E as asas do meu texto, onde ponho? O assunto veio a minha mente depois que meu filho comentou que, há três anos, só escreve textos dissertativos-argumentativos, sem espaço para criação de um texto diferente, uma história de ficção ou um poema, por exemplo.
Ele está no Ensino Médio, em que o foco principal da linha pedagógica é a aprovação no Enem e nos demais vestibulares. Entretanto, mais jovem, em outra escola, experimentou a palavra como ferramenta lúdica de criação. Escreveu uma poesia que ganhou um concurso literário na escola. Escreveu outra que lhe rendeu uma publicação num jornal-encarte de O Globo para o público infanto-juvenil, para lá enviado por iniciativa de uma professora. Chegou a publicar, criança, um artigo sobre tartarugas no jornalzinho da escola.
Ele sempre foi voltado para as ciências exatas. Mas sempre foi instigado a ter experiências em outras áreas: música, literatura, esporte. Por isso, apesar de adorar a escola em que está hoje, a memória dessas experiências gerou a queixa pela perda do espaço criativo que sua escrita poderia ocupar.
Sabemos que a escola não tem como objetivo formar escritores. Mas se é lá que se estabelecem as primeiras relações com a escrita e se é um espaço em que um talento pode ser notado por um profissional da área, por que todas as aulas de redação do ano precisariam ser treinos para um mesmo tipo de texto, o argumentativo-dissertativo? Por que não podemos separar alguns momentos para o exercício lúdico da escrita? Para um poema libertar-se ou, quem sabe, uma história dramática? Quem sabe entre os alunos na sala um não se descobre escritor, poeta, romancista, só porque ousa mostrar, num ambiente seguro (a sala de aula capitaneada pelo mestre conhecido), um rabisco bem costurado de um texto? Quem sabe através desse processo criativo não se fortalecem relações, não só entre as pessoas, mas entre os alunos e o ambiente escolar? Sem falar que tudo pode ser aproveitado pedagogicamente. Na construção dos diferentes estilos, tanta coisa mais pode nascer, num ambiente mais rico em que se pode aprender, por exemplo, o uso prático daquelas regras gramaticais “chatíssimas”, as figuras de linguagem, os recursos estilísticos, a coesão textual etc.
E assim como a escrita, experiências mais amplas em diversas matérias, dando fôlego e espaço para o exercício da criatividade que, desenvolvida, só melhora o rito de aprendizagem.
Lembro-me de quando uma professora me disse: “que uso bom você fez desse advérbio”. Foi um detalhe pequenino na correção de um exercício que me motivou a querer, de novo, tentar impressioná-la com um uso melhor de outras palavras. Porque alguém olhara para dentro do meu texto e especialmente para mim, para os detalhes das escolhas que eu fizera. Isso foi significativo.
A descoberta de um talento aumenta nossa autoestima e muda a relação com os conteúdos que se aprende. Nesse momento de vida, traz um bem ainda maior: constrói uma identidade diante do grupo, permitindo o destaque de sua individualidade.
Não digo que se deva tirar o foco das aprovações se elas, de fato, são desejadas e necessárias para o acesso à vida acadêmica almejada. Mas lamento que isso monopolize o palco da maioria das relações pedagógicas, a ponto de deixarem-se de lado descobertas e experiências, numa idade que deveria ser destinada essencialmente a isso. São os gostos adquiridos e as habilidades reconhecidas que vão afetar, definitivamente, os caminhos para as escolhas profissionais que, tão cedo, serão feitas.
Se é na escola que se estabelece a primeira relação real com a leitura, com o entendimento da estrutura da língua e com a escrita, é testando os limites dessas relações que se aprende a gostar do mergulho nesses universos. Assim, são os professores de Letras os responsáveis pelo “ensinar a gostar” dessas matérias. Num ambiente ideal de trabalho, se suas aulas são motivadoras, aprende-se que livro pode ser uma viagem e não só um material didático; que língua pode ser para expressar ideia mas também que nos dá poder, já que saber comunicar-se é ferramenta das mais poderosas. Aprende-se, também, que escrita não é só argumentação, pode ser desconstrução; que não é só dissertação, pode ser arte; que não é só formalidade, pode ser jogo, brincadeira, e, ainda assim, ser coisa muito séria. Se esse contato se fizer de forma enfadonha, metódica ou repetitiva, morre o interesse.
Justamente na idade em que deveria haver diversos estímulos. Quando há menos responsabilidades e, portanto, há mais tempo e espaço para a experiência e para o erro.
Falo da escrita porque é meu nicho e a fala do meu filho me fez lamentar pelo ânimo desperdiçado. Mas qualquer saber, bem como a experiência artística, ainda que de forma amadora, pode permitir o contato com o que há em nós de divino, com a mais pura alegria, a vaidade mais inocente. Ainda que não sejamos escritores, quanto orgulho podemos sentir, por exemplo, a partir de uma frase bem elaborada, uma ideia original ou uma fala que impacte outro ser humano.
Escrever é ferramenta de persuasão e de poder. É válvula de libertação e de revelação. É registro de ideia e de sentimento, de fato histórico ou cotidiano. É conexão que nasce do silêncio. Às vezes grito, às vezes carícia. Devia ser bacana…e não só funcional.