A PRIMEIRA REVISÃO É CEGA

Foto: iStock/fcscafeine

A PRIMEIRA REVISÃO É CEGA

 

Minha mais recente descoberta é: “A primeira revisão é cega”. Por mais que se leia atentamente, a primeira leitura pega só o que está “por cima”, o “entulho”, os erros mais grosseiros, mais aparentes, mais indiscretos. Quando leio um texto pela segunda vez, fico sempre com a impressão de que não li nada. “Como não vi isso antes?”, eu me pergunto. Pois é, essa é a má notícia: ninguém vê.

A boa notícia é que a segunda leitura vem nos salvar da primeira revisão, que só prestou para nos informar sobre o assunto. E até na segunda leitura passamos a entender melhor o que lemos, que não desceu da primeira vez. Esse é um dos mistérios do texto (ou da nossa incompreensão): ler só uma vez não basta. E ainda, a revisão é vertical. É preciso tirar todos os escombros de cima, para poder entrar no texto, como numa escavação arqueológica.

O revisor (esse amigo que se transforma por vezes em inimigo) tem a missão mais árdua e mais inglória: descobrir onde estão os erros e buscar a melhor solução para consertá-los. Às vezes, o autor não quer mudar nada e fica lutando com o texto. Mas só uma leitura lenta e prolongada poderá mostrar os verdadeiros erros, não os aparentes.

A primeira revisão é cega: pode escrever isso no seu caderninho. Não vemos onde faltam vírgulas, as palavras que precisam ser trocadas, não enxergamos patavina. Eu já me peguei tantas vezes nessa situação que tive que chegar a essa conclusão por força das circunstâncias. Ninguém enxerga todos os erros “de prima”. E só enxerga os erros óbvios. Os errinhos cruciais, os ocultos, os camuflados, as construções de frase, os tempos de verbo só aparecem depois.

Revisei há pouco um longo texto de um livro sobre economia: assunto bárbaro, mas a primeira leitura só arranhou a superfície. Somente na segunda é que “enxerguei” onde o autor se esquecera de alguns termos e algumas estruturas mais bem elaboradas. Como pode? Ele escreve bem, mas não tão corretamente assim? Tem vocabulário, tem raciocínio, faz grandes associações e explana bem o seu ponto de vista, mas, na hora de escrever, sempre algo fica de fora.

É como se “afinássemos” o texto e tivéssemos de subir uma oitava, mudar o tom, fazer outro arranjo de palavras para dizer a mesma coisa. Linguagem é música. Precisa descer redondo. Um tempo de verbo ou uma palavra mal colocada desafina o sentido. E quando o texto está bem escrito, os olhos e ouvidos agradecem.

A primeira revisão é cega, porque não lemos direito. Nossa mente ainda está conhecendo o texto e não temos os sentidos totalmente apurados e despertos para o que está escrito. Temos que despertar antes de ler novamente. A primeira leitura é esse despertar. Algo nos surpreende, algo nos pega desprevenidos. E só na segunda, terceira, quarta, quinta leitura conseguiremos aprofundar nossa observação, nossos olhos e ouvidos, sim, porque também se ouve quando se lê, mesmo em silêncio.

Ler apura todos os sentidos. Descobrimos algo que estava ali escondido e que não havíamos percebido antes. A revisão é uma faca de dois gumes. Ora lemos direito, ora não. Qualquer coisa que nos distraia, nos tira a concentração e pronto, não saberemos mais onde estávamos, perdemos o fio da meada.

Para ler, é preciso estar completamente absorto, deixar-se levar lentamente pelas palavras, para que elas nos inundem e, subitamente, nos sintamos submersos. Para revisar, é preciso estar duplamente atento, e ler tantas vezes quantas forem necessárias, até não encontrar mais erro algum – senão este passará à posteridade e nada poderemos fazer a respeito depois.

 

Primavera de 2025

Thereza Christina Rocque da Motta

 

 

 

 

 

 

 

Colunista ArteCult e editora da Ibis Libris Editora (@ibislibris)

 

 

Author

Thereza Christina Rocque da Motta (São Paulo, SP, 1957) é poeta, editora e tradutora. Foi Jurada de Tradução do Prêmio Jabuti, em 2018. Recebeu a Medalha Chiquinha Gonzaga da Câmara dos Vereadores, em agosto de 2021. Coordena a Ponte de Versos desde 2000, evento incluído no Calendário Oficial de Cidade do Rio de Janeiro, em 2024. Fundou a Ibis Libris no Rio de Janeiro, em 2000. Publicou Joio & trigo (1982), Capitu (2014), Lições de sábado (crônicas, 2015), Minha mão contém palavras que não escrevo (2017), O amor é um tempo selvagem, Lições de sábado Vol. 2 e A vida dos livros Vol. 2 (2018), Poesia Reunida 40 anos (1980-2020), Sheherazade: Novas lendas das 1001 noites e três já conhecidas (2022), entre outros. Traduziu, entre outros, Marley & Eu, de John Grogan (2006), A Dança dos Sonhos, de Michael Jackson (2011), 154 Sonetos, de William Shakespeare (2009), Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll e O Corvo, de Edgar Allan Poe (2020), Mais mortais que os homens, org. Graeme Davis (2021) e A última casa da Rua Needless, de Catriona Ward (2023), vencedor do British Fantasy Award, como Melhor Romance de Terror de 2022.

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