas a atos desesperados para sobreviver. “Vender órgãos contra a pobreza” parece ser a tática desumana daqueles que lucram com o caos humano.
Em 2015, o jornal The Guardian estampou a foto de um menino sírio de cinco anos encontrado morto na praia de Bodrum, após um naufrágio na tentativa de chegar à ilha grega de Kos. Confesso que essa imagem permanece em minha mente até hoje.
E por que precisamos falar sobre isso agora? Porque ainda acontece — e porque empresas lucram com esse cataclismo humano, nos mesmos países que negam socorro às vítimas de um pesadelo desumano e lucrativo.
O espetáculo traz tudo isso, além da errância do homem que lucra com a dor alheia, emergida pelas guerras. Em uma cena, mulheres de perucas loiras e vestidos brilhosos apresentam produtos que simbolizam a degradação da vida. Entre eles, bastões que imitam batimentos cardíacos de imigrantes, sinais vitais de um homem morrendo no mar, ou de pai e filho tentando atravessar um túnel. Essa cena me despedaçou: a sonoplastia é dolorosa, impossível não se comover. Alguns riram na plateia — e percebi como estamos armados de desafeto.
A dramaturgia sonora e a trilha original, de Dani Nega, estão em perfeita harmonia com a encenação.
Falando em harmonia: os figurinos de Vania Ms Vee e a iluminação de Pedro Carneiro formam uma dupla impecável. O figurino é elegante, sem cores gritantes, com tecidos de caimento perfeito. A iluminação pousa sobre os trajes como se encontrasse neles um ninho confortável.
O cenário, assinado por Mauro Vicente, também impressiona: sofisticado e distinto, reproduz a estrutura de um navio — transporte amplamente utilizado no Oriente Médio por aqueles que fogem do próprio fim.
O elenco é formado por Alex Nader, Aline Borges, Anderson Cunha, Mery Delmond, Monique Vaillé, Paulo Guidelly, Sarito Rodrigues, Stella Maria Rodrigues e Tom Nader — artistas fortes e comprometidos em alimentar uma obra consistente e verdadeira.
Confesso que Paulo Guidelly me chamou especial atenção pela força de seu personagem. Sua interpretação me remeteu ao olhar histórico sobre o corpo negro: constantemente alvo de escárnio e escravismo. Ao vê-lo ajoelhado, limpando o palco/navio, senti o eco desse desconforto. Em cena, o personagem recebe propostas indecentes e, com respostas simples, desperta no público a vontade de dizer: “vem comigo, eu vou te ajudar!”. Mas aquilo era teatro.
Valéria Monã, uma das grandes diretoras de movimento do meu tempo, cria uma cena inesquecível: imigrantes em um barco dançando com corpos no mar.
A força do texto
O texto traz licenças poéticas que emocionam. Uma mãe que perde o filho afirma: “Mãe não enterra a esperança, a alimenta”. Quanta beleza e verdade.
Outra frase que me marcou: “Por que negros existem? Porque Deus criou o dia e a noite.” Simples e poderosa — quero dizê-la, um dia, aos meus sobrinhos.
Na cena em que Paulo Guidelly fala sobre a venda de órgãos para sustentar a família, ele expressa o desejo de “chorar com os dois olhos”, defendendo a ideia de vender córneas no mercado ilegal. Sua atuação é tão forte que nos convence de que a dor é real.
Tudo é profundamente humano. Um texto que exige empatia e nos conduz a uma catarse inevitável.
Diante do que testemunhamos no mundo, entendi que Migrantes levanta uma bandeira da humanidade — nossa, mas que deveria ser de todos. É olhar para o outro como se fosse a nós mesmos. A dor daqueles que fogem por necessidade deve ser sentida, não desprezada. Não é fácil deixar filhos, parentes, amores, a varanda onde plantamos flores, a escola em que estudamos, os vizinhos queridos. NÃO É FÁCIL!
Aprendi com um biólogo: quando algo nos ameaça, nos adaptamos, migramos ou morremos. Será tão difícil compreender?
Espetáculos como esse deveriam estar em festivais internacionais, para sacudir o mundo. É urgente existirem para todos.
De alguma forma, a peça me mostrou que, se eu posso comer um Big Mac, também posso — e devo — comprar uma bandeja de quibe ou esfiha daquele sírio na esquina. Porque, para ele existir aqui, precisa de nós, seus semelhantes.
Obrigada por isso, “Migrantes”!
SERVIÇO
“MIGRANTES”
Temporada: 07 a 31 de agosto 2025
Horário: Quinta-feira, sexta-feira e sábado às 20h; domingo, às 19h
Ingressos: R$ 60 (inteira) / R$ 30 (meia)
Link para compra – https://ingressosriocultura.com.br/riocultura/events/46909?sessionView=LIST
Local: Teatro Ipanema Rubens Corrêa
Endereço: Rua Prudente de Morais, 824 – Ipanema
Classificação Indicativa: 12 anos
Duração: 90 minutos
Instagram: @migrantes_teatro
FICHA TÉCNICA
Dramaturgia: Matéi Visniec
Tradução: Luciano Loprete
Adaptação e Direção: Rodrigo França
Elenco: Alex Nader, Aline Borges, Anderson Cunha, Mery Delmond, Monique Vaillé, Paulo Guidelly, Sarito Rodrigues, Stella Maria Rodrigues e Tom Nader
Diretor Assistente: Kennedy Lima
Direção de Movimento: Valéria Monã
Dramaturgia Sonora e Trilha Original: Dani Nega
Direção de Arte e Cenografia: Mauro Vicente
Iluminação: Pedro Carneiro
Figurinos: Vania Ms Vee
Visagismo: Diego Nardes e Lucas Tetteo
Camareira: Cacierly Tiengo
Assessoria de Imprensa: Marrom Glacê Comunicação – Gisele Machado e Bruno Morais
Fotos: Marcio Farias
Direção de Produção: Rodrigo França e Caio Ferreira
Produção Executiva: Deborah Oliveira
Realização: Diverso Cultura e Desenvolvimento

Paty Lopes (@arteriaingressos). Foto: Divulgação.

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