Muitos brasileiros, arrisco a dizer que a maioria, nascidos entre os anos 1920 a 1970, principalmente aqueles do interior, tiveram contato, nas primeiras leituras, com o mundo mágico, rural e lúdico de Monteiro Lobato. A vida como ela era nos interiores foi retratada pelo escritor, quase à maneira de um cronista. Está em suas obras a família matriarcal branca, a negra de estimação, cozinheira sábia no que diz respeito ao folclore e às lendas, o negro cativo na lida com as criações, e outros personagens oferecidos ao universo infantil, inventados ao sabor das crenças.
Recentemente, o autor foi acusado de racista e preconceituoso, ao se analisar mais detidamente algumas passagens, frases, e mesmo a postura de certos personagens. Foram pinçadas falas, por exemplo, da boneca de pano Emília:
“Parecem-me muito grosseiras e até bárbaras – coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto, e não gosto!”
No calor desta discussão, em que o autor foi muito atacado e bastante defendido, lembrei-me de um fato corriqueiro, mas muito significativo.
Primeiro, uma ressalva: venho do interior de Minas e, mesmo não me dando conta durante a infância e adolescência, convivi com tudo isso, os livros de Lobato, a constituição social e familiar como descritas pelo autor e o preconceito velado.
Já no Rio de Janeiro, pai recente, convidávamos a filha do porteiro, mais do que tudo um querido amigo, para brincar com nosso filho, tanto na casa deles, como em nosso apartamento. Os dois se davam muito bem, ela uns dois anos mais velha. Dentre as brincadeiras, um tempo era dedicado à leitura. Deixava que eles folheassem os livros, imaginassem a história, ou criassem cada um a sua e só então lia para os dois.
Numa dessas, a amiga, ouvinte atenta e participativa, no momento de ir embora se virou, e com aquele olhar infantil flutuante, mandou na lata:
“Por que nunca tem ninguém como eu nessas histórias?”
Disse que ia procurar e da próxima vez mostraria a ela. Promessa ingrata de ser desempenhada. Passamos uma semana vasculhando livrarias, bibliotecas, casas de amigos e, sinceramente não consigo lembrar se encontrei algum.
Comentei, na época, com professoras, que se apressaram a indicar alguns títulos, estrangeiros ou brasileiros, mas nada que apresentasse crianças negras como protagonistas, ou até mesmo no mesmo nível de importância dos pedrinhos e narizinhos.
Durante todos estes anos, lá se vão trinta, sempre atento, encontrei alguns. Mas, finalmente, e antes tarde do que jamais, vejo o blog “A Mãe Preta” listar cem livros infantis com meninas negras.
Vontade de reencontrar Juliana e contar pra ela todas as cem histórias.
https://100meninasnegras.tumblr.com/