É uma pena a derrota do Brasil ter ofuscado o lindo gol de Neymar. Lembrei-me, de novo, do meu pai. Ele sempre dizia ser tendência chutar em cima do goleiro. O goleiro cresce diante do jogador e puxa, como um imã, a atenção para si. Não à toa suas roupas são coloridas: estratégia para roubar o foco por segundos e atrapalhar a definição de uma jogada. Um jogador bem treinado sabe que não se chuta de primeira quando o goleiro sai e corre em sua direção. Dribla para o lado, matando o goleiro, depois de ter deixado o gol. A rede fica livre para o chute e a consagração do atacante. Não sei. Nunca joguei futebol. Mas de tudo me lembrei, por segundos, quando vi a movimentação de Neymar e o gol, antes de o sonho da classificação nos escapar num lance seguinte.
À noite, recebi amigos. Uma amiga preparou uma jarra de água aromatizada, que adquiriu um tom levemente rosado com a mistura dos ingredientes. A água, a cor e o gelo me transportaram à casa da avó paterna onde havia uma poncheira, com concha e copos combinando com a jarra principal. Criança, achava lindo vê-la cheia do ponche preparado pela tia, com as frutas boiando no líquido avermelhado. De novo, uma cena me transportava a uma outra época, de memórias ternas.
Pelo que seremos lembrados? Pelo improvável, parece-me. Não só pelo perfume, pela música favorita ou pelo autor preferido. Também pela antítese do que gostamos. Por um olhar ou um sorriso. Pelo anúncio de tevê que nos faz rir ou por um ditado sempre usado. Mais do que pela tese ou pelo artigo publicado, por ter trazido um vinho bom ou contado aquela piada. Por estar ali naquele momento difícil, ainda que por acaso. Mas por não ter ido embora. A verdade é que não sabemos o que de nós fica no outro. Nem o outro sabe. Claro, recorda-se o que foi marcante. Mas surpreende saber-se como a mente associa pequenas irrelevâncias a sentimentos significativos.
Ouço Celine Dion no rádio, pela manhã, e me pergunto onde anda o amigo que detestava aquela canção de que enjoamos no passado. Preparo uma torta fria e penso na minha mãe, que a fazia nos Natais, para a família. Testo a posição da flor nos meus cabelos e lembro a moça de cabelos encaracolados, soltos, jogados para frente e para trás, de arco florido. Onde estará, sumida das aulas?
Coisas que nos escapam à consciência podem, inconscientemente, associarem-se a um universo de recordações. Uma frase, uma imagem, uma expressão, um gol podem ser um gatilho. Parecem desimportantes mas nos trazem momentos específicos, saudades, pessoas, sentimentos. E nos assaltam no meio do dia, entre os intervalos do jornal ou ao volante do carro, provocando um trançado de emoções.
Vê o Marrocos? Classificou-se para as quartas-de-final. Mando felicitações para o guia que tive quando andei por lá, pela conquista da seleção. Ele agradece, contente, e me envia uma figurinha: um menino segurando a bandeira do seu país. Dormirei com os arabescos e mosaicos da arquitetura na mente. Terei a areia cenoura do Saara à frente dos olhos, quando fechar os olhos
É um privilégio os anos avançarem e colecionarmos lembranças afetivas. Elas voltam, nessas espirais de memórias. Que possamos sempre reviver as boas.
ANA LÚCIA GOSLING