O mal da ficção é que ela faz sentido demais. A realidade nunca faz sentido.
Aldous Huxley (1894-1963), escritor britânico
Nesta segunda parte do artigo que ora você(s) lê(em) caro(s) leitor(es), continuaremos com algumas sagas narrativas da mitologia grega clássica para, ao final da quarta parte, podermos refletir um tanto sobre algumas coisas que, especificamente, têm afetado, tanto quanto têm infelicitado, o Brasil e o povo brasileiro.
As palavras com as quais nos comunicamos têm sentidos primários, que bem podem ser modificados, assumindo novos significados, sendo, por esta razão, refuncionalizados. Muitas palavras nas línguas ocidentais possuem suas origens, senão unicamente no Latim e no Grego Antigo, como é o caso da Língua Portuguesa. A palavra “simétrico”, por exemplo, vem do Grego “syn” (junto; encontro; união), mais “métron”, (medida). Por formação aglutinativa, “simétrico” quer dizer alguma coisa como “estar junto e em harmonia”, “estar em simbiose”, “ser proporcional”, o que igualmente pressupõe, na boa leitura, uma interação e, em intepretação adversa, uma exploração, por assim dizer, posto que o não simétrico é o desproporcional. O que não é simétrico está, assim, em desarmonia com o Cosmos, ou seja, com a ordem, e o Universo helênico era, por definição, ordenado, o que era o mesmo que dizer harmônico.
Isto posto, a segunda história mitológica que vamos descrever, sinteticamente, conta as desventuras de Édipo e de sua família, até mesmo seus descendentes, como Antígona, sua filha, que desobedecer o Rei Etéocles, seu irmão, o qual guerreou pelo trono de Tebas contra outro dos irmãos, Polinice. Este último perdeu a guerra e morreu em batalha. Etéocles ordenou que o derrotado não fosse enterrado, muito menos com os rituais que deveriam ser dedicados a um príncipe. No mundo grego antigo, quem não era enterrado devidamente, estava condenado a vagar por 100 anos às margens do Rio Estige, por onde sua alma deveria ser conduzida ao Submundo que, como já vimos na primeira parte do artigo, era o reino de Hades. Caronte, conhecido como “o barqueiro do inferno”, conduzia as almas em sua embarcação fúnebre, apenas mediante os funerais corretos, e cobrava duas moedas de ouro, sobrepostas nos olhos dos mortos. Inconformada com a condenação eterna do irmão, Antígona decidiu, arriscando a própria vida, enterrar Polinice com as honras devidas e foi condenada à morte pela rebeldia e desobediência pelo irmão vencedor, Etéocles.
Os deuses do Olimpo, parecidos com o que relatam alguns sobre o Deus católico e judeu do Antigo Testamento (como pode ser constatado no Levítico, no Êxodo e no Deuteromônio), tinham muitas características humanas e suas imperfeições, como ciúmes e sede de vingança e seguiam ideias parecidas com a Lei de Talião. Esta última, compilada no Código de Hamurabi, Rei da Babilônia (período estimado entre 1.500 e 1.700 antes de Cristo), dizia que a cada crime, deve corresponder sentença e pena de igual gravidade e intensidade (que guarda semelhança com a posterior Terceira Lei de Newton, perceba-se); é o famoso “dente por dente, olho por olho”. Apenas a título de esclarecimento, Talião não foi uma pessoa, como muitos pensam até hoje, mas o conceito, criado por Hamurabi, sobre a necessidade de equilíbrio entre atos e consequências, especialmente, mas não só, no mundo político e jurídico-penal. Vemos, aqui, a concepção de Harmonia, a filha de Ares e Afrodite, conforme narrado na primeira parte desta sequência de artigos, aplicada no mundo humano.
Antes de Édipo nascer, Laio, que era, pelos conceitos atuais, homossexual ou bissexual (sendo importante ressaltar que, no mundo Grego, a relação amorosa entre pessoas do mesmo sexo não tinha a mesma conotação pejorativa da que, posteriormente, foi assumida no mundo ocidental e que até hoje, infelizmente, vige para muitos), tentou seduzir, sem sucesso, Crísipo, filho do Rei Pélope (que teria dominado vasta região do sul da Grécia e adjacências, daí a região ser conhecida como “Peloponeso”), sem sucesso. O rapaz, perturbado pelo assédio, teria se matado a partir desse ato do irmão de criação, já que Pélope fora criado por Laio como um filho. O Rei, então, declamou sua maldição de vingança: que ele não poderia ter filhos e, se os tivesse, o primogênito não apenas mataria Laio, como se casaria com a própria mãe e rogou aos deuses para que sua maldição não recaísse apenas sobre Laio, mas sobre sua eventual prole, se a tivesse. Certa noite, embriagado, Laio buscou relações sexuais com Jocasta e conceberam Édipo. Dada a previsão da profetisa do Oráculo, Laio, já como Rei de Tebas, mandou um empregado abandonar o filho à própria sorte na floresta, com os tendões dos pés devidamente cortados. Contudo, o pastor incumbido da tarefa não conseguiu executá-la e, narra a história, o garoto foi adotado pelo Rei Políbio e pela Rainha Periboea da cidade vizinha de Corinto. Ao tomar conhecimento da profecia, passada a puberdade, Édipo abandonou a cidade, achando que Políbio e Periboea eram seus pais e, por destinado, e desaviado, chegou às portas de Tebas, onde reinavam Laio e sua ainda muito jovem rainha, Jocasta.
Em um entroncamento, os cortejos de Laio e Édipo se cruzaram e, após ríspida discussão e briga, Édipo matou Laio, sem que nenhum dos dois soubesse de seus laços paternais e a primeira parte da profecia foi realizada. A notícia espalhada foi que o Rei morrera numa emboscada. Creonte, irmão de Jocasta, assumiu, interinamente o trono de Tebas. Ao chegar à cidade, Édipo ficou sabendo que a Esfinge, mulher gigante, com corpo de leão e asas de abutre, caçava pessoas, especialmente jovens e, uma vez capturados, lhes propunha enigmas os quais, não elucidados, condenavam o(a) infeliz à morte. Não obstante, se alguém acertasse alguma resposta, assim rezava a lenda, a Esfinge teria que se matar. Édipo acertou o enigma, a Esfinge se matou e, aclamado como salvador da cidade, Creonte ofereceu a mão de Jocasta em casamento, junto com o trono de Tebas. Édipo, sem saber que ela era sua mãe, tanto quanto ela não sabia que ele era seu filho, aceitou de bom grado e se casou com Jocasta, realizando, deste modo, a segunda parte da profecia.
Édipo e Jocasta tiveram quatro filhos e viveram em paz e com amor por 20 anos. Um incidente, entretanto, envolvendo o Oráculo de Tirésias, expos a história profética. Jocasta, desesperada, se enforcou e Édipo se auto-mutilou, perfurando os próprios olhos e vivendo e morrendo na miséria e na solidão, embora tenha tido um enterro digno de um monarca, por obra e graça do Rei de Atenas, o semi-deus Teseu, um dos muitos filhos de Zeus com uma mulher mortal, do qual Édipo fora amigo por muitos anos. Édipo se auto-aplicou o castigo porque, Lei de Talião, dizia, como ficou cego à verdade por muitos anos, assim considerou, embora não tivesse como conhecê-la, optou por cegar-se de vez; olho por olho, literalmente; eis uma possível origem dessa expressão popular.
Os pecados de Laio tiveram, pelos deuses olímpicos, sem remissão, penalidades posteriores, mesmo para quem nada fez, como foi o caso de Édipo, mostrando que, no Universo grego antigo, uma vez instaurado o caos, assim deduz Ferry (2009) há um tempo e ações corretivas para a vigência da nova ordem, com correções que se prolongam na cronologia da vida humana. A ordem, nesta concepção, não é restituída de imediato e estamos sujeitos às penalidades cabíveis pelo simples fato de sermos mortais e de estamos vivos.
Nesta segunda história, o que está em jogo são coisas como certo “destino natural” do ser humano, como se não tivéssemos domínio sobre nossas vidas, sendo comandados por algo maior que todos e que cada um. Muitos de nós ainda acreditamos em escrituras como se fossem, literalmente, a palavra de Deus e não a palavra de homens, que falam em nome de Deus, do Deus em que acreditam e creem estar com a verdade absoluta – o que os leva, em contraparte, a execrar quem não faz dela, a sua verdade. Essas pessoas não acreditam que o destino não existe como algo “natural” e pré-determinado, não acreditam que somos nós mesmos quem, individual e coletivamente, o fazemos, com nossas ações cotidianas. Além disso, a história de Édipo também aponta para o fato de que devemos ser menos cruéis conosco e não nos penalizarmos em demasia sobre consequências futuras de ações que, se hoje nos parecem erradas, na época nos pareciam corretas. Também é possível pensarmos, a partir da saga edipiana, sobre a ideia, expressa na Lei de Talião, acerca das consequências ruins de uma sociedade vingativa e que usa os famosos “dois pesos, duas medidas”, para lidar com diversas situações.
Nada como ponderação. Como dizia vovó, cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém. Ponderação e bom senso, além de mais empatia pela vida e sua diversidade. Na terceira parte deste artigo, conversaremos um pouco sobre essa temática, à luz mitológica das narrativas helênicas.
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia – histórias de deuses e heróis. 34.ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006
FERRY, Luc. A sabedoria dos mitos gregos. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2009
Carlos Fernando Galvão,
Geógrafo, Doutor em Ciências Sociais e Pós Doutor em Geografia Humana
cfgalvao@terra.com.br