Culturas, Identidades e Escolhas: um rasante nas existências humanas através de algumas de suas festas e tradições – parte 2 / As Culturas e os Celofanes

 

Culturas, Identidades e Escolhas: um rasante nas existências humanas através de algumas de suas festas e tradições – parte 2

As Culturas e os Celofanes

 

                                                                                                        Mais triste que um sonho triste, só a tristeza de não mais poder sonhar.                                                                                                                             Ditado Popular

Na parte 1 desta nova sequência de artigos sobre Culturas, Identidades e Liberdades de Escolhas, para muito além do massacre a que, cotidianamente, somos submetidos para sermos transformados em meras engrenagens da máquina de triturar seres humanos conhecida como Sistema Capitalista de produção econômica, para muito além de nossas condições alienadas do instrumentalismo escorchante que não nos permite desenvolver nossos potenciais humanitários, que nos retira a capacidade de sonhar e de realizar ao menos parte de nossos sonhos, como expõe a frase em epígrafe, realizei, para lembrar, um estudo teórico que pode ser lido na parte 1 e que será continuado nesta parte 2, para melhor situar as questões que passarei a tratar a partir da parte 3 desta seqüência, majoritariamente informativa, por descritiva, salvo na última parte, quando retomarei algo mais consistente em termos de abordagem teórica e formativa.

Temos sido submetidos, de muitos modos a situações vexatórias e cruéis; não raro, somos transformados em meras engrenagens da máquina de triturar seres humanos conhecida como Sistema Capitalista de produção econômica, para muito além de nossas condições alienadas do instrumentalismo escorchante que não nos permite desenvolver nossos potenciais humanitários, que nos retira a capacidade de sonhar e de realizar ao menos parte de nossos sonhos, como expõe a frase em epígrafe.

Em 12 de junho de 2022, publiquei, no Portal Central de Jornalismo, o artigo “Síndrome do Celofane: a humanidade translúcida”, quando estabeleci uma comparação entre uma folha de papel celofane e a condição existencial de muitos seres humanos. Em resumo, o papel celofane é uma derivação da celulose vegetal (celulose é o principal componente da parede das células das plantas) que faz dele, um objeto biodegradável (solúvel em água), flexível (facilmente manipulável) e translúcido (que deixa a luz passar, mas impede que, quem esteja a frente dele, veja com clareza o objeto que lhe está por detrás, posto o fato de que ele difrata a luz incidente, dificultando a formação de imagem reconhecível).

Por egoísmo e pela falta de empatia com o outro e com a própria vida, humana e do planeta, transformamos esse outro em uma espécie de objeto biodegradável (que se dilui nas miserabilidades da vida), flexível (que é manipulado para dele os poderosos retirarem proveitos próprios, até sugar todo hausto de vida) e translúcido (que acaba sendo, na prática, invisível aos olhos e às iniciativas privadas do capital, até mesmo às políticas públicas, mesmo aquelas que mantém as pessoas no nível da subsistência, posto que o lucro, que a Mais-valia, Material e Imaterial, vêm desse processo de superexploração). Esta invisibilidade deformante torna quem dela sofre, uma pessoa invisível para a sociedade, para as instituições públicas e privadas e, pior, até para a própria pessoa “celofanizada”, por assim dizer. Nas artes plásticas, quando uma figura é apresentada de frente e parece distorcida ou irreconhecível, temos a chamada Anamorfose e o mesmo termo é, por alguns, empregado na Biologia para designar um processo e evolução contínua de um ser vivo, sem estágios intermediários definidos. A “celofanização” que ora teorizo pode ser, de certo modo, creio, para usar um termo já consagrado, certa Anamorfização de muitas pessoas.

Temos vivido uma pandemia que chamo de Síndrome do Celofane; contra ela, não adianta isolamento social e não há vacina que dê jeito. Há, ou deveria haver, sensibilidade e consciência. O que acontece, porém? Por onde passa essa indiferença ou, até pior, esse desprezo pelo outro? Certamente passa pela desconsideração à liberdade de escolhas do outro de ser o que deseja ser, passa pelo ódio que muitos têm do fato do outro não ser um espelho que reflita sua própria imagem. A intolerância à diversidade e à pluralidade é algo que deveríamos repudiar, incansável e inquestionavelmente. Só podemos admitir uma única intolerância: contra a própria intolerância. Vivamos e deixemos viver.

Assim, repetindo as dúvidas do parágrafo acima e tentando produzir uma tentativa de resposta para o Brasil desses últimos anos (desde 2013, passando pelo golpe institucional de 2016, pelo governo golpista de Michel Temer e pelos quatro mais desastrosos anos de um desgoverno proto-nazifascista que nos infelicitou e o faz até os dias atuais – e ainda o fará por um bom tempo, infelizmente), porém, alterando-a um tanto, as dúvidas que me assaltaram e que me levou a escrever o artigo sobre a Síndrome do Celofane, ora aqui em parte reproduzido, foi: por onde passa o apoio às ideias escatológicas, autoritárias e desumanas como as que vemos por aí disseminadas, junto com uma miríade de mentiras, pela extrema direita? E por que a base deste processo é, para seus adeptos, como chamam, uma “guerra cultural”? É muito deste processo, com base nas culturas que, afinal, nos formamos, como seres (nem sempre) humanos, se por esta definição entendermos pessoas que, independente de etnia, sexo, ideologia ou religião, sentem e pensam o mundo de um modo solidário e afetuoso. Partamos do pressuposto de que nossas ações dependem de três fatores básicos, a saber:

1 – a percepção que temos da vida, o que envolve questões emocionais e sensitivas; é aqui que desenvolvemos a gentileza, a generosidade e a empatia pelo outro e pela vida, qualquer que seja, tenha o estilo de vida que ela quiser ter;

2 – a capacidade de processamento cognitivo, cuja base é, além da formação escolar e acadêmica que recebemos, a possibilidade de um tanto, mas não muito, independente disso, observar, analisar e interpretar dados e informações, transformando esses fatores em conhecimento aplicável e universalizável no dia a dia e

3 – o quanto de motivação temos para juntar os dois fatores anteriores e agir, concretamente, para que a vida seja mais feliz e agradável, não apenas para nós e/ou para os poucos que nos cercam, mas para todos os seres vivos deste mundo.

Quem sofre da Síndrome do Celofane, não raro, não é apenas ignorado pelos outros; não se torna, tão somente translúcido para a sociedade, mas, pior, como dito anteriormente, torna-se invisível para si mesmo! Quem mal se vê, e quem não é visto, não vive, apenas sub-existe. E tal condição lamentável e cruel aniquila a capacidade do sujeito, de sonhar; por vezes, nem sonhos tristes, como a frase em epígrafe expôs; ele simplesmente, não sonha e fica aprisionado em um presente recorrentemente desagradável, para dizer o mínimo, quando não, catastrófico mesmo. Antigamente, teorizava a jornalista e crítica literária francesa Viviane Forrester (1929-2013) no livro “O Horror Econômico” (Unesp, 2002): as pessoas lutavam para não serem exploradas; hoje (em 2002 e cada vez mais), muitos quase pedem para serem explorados, porque um número crescente de pessoas vêm se tornando disfuncionais para o Capitalismo distópico dos fluxos, da indústria 4.0 e do Capital-nuvem (mundo digital), inúteis e tidas como peso morto para a sociedade, para o Capital e até para o Estado, que deveria ampará-las, como a pressão para a queda dos investimentos em saúde, educação, meio ambiente, moradia, transporte e previdência pública (mas não, por exemplo, para os ganhos dos rentistas!) bem o atestam.

Esse é o mundo das pessoas dirigidas e trituradas pelo que chamo de Neocapitalismo Fluxional, onde não cabem todos os seres humanos, mas que é defendido por vários daqueles que nele estão inseridos ou que podem, ainda, nele se inserir. Esse é o mundo em que sonhar tem sido um privilégio reservado a cada vez menos pessoas, aprisionadas que estão por amarras invisíveis, acordadas em um pesadelo exploratório, alienante e castrador; algo como uma neo-escravidão. Como dizia a filósofa e economista alemã Rosa Luxemburgo (1871-1919), quem não se movimenta, não percebe as correntes que o aprisiona. Movimentemo-nos, pois.

O Neocapitalismo Fluxional é, por levar a esquemas de vida elitistas e alienantes da maioria, ainda que esta maioria nem sempre o perceba e mesmo o defenda (como o cachorro que defende a casa do dono, mas é posto para dormir na rua), é um sistema corrupto, mesmo que muitos a que a ele adiram e que o implantam, não roubem, diretamente; roubo de dinheiro público é só a forma mais visível de corrupção. Em rápido exemplo, um sistema que permite milhares de pessoas morrerem porque não as assistiu, na saúde pública, devidamente, é uma forma de corrupção; há muitos outros exemplos possíveis.

Como “fazer caber” todos os seres humanos em sistemas de vida variados, respeitando a diversidade cultural e ideológica de todos? Como termos sistemas mais justos e não, necessariamente, igualitários, porque iguais não somos, mas razoavelmente mais equilibrados? Eu disse TODAS pessoas, todas mesmo. Não é justo um sistema social que elege alguns, seja a título de uma inexistente meritocracia, no mais das vezes, apenas individual, de onde os sujeitos partem de patamares muito díspares, o que facilita enormemente a vida de uns poucos e praticamente inviabiliza a vida de todos os demais, seja a título do que for, das benesses sociais existenciais que pode sim, dignificar a vida de todos com um mínimo existencial. Temos um sistema equilibrado e justo que permite diferenças entre indivíduos e grupos sociais, sim, mas desde que TODOS (ou quase) tenham o essencial garantido. Qual é o mínimo? Varia nos espaços (de vivências), nos tempos históricos e nas culturas, mas creio que podemos, independente desses três fatores, chegar a certo consenso.

  1. moradia com saneamento básico e oferta de serviços de luz, gás e água tratada;
  2. rua asfaltada e não sujeita a alagamentos periódicos, em áreas seguras e ambientalmente recomendáveis e saudáveis;
  3. transporte público, confortável, seguro e regular, barato e de qualidade;
  4. segurança para ir e vir;
  5. um sistema judicial que medeie e/ou julgue os conflitos, sem distinção de classe social ou renda, com base na igualdade de direitos e de modo rápido;
  6. saúde e educação públicas, de qualidade e acessibilidade fácil a um sistema cultural geral e de entretenimento, em particular, também de qualidade, além de universal;
  7. uma sociedade que oferte empregos e/ou possibilidades de geração de renda com que as pessoas se sustentem, sustentem suas famílias e sustente os direitos básicos até aqui apregoados, sem precisar de “esmolas” do poder público ou da benemerência do setor privado que hegemoniza o capital.

O mais, cada um “corre atrás” e, neste caso sim, podemos falar em “meritocracia”, porém, frisando, este é um sistema de meritocracia social e não apenas individual, porque este último é, como qualquer um que não seja dos grupos de elites política e econômica pode comprovar no seu dia a dia, extremamente injusto se os indivíduos (é como pôr no ring de box, qualquer um de nós para lutar com o campeão mundial e dizer que, por meritocracia, se nós nos esforçarmos, podemos ganhar do peso pesado!) partem de pontos diferentes e desfavoráveis para a imensa maioria. Democracia não é apenas votar periodicamente, é todo um sistema de vida onde os cidadãos, TODOS, independente de cor, credo, gênero ou classe social, podem desfrutar de um mínimo de respeito, prazer, segurança, conforto e dignidade. Temos isso? Algum país, no mundo, tem, efetivamente, isso? Alguns se aproximam, mas…

O Sistema Capitalista, ainda mais na sua vertente conhecida como Neoliberal ou na que, no artigo sobre a Síndrome do Celofane e nesta parte 2, classifico como Neocapitalismo Fluxional, efetivamente, NÃO TEM como realizar a tarefa de justiça social ora em análise, nesta parte 2. Se tivesse, o mundo não estaria na crise ambiental e política, com profundo desprezo, na prática, aos direitos humanos e às liberdades civis, com as enormes desigualdades sociais que vemos e que, junto com a ascensão das falsas promessas dos extremistas, notadamente, da extrema direita. Este futuro revela perspectivas sombrias, mas não precisa ser deste modo. A vida humana tem que mudar e esta mudança é cultural e ideológica.

O filósofo argentino Eliseo Verón (1935-2014) ensinou que ideologias não se constituem em repertórios de conteúdos pré-fabricados, como muitas vezes se considera ou se quer fazer crer que sejam; ideologias, neste bom sentido, podem ser entendidas como espécies de gramáticas coletivas para o engendramento de sentidos e práticas sociais, sem excluir o tanto de subjetividade que toda ideologia carrega, posto ser, igualmente, resultado das interpretações que damos às culturas que nos forjam e que forjamos. Utopia? Sim, mas o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Huges Galeano (1940-2015), em outra bela lição, mostrou que Utopia não é um “não lugar” inalcançável, é um horizonte que, quando andamos em direção a ele, ele dá dois passos para trás; daí, andamos mais quatro passos para frente e o horizonte utópico recua, também, quatro passos. Então, para que serve a Utopia? Galeano respondeu: serve para andar para frente!

Nada é mais urgente do que mudar a cultura social, ou melhor, as Culturas Sociais e, portanto, as identidades e as escolhas de todos e de cada um de nós e esta mudança não pode ser feita na direção do ódio e da intolerância, mas do afeto e do respeito em relação ao outro, por mais diferente que ele seja de nós. A Síndrome do Celofane tem que acabar e mudanças das e nas Culturas mundiais são decisivas neste sentido e para que estes, e outros, objetivos humanitários tenham alguma consequência prática, além de belos, porém, muitas vezes, poucos produtivos resultados.

As ideologias, inquestionavelmente, movem o mundo, mesmo para quem nega este fato (e quem o faz, normalmente, ou está desinformado ou mal formado ou simplesmente lucra, de algum modo, com um tipo de “ideologia a-ideológica”). Porém, nem só de ideologias vive o Homem (embora seja parte essencial da sua “dieta social e política”). A Liberdade Negativa (vide a parte 1 desta sequência) do filósofo e historiador russo-britânico Isaiah Berlin (1909-1997), conforme exposto por Gray (2000) está no fato de que somos criaturas autocriadoras plurais, a partir de nossa faculdade de livre escolha existencial. E, em complemento a este raciocínio, recorrerei à interpretação do próprio John Gray (2000: p.88):

Quero aqui ressaltar que Berlin não acompanha Kant ao considerar a estrutura do pensamento humano, ou de conceitos morais, fixa e inalterável. Para Berlin, essa estrutura – composta por categorias e normas como justiça, verdade e assim por diante – é altamente abstrata e, portanto, pode se manifestar numa grande variedade de maneiras, cada uma das quais será histórica e culturalmente específica; e seu conteúdo nunca pode ser especificado exaustivamente, definitivamente, como Kant achava que poderia“.

Princípios e valores humanos, como verdade, certo ou errado, liberdade etc. ao contrário do que pregava o filósofo e geógrafo alemão Immanuel Kant (1724-1804), talvez não sejam categorias a priori dos seres humanos, postas as escolhas livres que, junto com Sartre, Berlin afirmava existirem no nosso cardápio de vida, por assim os classificar. Berlin, como lembra Gray (2000: p.88), acreditava que essa questão das livres escolhas, em associação com a enorme diversidade de sentimentos, percepções e, por conseguinte, ações humanas, não nos permite estabelecer categorias de pensamento que componham um juízo único para os destinos da humanidade; frequentemente, dizia Berlin, a complexidade e a pluralidade cultural no levam a conflitos que o autor chamava (como dito anteriormente) de “incomensuráveis” e, deste modo, tal fato não nos permite afirmar que para esta ou aquela sociedade, cultural e politicamente, existe, por exemplo, uma única solução correta para suas questões e problemas. Como disse Gray (2000: p.88):

A própria estrutura comum de pensamento que garante a objetividade do raciocínio moral também nos mostra que alguns conflitos morais são insolúveis pela razão. Este é o ponto principal do pluralismo de Berlin e é o que o distingue de todos os tipos de relativismo e subjetivismo, assim como de todas as doutrinas tradicionais de lei natural“.

No entender de Berlin, segundo Gray (2000: p.90), “a autocriação por meio do processo de escolha ocorre não só na vida individual, como também coletivamente. Os seres humanos se constituem não só como agentes individuais, mas como praticantes de diversas tradições culturais, com identidades coletivas distintas”.  Mais à frente um pouco, Gray expressa um complemento importante desta ideia de Berlin:

“Muitas das escolhas mais importantes que fazemos, podem, perante análise (…) não expressar decisões que tomamos, mas ser resumos ou precipitações de nossas experiências e das formas de vida às quais pertencemos (…) a autocriação da espécie humana é sempre plural em si mesma, nunca singular, de forma que a ideia de uma única história humana, a história da espécie como tal, é tão errônea e incoerente quanto a ideia de uma vida humana perfeita – o produto mais importante de seu pluralismo a subverter “(Gray, 2000: p.92).

 (…)

“A história, na concepção de Berlin, terá toda a imprevisibilidade, variedade e novidade que se esperaria de uma espécie autotransformadora. (…) Esta é uma concepção historicista da natureza humana. (…) historicista e não naturalista” (Gray, 2000: p.93).

A ideia de Berlin baseia-se no processo de autocriação plural humana, e mesmo que levemos em conta que o foco são as escolhas subjetivas, permeadas, indubitavelmente, pela pluralidade cultural coletiva, o historicismo liberal de Berlin é diferente, por exemplo, do historicismo marxista, baseado na materialidade dialética da constituição das forças produtivas, geradoras, para a libertação da maioria, obrigatoriamente, de uma consciência de classe. A concepção de Karl Marx (1918-1883) e de Friedrich Engels (1820-1895), como de outros autores que lhe são contemporâneos, ainda que pensem em linha ideológica oposta, é forçosamente Iluminista, crente em um caminho racional e inexorável para a humanidade, coisa que, como se percebe, vai de encontro à concepção liberal de autores como Berlin.

A vida, mesmo para os que não conseguem exercer a contento suas livres escolhas, como desejava Berlin, é, no final das contas, como pregavam o antropólogo Clifford James Geertz (1926-2006) e o advogado, economista e um dos fundadores da Sociologia Maximiliam Karl Emil Weber ou Max Weber (1864-1920), uma tecitura de significados, complexa e bem amarrada, em que seu artesão, o Homem, se auto-enreda.

Há várias correntes do pensamento filosófico que se debruçaram sobre a compreensão do ser e do objeto, não fosse esta uma das principais questões da Filosofia, até os dias atuais (se não a principal preocupação dos filósofos). Como não sou um filósofo de formação, embora o seja de coração, fiquemos com uma dessas vertentes, a que sigo. A relação originária nossa, com o outro, das transcendências dos Seres-Para-Si ou Não-seres, em seus projetos futuros de nadificação consciente simultâneo, é o que nos faz surgir na realidade extra-ser, a partir da criação, neste processo, da extensividade, da temporalidade e das demais percepções extramundas. É isso o que o filósofo, dramaturgo e jornalista francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) dizia sobre a natureza do corpo, como algo existente no meio do mundo; para ele, o corpo não é um instrumento para este nascimento do Não-ser (nós), mas com certeza, constitui a significação das relações deste Não-ser com o outro e, por conseguinte, com o próprio mundo (1997: p.451). Somos, nós mesmos, em nossos livres projetos futuros, a causa e a consequência de nossas afecções (influências e modificações), , tanto quanto somos o nosso próprio limite existencial e, igualmente, também somos aquilo que faz com que nos transcendamos; somos o que nosso posicionamento consciente perante o mundo nos faz ser, sem que o sejamos plenamente, senão, não poderíamos ser nada além disso. É o que Sartre chamava de “corpo em situação” (Sartre, 1997: p.451). Essa relação de mutualidade e simultaneidade das transcendências-transcendidas é, igualmente, o que faz surgir nas realidades extra-ser, é o que nos fazer ser, não apenas o “ser-aí-no-mundo”, mas o “ser-Para-o-Outro”. Para Sartre (1997: p.451-452),

o Para-si como nadificação do Em-si temporaliza-se como fuga para. Com efeito, transcende sua facticidade – ou ser dado, ou passado, ou corpo – rumo ao Em-si que ele seria se pudesse ser seu próprio fundamento. Isso pode ser traduzido em termos, já psicológicos – e, por isso mesmo, imprópios, embora talvez mais claro – dizendo-se que o Para-si tenta escapar à sua existência de fato, ou seja, ao seu ser-aí, como Em-si, do qual não é de modo algum o fundamento, e que esta fuga ocorre rumo a um porvir impossível e sempre perseguido, no qual o Para-si fosse Em-si-Para-si, ou seja, um Em-si que fosse para si mesmo perseguição; ao mesmo tempo, foge do Em-si e o persegue; o Para-si é perseguidor-perseguido.”

(…)

Esta fuga perseguidora não é um dado que se adicione ao ser do Para-si, mas o Para-si é que é esta fuga mesmo; tal fuga não se distingue da nadificação originária; dizer que o Para-si é perseguidor-perseguido é o mesmo que dizer que ele é à maneira de ter-de-ser o seu ser, ou que ele não é o que é e é o que não é. O Para-si não é o Em-si nem poderia sê-lo, mas é relação com o Em-si; é, inclusive, a única relação possível com o Em-si; cercado por todos os lados pelo Em-si o Para-si não pode escapar-lhe, posto que é nada e porque nada o separa do Em-si. O Para-si é fundamento de toda negatividade e toda relação; ele é a negação“.

Qual porvir, individual, você, querida leitora, você, prezado leitor, anda a construir, dia a dia, em suas transcendências nadificadoras dos seus Não-seres? Qual porvir nós todos, sociedade brasileira, população mundial, estamos construindo? Nem vou arriscar algum tipo de resposta para a primeira questão, seja porque é algo bastante subjetivo, seja porque de modo algum me imiscuiria nos seus projetos de ser, arriscando dizer, por exemplo, qual ser cada um deve ser, em cada momentum (termo usado pela Física quando se quer referir à quantidade de movimento de um objeto – ou de um ser, calculada pela multiplicação de sua massa pela velocidade) de sua existência transcendente. A liberdade de escolha de cada um deve ser respeitada até o mais profundo íntimo. Não obstante, vou arriscar um esboço de resposta para a segunda questão ora posta. Mas antes, em complemento às ideias acima, porém, ao falar especificamente do sentimento do amor, continua Sartre (1997: p,457-458):

Por que iria eu querer apropriar-me do outro não fosse, precisamente, na medida que o Outro faz-me ser? (…) é da liberdade do outro enquanto tal que queremos nos apoderar. E não por vontade de poder: o tirano escarnece do amor, contenta-se com o medo. Se busca o amor de seus súditos, é por razões políticas, e, se encontra um meio mais econômico de subjugá-los, adota-o imediatamente. Ao contrário, aquele que quer ser amado não deseja a servidão do amado. Não quer converter-se em objeto de uma paixão transbordante e mecânica. Não quer possuir um automatismo, e, se pretendemos humilhá-lo, basta descrever-lhe a paixão do amado como sendo o resultado de um determinismo psicológico: o amante sentir-se-á desvalorizado em seu amor e em seu ser. (…) O amante não deseja possuir o amado como se possui uma coisa; exige um tipo especial de apropriação. Quer possuir uma liberdade enquanto liberdade.”

Somos confrontados, por tudo o até aqui exposto e por outras razões, evidentes, todos os dias, o dia todo, com eventos, sentimentos, dados e informações que, se mantivermos a cabeça e o coração abertos às mudanças necessárias e/ou às permanências devidas, nos conduzirão para caminhos mais amenos, mais justos, mais democráticos e mais humanos, no bom sentido do termo, do que os que temos trilhado. Viver o amor e não o ódio; viver o diálogo e não a discordância radical e intolerante; viver a vida e não a morte. Qualquer projeto de ser, ou melhor, de Não-ser que se preze, eis meus esboço de resposta à segunda questão há pouco mencionada, não pode prescindir, de modo algum, dessas características e tal objetivo pode ser atingido de vários modos, por diversas construções ideológicas, através da mais ampla liberdade de escolha, a partir das mais diversas identidades culturais. É possível? É. Por que, então, muitos não conseguem? Cada um tem sua resposta, mas temos que debater com carinho e senso crítico, não como inimigos, porque a lógica dos inimigos é a da aniquilação, mas como co-partícipes da vida neste mundo, nossa casa em comum. Conseguiremos?

Bem, até aqui, na parte 1 e desta parte 2, o que fiz foi uma discussão filosófica sobre possíveis formas de apreensão e vivência de três conceitos essenciais ao bem viver da humanidade: as Culturas, as Liberdades de Escolhas e as Identidades. A partir da parte 3, a próxima, e até a penúltima parte, que ainda não sei qual número será, os textos serão mais diretos. Veremos um apanhado de festas populares que identificam determinados países e que tanto podem ser tidas como esta amálgama que mantém os povos unidos, como, secundariamente, embora de modo nada irrelevante, podem ser apreendidas, como fontes de geração de emprego e/ou renda que são muito mal aproveitadas e, no geral, acabam beneficiando mais os ricos, que podem viajar, e as agências de turismo, que operam os sistemas turísticos.

Na parte final desta nova longa sequência de artigos sobre Culturas, Liberdades de Escolhas e Identidade, retomaremos algumas poucas ideias mais consistentes do ponto de vista do debate de ideias, afinal, como dizia o nosso grande escritor (romancista e poeta) e jornalista Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), quem troca apenas pães, volta para casa com um pão; quem troca ideias, volta para casa com duas ideias. E, complemento, mesmo que a ideia do outro não o convença, se o diálogo for respeitoso, elegante e bem humorado, como é o ideal, a ideia do outro pode, ao menos, apontar alguns aspectos da sua ideia que você mesmo não tinha percebido ou, na pior das hipóteses, reforçar a sua ideia e os seus argumentos para defendê-la, pelo bom debate, coisa que eu e os demais articulistas deste Portal ArteCult tentamos fazer, com carinho.

Vamos trocar ideias, querida leitora, prezado leitor? Comente no final desse artigo!

  • GRAY, John. Isaiah Berlin. Coleção Mestres do Pensamento. Rio de Janeiro: Editora Difel, 2000.
  • SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Vozes, 1997.
  • VERÓN, Eliseo. A produção de sentido. São Paulo: Cultrix, 1980.

 

Carlos Fernando Galvão, Geógrafo, Doutor em Ciências Sociais e Pós Doutor em Geografia Humana, profcfgalvao@gmail.com

 

Carlos Fernando Galvão,
Geógrafo, Doutor em Ciências Sociais e Pós Doutor em Geografia Humana


profcfgalvao@gmail.com

@cfgalvao54

 

 

 

 

Author

Carlos Fernando Gomes Galvão de Queirós é carioca, Bacharel e Licenciado em Geografia (UFF), Especialista em Gestão Escolar (UFJF), Mestre em Ciência da Informação (UFRJ/CNPq), Doutor em Ciências Sociais (UERJ) e Pós Doutor em Geografia Humana (UFF). Autor de mais de 160 artigos, entre textos científicos e jornalísticos, tendo escrito para periódicos como O Globo, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e Le Monde Diplomatique Brasil, também foi colaborador do Portal Acadêmico da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) entre 2015 e 2018. Atualmente, escreve com alguma regularidade no Portal ArteCult. É autor, igualmente, de 14 livros.

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