Num momento em que ainda se discute a questão da aceitação do outro (e a própria aceitação) e o acolhimento da diversidade, evidenciando-se uma necessidade urgente de uma abordagem generosa e humanitária a essas questões, pulsa no meu coração a lembrança dos encontros vividos em recente viagem ao Marrocos.
Marrocos é, essencialmente, um país muçulmano, tendo em vista que o Islamismo é a religião predominante. Mas, tendo sido ocupado por mais de 40 anos pela França, possui influência europeia. Lá há uma lei civil e uma lei religiosa, diferente de alguns países muçulmanos em que a religiosa substitui a civil.
Armada das minhas ideias pré-construídas e sendo cristã, cheguei ao país cheia de curiosidade. Ressalto que, quando digo “ideias pré-construídas”, busco, intencionalmente, fugir da carga pejorativa da palavra “preconceitos”. Sempre que viajo demonstro respeito à cultura do lugar que visito e tento compreender as eventuais diferenças culturais.
Fiz todos os programas de uma turista: servi-me, com prazer, da culinária local, andei de dromedário, fiz compra no “souk”, visitei mesquitas, olhei o mar, andei de 4 x 4 no deserto, entrei em palácios lindamente arquitetados e enfeitados com mosaicos, arabescos, jardins, entre outras coisas. E o país passou diante dos meus olhos com toda sua riqueza e diversidade: deserto e oceanos; chão de cascalho e de pastagem; montanhas e planícies; cidade histórica e cidade cosmopolista; mesquitas e igreja católica.
Mas foi na gente do Marrocos que encontrei o espelhamento sobre quem sou ou sobre quem somos (ocidentais e, mais estreitamente, brasileiros). Ora isso ocorreu pelos pontos de contato entre as duas realidades, ora pelos dissonantes.
Sem perder a perspectiva de que nos apresentava um país com uma economia ainda em desenvolvimento, nosso guia de viagem não se limitava a, apenas, apontar monumentos e repetir informações sobre os locais. Era um homem culto e debruçava sobre as paisagens um olhar aguçado, crítico, mas, sempre, amoroso e otimista, demonstrando vínculo e paixão por sua terra, orgulho em relação ao potencial e às riquezas naturais que o país tem. Não nos escondia as lacunas sociais: o alto índice de analfabetismo e as falhas na saúde, por exemplo. Mas tratava com cuidado a imagem do país que amava e buscava desmitificar as falsas ideias que alguns trouxeram. Esse carinho pelo berço, em que pese os problemas existentes, foi a primeira coisa que me chamou a atenção porque aqui esse sentimento parece estar-se diluindo, diante dos desmandos da corrupção e dos problemas estruturais crônicos, o que nos leva, muitas vezes, a engrossar as manifestações de desencanto em relação ao nosso país. No entanto, a potência da nossa nação é tão grande e tão notável que me pareceu, então, ser inconcebível ignorá-la.
Minha atenção se direcionou, depois, para as pessoas que fui encontrando no caminho, a simplicidade nos trajes e nos cuidados com a saúde, a tentativa de ultrapassar as barreiras linguísticas para comunicarem-se conosco.
Essa simplicidade me remeteu, imediatamente, ao nosso próprio contexto. Mostrou-me como os problemas de países pobres, como o nosso, se repetem mundo afora: lacunas essenciais na educação e na saúde, as distâncias sociais e um sorriso aberto a postos porque a hospitalidade é que o de melhor possuímos para oferecer.
Ao contrário do que muitos podem imaginar quando se fala de uma cultura islâmica, as mulheres trabalham no Marrocos. E, segundo me disseram, todo o salário da mulher fica para ela, porque, culturalmente, é papel do homem ser o provedor da família. Entretanto, preciso dizer, tratei com poucas mulheres nos restaurantes ou nos estabelecimentos comerciais que frequentei. Os casais podem casar-se por amor, e não por arranjos, e também podem divorciar-se, o que é permitido pela lei civil mas mal visto pela sociedade em si, tendo em vista suas fortes raízes religiosas. E a poligamia não é mais permitida há mais de uma década.
Ouvi tais informações e pensei, guardadas as devidas proporções, em como tais conquistas ainda eram recentes mesmo na nossa sociedade. Na geração da minha mãe, por exemplo, poucas mulheres trabalhavam e, mesmo assim, havia funções que não ocupavam dentro da estrutura social que existia. Mesmo hoje, em que as mulheres invadiram o mercado de trabalho, ainda se discutem várias desigualdades, que vão desde a diferença salarial entre profissionais de gêneros diferentes até os limites de ascensão profissional do sexo feminino em determinadas empresas. É relativamente recente, também, a instituição do divórcio na nossa sociedade. E se, por um lado, o mundo ocidental, hoje, de forma geral, precisa repensar criticamente a fluidez das relações, incluídos aí os laços matrimoniais, por outro lado quantas pessoas de gerações que nos antecederam se mantiveram vinculadas a casamentos ruins, a relações até doentias, por medo de um julgamento social? Não foi há tanto tempo…eu me lembro, bem jovem, de saber de pessoas resignadas a um casamento como um destino selado de infelicidade. E, mesmo nos dias atuais, há quem tenha uma visão preconceituosa acerca da liberdade pós-separação, especialmente direcionada à mulher, invocando-se seu papel de mãe e de filha sobre suas carências ou interesses pessoais. Isso faz com que me pergunte o quanto, de fato, ainda precisamos caminhar rumo à modernidade. Existe distância entre os diálogos travados aqui e lá acerca dessa questão, claro, mas ela não é abissal, se posta em perspectiva.
Pode ser que estejamos um degrau acima na tal escada da modernidade mas não tão à frente, como nossa pretensão alardeia. Se me espanto ao saber que lá o homossexualismo é proibido e que uma pessoa pode ser presa por ser homossexual, no Brasil de hoje se reacende uma discussão acerca de a homossexualidade ser ou não tratada como doença. Deixando de lado o mérito da decisão que suscitou esse debate ou se ela foi ou não bem compreendida, já é evidente nas manifestações que provocou que há pessoas que comungam da ideia que, achávamos, estaria ultrapassada a essa altura. No nosso Brasil. No século 21. No seio de algumas igrejas e de determinados grupos sociais.
Não pretendo comparar os dois países. Não tenho conteúdo cultural profundo para fazê-lo e minha passagem por lá foi turística. Quero dizer, apenas, que a viagem me fez pensar sobre mim, sobre nós, e reforçou a ideia de que o que o que gera preconceitos ou desentendimentos não passa, meramente, por sermos muçulmanos ou cristãos, orientais ou ocidentais, negros, índios ou brancos, mas por nossa humanidade em si. Porque possuímos um lado selvagem em essência que, paradoxalmente, se equilibra com o que há de divino em nós. É a nossa humanidade que permite interpretar ou distorcer o contexto do mundo em que vivemos, de acordo com a educação que recebemos, com os medos que alimentamos ou com o grau de satisfação das nossas necessidades básicas. É o desequilíbrio em nós que abre espaço para conflitos, seja sob pretextos nobres, seja por ganância ou poder.
Mantive-me cerimoniosa nas relações que estabeleci, especialmente por não saber os limites aceitáveis, por exemplo, na relação entre homens-mulheres dentro daquela sociedade. Um outro guia local me perguntou o que eu fazia para viver no Brasil e se eu tinha família. Disse a ele que era separada e tinha um filho e ele, muçulmano, tratou a informação de maneira gentil, elogiando minha inteligência e a elegância do meu comportamento. Na superficialidade do nosso contato de um dia, caiu por terra a reação esperada em razão de sua crença religiosa: uma reprovação. Diferente disso, ele me ofereceu um elogio. A partir da minha resposta sobre minha profissão, conversamos, superficialmente, sobre o Judiciário e sobre as leis trabalhistas. Pouco tempo depois, entramos numa fábrica onde se faziam mosaicos lindíssimos, que enfeitam paredes, mesas e objetos de decoração. No local, que também é uma escola, só trabalham homens. Caminhamos pela oficina, ciceroneados por um rapaz que explicou todo processo de montagem de uma peça. Aprendemos a valorizar o trabalho daqueles homens, mas era impossível, provocada pela conversa anterior, não notar as condições ruins em que trabalhavam, sentados no chão de cimento, sob tetos baixos nas abafadas divisões da oficina. Foi a primeira vez em que o forte calor africano me incomodou, quando pude sentir a pressão do ar pela ausência das brisas. Sem proteção para as vias respiratórias, alguns estavam cobertos pela poeira da raspagem da cerâmica: os cabelos, os rostos, as roupas. Reconheci no trabalho que faziam uma delicadeza absurda. Enchi-me de ternura por eles, nem todos receptivos. Para um deles, tão jovem como meu filho, disse que o que produziam era mais do que desenhos de cerâmica; era arte. A língua era uma grande barreira: ele sorriu mas não me convenci de que me entendeu plenamente.
Senti-me numa situação privilegiada só por estar ali. Vindo de um país pobre também, em que se repetem as situações de injustiça social, ainda que em menor grau nas cidades mais ricas, sou alguém que pode estudar, pode criar suas chances na sociedade e pode ter condições para ir a um outro país e viver a irreal rotina de uma turista numa sociedade de contrastes: se há grandes palácios, há ambientes insalubres; se as relações entre homens e mulheres se estabelecem, predominantemente, à luz das relações religiosas, há leis civis, vê-se a mutação e o impacto da modernidade na estrutura dessas relações.
Uma mulher caminhava diante de nós, os braços cobertos sob o forte calor e a cabeça envolta num lenço azul, trazendo pelas mãos a filha jovem, vestida como qualquer menina ocidental, com os cabelos soltos, um batom suave nos lábios, uma calça jeans e uma blusa de malha. Caminhavam juntas e o guia não perdeu a oportunidade de apontá-las: “Aqui se misturam as influências. É normal. Essa filha não deve ser da mesma religião da mãe”. Comento com ele que, de fato, já tinha visto uma família inteira, toda diferenciada: uma mulher de burca, uma só com os lenços e outra sem pano algum que lhe cobrisse a vestimenta.
Como disse, as pessoas me interessaram mais do que tudo. A alegria com que recebiam os turistas e como brincavam de forma respeitosa com as idiossincrasias das nossas diferentes culturas. A busca do ponto em comum. Que foi, por sinal, o que meu coração fez desde sempre. Estava cheia de empatia pelas mazelas que comungávamos. Mas eu estava mesmo deslumbrada pelo que era diferente. Não só materialmente – como nos detalhes da belíssima arquitetura marroquina que fotografei sem parar – mas também no campo das idéias.
Lembro-me de dois momentos específicos em que me encantei pelas ideias.
O primeiro momento foi quando o guia da cidade local nos disse que as pessoas se cobriam porque, desse modo, todos se igualavam. Por baixo das vestes, dos lenços, podia estar uma pessoa ricamente vestida, mas isso só se revelaria em ambientes íntimos, fechados. Na rua, todos eram iguais para não despertarem-se os sentimentos que levavam à infelicidade: ganância, cobiça, sensação de injustiça social. Eu, que sempre ouvira falar do cobrir-se como evidência de repressão ou de interdição direcionada à mulher, achei interessante o comentário. Na verdade, essa fala encontrou ressonância em outras evidências. As casas com ornamentações luxuosas, arquitetura primorosa, pátios internos, são, por fora, na maioria das vezes, muro e porta modestos. Só quando entramos, podemos ver a dimensão da sua estrutura. E, às vezes, há outra e outra estrutura escondida dentro da primeira, o que é um deslumbre para os olhos mas, de fora, jamais poderia suspeitar-se. Essa lógica é o inverso do que temos atualmente nas sociedades ocidentais. Não só ostentamos o amor que recebemos, as viagens que fazemos, as oportunidades, os encontros, os passeios etc, como ostentamos até o que não temos, fazendo parecer que o temos. Por exemplo, gente que tenta aparentar em redes sociais uma constante felicidade que, no fundo, sabemos que não se sustenta: todos temos dias bons e dias ruins.
O segundo momento ocorreu ao visitar o Palais Bahia, em Marrakesh. Lembro-me que o guia que esteve conosco por toda a viagem percorreu com as mãos as inscrições de uma parede e foi-nos mostrando “aqui há o desenho de uma flor; aqui há uma frase do Alcorão”. Leu a frase em árabe, que tinha algo a ver com desejar-se boa saúde aos que viviam e aos que frequentavam a casa, e daí partiu para a explicação relativa a algo que estaria no Alcorão. Foi quando disse sobre as sete camadas de céu, acima das quais estaria Alá, que meus olhos se encheram de lágrimas. Era lindo, poético, literatura na essência (independente de ser crença ou realidade, de fato). Era uma fala repleta de amor e generosidade. Emocionei-me, também, porque acredito que todas essas concepções nascem do que há de divino no Homem e também da nossa necessidade, em qualquer cultura ou em qualquer credo, de estabelecer conexões com Deus e de buscar em nós a espiritualidade. Até mesmo entre ateus, em que o termo “espiritualidade” se redefine e não está ligado ao viés religioso, mas ao alimento da mente/do espírito. É esse contato com nossa espiritualidade que dá sentido ao mundo, que equaciona tudo que há nele de contraste, de discrepância, de imponderável e que nos dá uma razão para estarmos aqui, nesse exato instante, habitando esse mesmo planeta.
Perdemo-nos nos programas que fizemos, nas coisas que compramos, nas paisagens que paramos para admirar. Mas o que eu trouxe da viagem foi a empatia pelo outro, a emoção pelas conexões que pude fazer, o reconhecimento da minha ordinária existência, e, principalmente, o impacto que tanta diversidade causou em mim, pelo que me trouxe de conhecimento sobre o outro e sobre mim mesma. Fiquei admirada por algumas concepções que não sigo mas cuja beleza reconheço; fui crítica ao que não fazia sentido, sem perder a perspectiva de que, na minha própria sociedade, muitas coisas não fazem sentido para mim; fiquei grata pela minha condição humana tão comum e, ao mesmo tempo, tão privilegiada que me permitiu estar ali; feliz pela confirmação daquilo em que acredito: entre os diferentes, pode haver atração e admiração. A diferença não é e nunca deveria ser um elemento de segregação porque o outro nos empurra a novas perspectivas que podem alterar ou podem também reafirmar as que tínhamos anteriormente. Porque o outro nos enriquece. Porque aceitar e ser aceito é um exercício prazeroso. Fiquei grata por também ser entendida nas minhas diferenças, por estar aberta às dos outros; grata pelas conversas que tive, pelos gestos de generosidade e pelos sorrisos abertos que recebi.
O efeito mágico dessa convivência foi impregnar o meu olhar de carinho. Ao ver famílias inteiras andando sobre uma mesma moto em Marrakesh, só conseguia pensar em como o menino espremido entre o pai e a mãe levaria para sempre aquela lembrança vida afora: o calor dos corpos, a proteção dos pais, a brisa agitando o lenço da mãe contra seu pescoço. Ao cruzar uma aldeiazinha na saída do deserto, o coração preenchido pela imagem das muitas crianças pobres que se espalhavam na rua e acenavam para os carros, os olhos brilhantes pela novidade, alguns pequeninos carregando coisas para suas casas, já na função de ajudar, e o beijo que um deles nos lançou, as mãos agitadas no alto, a boca aberta com os dentes brancos contrastando com a pele suja de areia. A alegria do ajudante que seguiu nossa caravana de dromedários e gritava “Rio! Brasil!” para provocar nossa reação. O maleteiro do hotel em Casablanca, que vinha correndo (literalmente) quando chamavam seu nome e sorria largamente para nós, dizendo que torcia para o Flamengo. Os judeus que moram no bairro ao lado de um palácio governamental em Fez, uma simbologia da proteção do Governo às diferentes crenças que coabitam no país. Os homens que andam de mãos dadas nas ruas porque possuem laços de carinho e amizade. O vendedor do “souk” que usou três línguas para dizer-me “poveri también; precio bom” e juntou as condições econômicas dos nossos países para vender-me uma tartaruga de madeira. A delicadeza das senhoras que me vestiram de noiva para participar, de surpresa, num show típico para turistas, e que não falavam nenhuma língua em comum comigo mas deslizavam suas mãos carinhosamente sobre meus cabelos, meu rosto, e tinham calma e doçura no olhar. O rosto do nosso guia de todo dia que se acendeu, dizendo que a Alemanha era linda porque lá havia bibliotecas imensas, com muitos andares, e isso me alegrou porque nossas almas se parearam no amor pela cultura. E aquela que é minha saudade maior: suas orações, discretamente feitas no banco em frente ao meu, no ônibus, em voz baixa, entoadas, que eram música de fundo para as imagens que se alternavam na estrada e me traziam um sentimento profundo de paz e a sensação de habitar um mundo seguro e generoso.
Carioca e sinestésica como sou, quis abraçá-lo no final mas, em respeito, apenas apertei as mãos do nosso guia na despedida, desmanchando-me em agradecimentos. Ele me disse “vai com Deus” embora O chame de Alá, o que interpretei como mais um gesto carinhoso e amigo. No fundo, acho que os dois sabemos que, se seguimos diferentes profetas (Cristo e Maomé), nosso deus é o mesmo deus e essa terra é regida por Ele. E que, acima dos sete céus, Ele sorri feliz quando, por exemplo, um homem muçulmano e uma mulher cristã (que têm realidades tão diferentes e habitam países tão distantes) se encontram num ponto da Terra e apertam as mãos com respeito e carinho um pelo outro, porque o mundo que Ele idealizou é rico em diversidade mas possui uma espinha dorsal maravilhosa: o Amor que aproxima e une os homens.
No próximo texto, volto para o tema desta coluna: Literatura. Mas essa experiência não queria deixar passar.
ANA GOSLING
A autora realizou esta maravilhosa viagem através da empresa AMS Turismo.
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Muito bom seu artigo valeu