A POÉTICA DA MEMORABILIA
Luís Turiba*
“O passado é a coisa mais imprevisível: não para de se transformar”.
A frase é do jornalista-pensador George Orwell, nascido na Índia, mas de cidadania inglesa, autor da distopia futurista no sempre polêmico romance “1984”, um inquestionável clássico moderno lançado em 1949, poucos meses antes da sua morte – mas um pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial.
A obra citada é considerada “magistral”, pois até os dias de hoje comparece como uma reflexão ficcional sobre a essência nefasta de qualquer forma de poder totalitário e opressor.
Nada mais atual do que esse mergulho na memória de um passado futurista, pois foi nesse climão antidemocrático que surgiu a eterna vigilância do Grande Irmão com seu infinito poder cínico, ditatorial e cruel, mas de um vazio sem nenhum sentido histórico.
Aliás, encontrei esta breve epígrafe no livro “Cabral, o desconhecido”, que ganhei do escritor português João Morgado, a quem fui apresentado pelo poeta-amigo piauiense Salgado Maranhão na Academia Brasileira de Letras (ABL), na fantástica noite de posse do pensador-filósofo-poeta Ailton Krenak.
Neste circuito de “dizeres e saberes”, por intermédio de lembranças e recordações de passados que buscam outros “renasceres”, invoco aqui a presença do poeta baiano Ruy Espinheira Filho, cujo principal livro tem um título-síntese Para onde vamos é sempre ontem.
Como estamos tratando de vários “tempos”, todos “tempos” da memória, vale também trazer à baila ensinamento do astro pop-roqueiro inglês David Bowie, para quem “envelhecer é um processo extraordinário em que você se torna a pessoa que você sempre deveria ter sido”. É aquele momento da vida quando você é tomado pela “cristalina consciência” de ser um ser cósmico.
A memória em si tem suas dialéticas aplicadas em todas as obras e citações presentes neste “nariz de cera”.
Memória tem um pé na ciência. A neurociência estuda suas conexões sinápticas. Mas esse é outro papo. O certo é que a memória é singular, sensitiva, quase espiritualista. Se fosse, digamos, um orixá que baixasse vez por outra em nossas rodas, festivais e programas literários, poderíamos até chamá-la na intimidade brasileira de “Caixinha de Surpresa”.
Afinal, neurologistas de plantão afirmam que, para se entender como a memória é “guardada” dentro do cérebro, um dos mais complexos órgãos do corpo humano, é necessário pensá-la como uma rede. Os locais exatos de armazenamento ainda são um mistério para os pesquisadores, mas alguns mecanismos principais já são conhecidos da ciência.
Eles dizem: “se a memória fosse uma universidade, o hipocampo (estrutura neurológica que participa fortemente nos processos de emoção, aprendizado e memória propriamente dita) seria a reitoria, que é responsável pelo gerenciamento e organização das coisas. Quem dá o exemplo é a Dra. Viviane Louro, neurocientista e professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Ainda no campo do desenvolvimento da memória no cérebro humano, os cientistas dizem que tudo começa na gestação do humano, prossegue na infância e na adolescência e tem sua maturação biológica a partir dos 22 anos.
A memória não pode ser classificada como um sentido em si, conforme já li na internet especulativa. Mas funciona como “influenciadora” que circula entre os cinco principais: visão, olfato, audição, tato e paladar. Daí, existe uma memória afetiva, que pode nascer de uma música, um prato especial de comida ou mesmo um visual, um quadro ou uma fotografia, mesmo digital..
Todos temos memórias e a usamos como bem entendemos como elemento auxiliar para certos objetivos. Pessoalmente, tenho feito algumas observações empíricas sobre o funcionamento desta engrenagem tão presente na construção de realidades artísticas, sociais e culturais.
Exemplo: há mais de ano escrevo um livro autobiográfico (jornalistas adoram isso) e tenho convivido com histórias, reportagens, livros, poemas e crônicas que busco e/ou pesquiso junto aos meus neurônios ou pastas-arquivos guardados há 50 anos.
Nessas pesquisas, descobri que outros jornalistas escreveram sobre produtos materiais que inventei e/ou participei na minha longa carreira de repórter, assessor e, poeta. A revista Bric a Brac, fundada em 1985, é um exemplo pulsante.
Muitas vezes, tenho sido surpreendido com ligações extrassensoriais entre minhas pesquisas pessoais e alguns personagens que viveram esses episódios. São testemunhas que, com o caminhar da vida, sumiram da minha existência e, de repente, reaparecem na missão de recontar fatos passados com dados, detalhes e informações que tinham desaparecido do meu radar. Deu para entender? Difícil, mas explico. Recentemente, veio ao meu caderno de anotações um dos piores dias da minha vida, quando depois de ser preso e torturado por toda uma noite, fui jogado numa solitária (a 00), escura e cavernosa, do Doi-Codi da Rua Tutóia, em São Paulo. Isso aconteceu em 1972.
No interrogatório, desmaiei. Ao acordar sabe lá quanto tempo depois, ouvi uma voz sussurrante com forte sotaque nordestino, vindo de uma cela vizinha. A voz sugeria que eu resistisse. Ato contínuo, cantou para me reanimar “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga.
Estava tudo escuro, mas a voz, mesmo baixinha, ficou gravada para sempre no meu subconsciente e, de certa forma, me ajudou a resgatar a esperança quase perdida em um corpo maltratado.
Agora, 50 anos depois, tentei por uma semana me lembrar do nome deste companheiro que, por intermédio de músicas nordestinas que meus pais cantavam na minha infância, me devolveu o sentido de viver, quase ressuscitando-me daquele inferno na Terra.
Dias depois, meu celular chama uma ligação vinda de Beagá, MG. Era o músico-cirandeiro-poeta Nélio Torres, paraibano e participante como eu, do PSIU Poético de Montes Claros. Conversa rolava fácil quando ele me fala de um amigo comum, também paraibano, chamado Martinho Campos.
Sim, era dele “a voz” daquela fatídica madrugada, sussurrando baixinho: “resista companheiro, vou cantar uma música para você”.
Assim, me dei conta de que, repentinamente, mais uma vez, a memória se incorporou à realidade atual mudando e mostrando fatos do passado de um novo patamar da existência humana. Ambos havíamos resistido.
Desde o início deste processo de escrever essas memórias, fatos concretos como esse seguem acontecendo e chamando minha atenção para algo mais que está para além das coincidências.
Memória puxa memória. Quando recebem luz, os fatos ganham novas dinâmicas e consequências. Assim, para mim, a memória passou a ser algo vivo, presente, pulsante e fundamental para compreender melhor o passado num tempo atual. E na memória não cabem máscaras. Muitas vezes, ela desequilibra determinados acontecimentos que, por serem relembrados, já sofrem mudanças e/ou novas versões e interpretações.
Daí, a importância da “poética na memorabilia”, esse sistema que funciona como conjunto ou coleção de fatos, lembranças, recordações daquilo que é impossível esquecer.
Se a memória não salva, a poesia passa a ter essa responsabilidade. Mas é melhor deixar a poesia quieta e fora disso, livre desse karma – apesar de ela (e só ela) poder devolver ao passado a fantasia mágica contida no pulsar da existência vital.
Quer saber? Vamos praticar a cosmologia memorial, o que trará a cada um de nós, ganhos, entendimentos, compreensões e um sentido mais nobre de encarar as barras pesadas e as dignas magias do nosso nebuloso cotidiano.
LUIS TURIBA
*Luís Turiba é jornalista aposentado, poeta com 3 livros editados pela 7 Letras do RJ, e outros 8 livros no campo da poesia independente e/ou marginal.É editor da revista anual de invenções poéticas Bric a Brac, criada em Brasília, em 1985. A Bric a Brac 8, última edição, saiu em 2022, uma celebração ao centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 e ainda pode ser encontrada nas melhores livrarias de Ramos
Belíssima estreia, Luis….memorável!
Um viva aos fazeres, histórias, teceres e poesia.
Vida longa à parceria! Vida longa ao ArteCult! Bj
Estamos todos de parabéns por essa “aquisição “: TURIBA é grande, e para quem, inadvertidamente, ainda não o conhece, esse texto poético sobre a memória é uma ótima demonstração de sua verve, jornalística, fraternal e literária. Seja bem-vindo, amigo. Um prazer tê-lo junto ao nosso PORTAL ARTECULT.COM. Grande abraço meu
Estamos muito felizes e honrados com o ingresso de Turiba no time da editoria LITERATURA. Seja bem-vindo, querido poeta! Obrigado pelo texto!
Lindo texto e comovente relato, Turiba! E essa poética memorabilia está presente em muitos dos teus memoráveis poemas.
Abraço!
Ricardo Silvestrin
Viva!!!
Caro amigo, Luis Turiba! Saudações fraternais. Fico feliz pela coluna jornalística. Desejo-lhe bom ânimo na empreitada, pois entusiasmo e competência você tem de sobra. Gostei da dinâmica ensaísta e memorialística do seu primeiro texto: A POÉTICA DA MEMORABILIA. Parabéns! Grande abraço, Marcos Fabrício.