Narrador criado por Henrique Marques Samyn volta à cena de “O cemiténo dos vivos” para concluir obra barretiana
No ano do centenário de morte de Lima Barreto (1881-1922), a editora Malê lançou “Uma temporada no inferno”, no último dia 21/09, às 18h, na Livraria EdUERJ, no Campus Maracanã, no Rio. O personagem do romance de Henrique Marques Samyn volta para reescrever a história no hospício onde Lima esteve em dois períodos, na Urca. Foi na segunda intemação, entre o Natal de 1919 e fevereiro de 1920 que ele fez as anotações publicadas posteriormente como “Diário do hospício” e que serviram de base para “O cemitério dos vivos”, um romance inacabado.
“E se alguém fizesse da tarefa de concluir essa obra a missão de vida? E se a pessoa fosse um homem que, movido por essa obsessão, chegasse a se intemar, seguindo os passos de Lima? E se esse homem, sendo negro, acabasse preso nas redes do racismo e da violência manicomial? Esse é o enredo. A narrativa compila os fragmentos deixados pelo enigmático personagem, dialogando com os escritos de Lima e incorporando ampla documentação histórica, extraída de relatórios, textos científicos e periódicos da época”, explica Henrique Marques Samyn.
Professor associado do Instituto de Letras da UERJ, ele conta que a primeira versão do romance foi escrita há pouco mais de uma década, quando, em meio a releituras do “Diário do hospício”, escreveu uma novela que chegou a ser premiada em concurso. À premiação previa publicação, que não ocorreu e o texto foi para a gaveta.
“Ficou lá até recentemente, quando, voltando a mergulhar na obra de Lima para as aulas resolvi recuperar o manuscrito. O que surgiu foi praticamente outro livro. A narrativa foi reescrita e ampliada, para aprofundar o diálogo com a obra de Lima e retratar melhor o Brasil da primeira metade do século XX, com os discursos e práticas racistas, eugenistas e manicomiais de então. Quase ao mesmo tempo, a editora me procurou.”
Marques Samyn diz que o narrador-protagonista funciona como uma alegoria da condição do povo negro no Brasil. É o desejo de tornar-se “alguém” que faz com que desenvolva a obsessão pelo autor de “Policarpo Quaresma”, ao perceber traços biográficos em comum.
“Quais seriam as implicações disso numa sociedade racista, que condena os corpos negros a um mesmo destino? Como poderia esse personagem não sofrer violência semelhantes às que incidiram sobre Lima, e encontrar um fim não menos trágico?”, indaga o autor.
Coordenador do projeto LetrasPretas, voltado ao estudo e divulgação da produção intelectual de mulheres negras, Marques Sariyn acredita que há um interesse crescente na obra do autor, sobretudo por parte da juventude negra e pobre que o reconhece como um nome pioneiro da literatura militante:
“O Brasil é um país historicamente racista, o que se reflete em um sistema educacional elitista e excludente. A história de nossa literatura negra é de muita luta e resistência, tanto para viabilizar a publicação quanto para criar um público leitor entre as próprias pessoas negras. Isso vem mudando graças a iniciativas dos movimentos negros e a editoras que assumem essas tarefas, como a Malê.”
Com 120 páginas (R$ 44,00), o livro tem orelha assinada pelo historiador PetrônioD omingues e prefácio de Caroline Bianca Moreth, que é mestre em literatura e participou de um bate-papo com o autor, no lançamento.
Sobre o autor
Henrique Marques Samyn, criado na zona oeste do Rio, é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde leciona na graduação e na pós-graduação e desenvolve pesquisas sobre representações de gênero e raça em produções literárias. Na mesma instituição, coordena o premiado projeto LetrasPretas, dedicado à divulgação e ao estudo da produção intelectual de mulheres negras; também atua como professor e palestrante em diversas universidades brasileiras e estrangeiras. Entre outros livros, é autor de “Levante” (sintese poética da história do povo negro no Beco – eu -antiracista: uma antologia de textos dos Panteras Negras” e coorganizador de “(Sobre)vivências da mulheras negras”.