A vida não é uma conta corrente

A vida não é uma conta corrente

 

“Eternidade: pois tudo o que é nunca começou.

Minha pequena cabeça tão limitada

Estala ao pensar em alguma coisa que

Não começa e não termina – porque

Assim é o eterno”.

(Clarice Lispector[1])

 

Desde nossa mais remota memória da história, enquanto humanidade, temos algumas perguntas ligadas à nossa existência que estão vivas até hoje. Mas tudo bem, pois como nos diz Fernando Pessoa, as questões e as dúvidas nos põem de pé. O que nos levanta, metafisicamente, não é nossa coluna vertebral, mas nossas indagações. Para o poeta o sinal de interrogação se assemelha ao desenho de uma coluna.

Na História da Filosofia clássica da Antiguidade Grega, há um consenso de que os primeiros filósofos, naquela região, surgiram em Mileto[2], terra jônica, com Tales[3], no século VI a.C. Os milésios inauguraram um inédito modo de reflexão sobre a natureza (do grego φύσις = phisis) e sua origem. É a tal busca da άρχή (arkhé) ou o começo, princípio, desta natureza. Aqueles pensadores estavam interessados na busca por uma explicação que não fosse pelo viés mitológico, que predominava até então. Eis portanto a pergunta milenar: qual o começo de tudo? Uma questão que não tem uma única resposta e está longe de convergir unanimidade. E também não se esgota.

Para aqueles primeiros filósofos, que estavam também estreando um modo de investigação científica, de construção de teorias que fossem capazes de explicar a origem das coisas da phisis a partir de elementos da própria natureza, afastando-se assim da explicação de origem a partir das deidades. Para Tales, por exemplo, a água era o elemento que justificava o começo de tudo[4].

Mas o importante a se destacar aqui é que pela primeira vez na história do pensamento havia um debate racional a partir do λόγος (lógos) para se explicar e se entender o começo da phisis. Para ajudar-nos a entender este ponto de vista, o professor e historiador de Filosofia, Jean-Pierre Vernant, em seu livro[5] As origens do pensamento grego afirma que:

“com os milésios, pela primeira vez, a origem e a ordem do mundo tomam a forma de um problema explicitamente colocado a que se deve dar uma resposta sem mistério, ao nível da inteligência humana, suscetível de ser exposta e debatida publicamente, diante do conjunto dos cidadãos, como as outras questões da vida corrente.” (p. 114).

E assim, o evento da chuva, por exemplo, passou a ser explicado e entendido como um efeito de um ciclo da natureza e não mais como uma vontade, um capricho ou um castigo dos deuses. O trovão, as colheitas, as ondas dos mares e até o eclipse e tantos e tantos outros eventos climáticos da natureza foram então, pela primeira vez, interpretados à luz do pensamento racional.

E após Tales, outros discípulos o sucederam na escola de Mileto, como Anaximandro[6], que deu continuidade à investigação filosófica para a elucidação do princípio da phisis. E para ele, o começo de tudo não era mais a água, mas uma matéria ilimitada, invisível e indeterminada: τό άπειρον[7] (tó ápeiron), substantivo grego que significa sem limite, infinito, sem fim.

Anaximandro trouxe o conceito dessa matéria ilimitada e que também estava em eterno movimento, como nos explica o professor Henri Bergson, em suas aulas disponíveis no livro[8] Cursos sobre a Filosofia Grega:

“Procura uma matéria que não tenha nada de determinado para que seja possível representar-se mais facilmente a transformação universal. Depois, percebendo que o número das transformações é infinito, irá atribuir a infinidade a essa matéria. Essa teoria deduz-se facilmente da primeira. Mas Anaximandro introduziu na filosofia a ideia de matéria indeterminada, a de movimento eterno (…).”. (p. 195).

Como sabemos, a história do pensamento não é linear, estanque e isolada. Ela se faz e se pavimenta também a partir da influência de outras teorias, de outras escolas e debates. E neste caso, pela proximidade geográfica da Jônia com o oriente e também com a África, onde estava a cidade de Kemet, no norte, onde havia um centro de estudos de matemática, astronomia e filosofia, que mais alguns séculos depois foi convertida na escola de Alexandria. É inegável também a força desta teoria a partir do ápeiron, absolutamente pautada na observação e na especulação científica nascente.

O ápeiron, unidade primordial de onde emergiam, por diferenciação e segregação, pares de elementos opostos, como quente/frio, seco/úmido, alto/baixo etc., num eterno movimento. E só pra relembrar: esta teoria foi proposta no século VI a.C. Anaximandro estava afirmando que a natureza se originava desta matéria indeterminada, que está em perpétuo movimento, gerando pares de elementos contrários. A phisis é assim governada por ciclos, que se alternam, complementando-se e contrapondo-se.

Naquele momento histórico, o sucessor de Tales na escola de Mileto estava abrindo a porta da dessacralização da origem do mundo. Estava removendo os “véus” das punições e castigos divinos, que gravitavam em torno da imaginação do homem daquela época. Para ele, o mundo se formava a partir de efeitos e contrafeitos que poderiam ser explicados e entendidos à luz do lógos. Sem temores ou ameaças de um sobrenatural desconhecido. Tudo estava na natureza (phisis) e podia ser observado, questionado e debatido.

Portanto, para nosso filósofo, o mundo como o conhecemos está em permanente condição de possibilidade de mudança. Eis aqui o ponto principal deste artigo. E uma proposta de (re) pensar e (re) aprender nosso modo de enxergar o que nos cerca e o que nos acontece, e especialmente como (re) agimos. O mundo contemporâneo e todo o tradicional sistema estabelecido nos “empurram” em direção a uma série sucessiva de episódios condicionados. Uma lógica hermética que carrega implicações que nem sempre se realizam, gerando graves consequências como frustrações, angústias e outros transtornos.

Por isso é imprescindível refletirmos sobre a seguinte proposição: na vida não há garantias. A vida não é uma conta corrente, como se tivéssemos uma “reserva” para usar ou um “colchão” onde tombar, caso algo previamente planejado/desejado/introspectado não se realize. É necessário afirmar isto de outro modo ainda mais explícito: nós não temos/podemos garantir o devir!

Parece meio óbvio, mas boa parte das nossas perturbações se origina nesta pseudo certeza. E para que possamos ter um certo nível de equilíbrio mental/espiritual é mister uma desconstrução do que tradicionalmente fomos doutrinados a pensar e agir à respeito dessas incertezas. Elas existem e são nosso conjunto de elementos incomensuráveis e indeterminados da vida que nos é.

A nossa vida, em todo o seu ciclo – desde o nascimento até a morte – é permeada por essas ocorrências, que não controlamos. São eventualidades reais e incalculáveis, para usar uma palavra corriqueira do contexto neoliberal capitalista. Não é possível prever o imprevisível e sofremos em excesso quando ocorre: porque fomos forjados a “correr atrás e resolver”. E aí surge a pergunta cruel do senso comum: “e o que você está fazendo para resolver?”. E aí a culpa chega em cena com todas suas exigências.

Mas se simplesmente o inevitável ocorrido estiver fora do seu (pseudo) controle? Aqui cabe uma pausa para reflexão. Ou pelo menos um questionamento, que já é um bom avanço nesta jornada de autoconhecimento.

Esta trilha de argumentação pode nos levar a uma possível libertação de determinados medos. Uma vez que entendamos o eterno funcionamento cósmico, como um todo harmônico e indeterminado, como proposto por Anaximandro, podemos nos voltar para o aqui e agora, serenamente, contemplando uma via onde possamos (re)pensar como (re)agimos ao que nos ocorre. Lembrando que a vida não é uma conta corrente aritmética de acúmulos para guardar reservas inexistentes. A vida se constitui de escolhas, de ações e de afetos: bons e ruins, com todas as suas insondáveis consequências. Continuamente!

Pensemos novamente o ápeiron de Anaximandro como causa de ordenamento da natureza. É uma matéria indeterminada em eterno movimento.

Pausa para ler e ouvir a frase.

Sim. É necessário parar e ler (até em voz alta) e entender que o devir (o que vem) não envia previamente um “manual descritivo” de funcionamento. Portanto é imperativo o exercício de tentativa (tentativa!) de se desprender dos temores dessas incertezas que são certas. São incertos porque estão no plano do que virá e do que não é ainda.

Eis portanto o convite indicativo para tentarmos fazer o bem (consigo e com o outro) aqui e agora – de tentar ser feliz no momento disponível. Porque o ápeiron está em eterno movimento e isto não está absolutamente em nosso domínio.

E para finalizar, embalando nosso pensamento sobre o ápeiron, a letra de Tempo Rei[9], do nosso cantor, compositor e imortal da ABL, Gilberto Gil:

“Não me iludo
Tudo permanecerá do jeito que tem sido
Transcorrendo, transformando
Tempo e espaço navegando todos os sentidos

(…)

Pensamento
Mesmo o fundamento singular do ser humano
De um momento para o outro
Poderá não mais fundar nem gregos, nem baianos

Mães zelosas, pais corujas
Vejam como as águas de repente, ficam sujas
Não se iludam, não me iludo
Tudo agora mesmo pode estar por um segundo

(…)”

 

ZAL

Zalboeno Lins (ZAL). Foto: Divulgação

 

 

 

 

 

 

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • BERGSON, Henri. Cursos sobre a filosofia grega. Tradução de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
  • LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2019.
  • VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Tradução de Ísis Borges B. da Fonseca. 24ª ed. Rio de Janeiro: Difel, 2018.
  • [1] LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2019. (p. 40).
  • [2] Cidade que se localizava no sudoeste da Ásia Menor, hoje onde é a Turquia. Cidade com grande relevância política e econômica na época da antiguidade clássica, sobretudo pela sua posição geográfica.
  • [3] Tales de Mileto é considerado um dos primeiros filósofos pré-socráticos. Foi também matemático e astrônomo. Viveu por volta de 624 a.C a 546 a.C e é o fundador desta escola filosófica.
  • [4] Outros filósofos pós Tales adotaram outros elementos da natureza para explicar o começo de tudo, como o ar, para Anaximenes (588 a 524 a.C) ou o fogo para Heráclito de Éfesos (500 a 450 a.C.).
  • [5] VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Tradução de Ísis Borges B. da Fonseca. 24ª ed. Rio de Janeiro: Difel, 2018.
  • [6] Filósofo pré-socrático, viveu entre 610 e 546 a.C. Foi também matemático, político da região de Mileto e astrônomo.
  • [7] Aqui uma breve explicação etimológica desta palavra. No grego, a letra alfa (α), antes de um substantivo nega seu sentido originário. Portanto o άπειρον é o sem limite, porque α+πειρον, que é borda, fronteira).
  • [8] BERGSON, Henri. Cursos sobre a filosofia grega. Tradução de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
  • [9] Compositores: Gilberto Passos Gil Moreira. Letra de Tempo rei © Gege Edicoes Musicais Ltda

 

 

 

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Me chamo Zalboeno Lins, mas pode me chamar de Zal.☺️ Sou graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento do RJ e atualmente faço Mestrado em Filosofia Antiga pela UERJ. Também apresento palestras de temas de Filosofia num programa interno da Claro. E mais recentemente, também dou aulas para o CEFS - Centro de Estudos Filosóficos de Santos. Mas acima de tudo, sou um grande admirador da Filosofia, como meio de nos resgatar do senso comum...☺️ Num direcionamento de uma vida feliz!

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