A humilde profissão do livreiro

A humilde profissão do livreiro

 

Niterói, 11 de setembro de 2025

Entre os mais humildes comércios do mundo está o do livreiro. Embora sua mercadoria seja a base da civilização, pois que é nela que se fixa a experiência humana, o livro não interessa ao nosso estômago nem à nossa vaidade. Não é portanto compulsoriamente adquirido. O pão diz ao homem: “Ou me compras ou morres de fome”. O batom diz à mulher: “Ou me compras ou te acharão feia”. E ambos são ouvidos. Mas se o livro alega que, sem ele, a ignorância se perpetua, os ignorantes dão de ombros, porque é próprio da ignorância sentir-se feliz em si mesma, como o porco com a lama. E, pois o livreiro vende o artigo mais difícil de vender-se. Qualquer outro lhe daria maiores lucros; ele o sabe e heroicamente permanece livreiro. E é graças a esta generosa abnegação que a árvore da cultura vai aos poucos aprofundando as suas raízes e dilatando a sua fronde. Suprimam-se o livreiro e estará morto o livro – e com a morte do livro retrocederemos à idade da pedra, transfeitos em tapuias comedores de bichos de pau podre. A civilização vê no livreiro o abnegado zelador da lâmpada em que arde, perpetua, a trêmula chamazinha da cultura.

Monteiro Lobato

 

Um dia, ou melhor, por duas vezes, eu fui livreira. Mas, da primeira vez, tive o sócio errado, e da segunda, quase se repetiu o mesmo erro, mas antes que a tragédia ocorresse, dois anos depois, eu fechei a livraria. Aí descobri que não sou livreira. O livreiro é esse abnegado que fica ali à espera que lhe comprem seus livros, enquanto o editor é o que faz os livros que irão para a livraria. Ou se faz uma coisa, ou outra. Não é possível ocupar as duas cadeiras ao mesmo tempo. Enquanto livreira, eu não conseguia ser editora, e enquanto editora, não poderia vender livros. Certa vez, entrou uma moça na livraria e, olhando para a estante, disse: “Eu sabia que era uma editora, por causa dos livros nas prateleiras. Tem muitos iguais”. Ela tinha razão. Mas havia uma alegria incomensurável em ter uma livraria. Era um lugar onde eu podia mostrar os livros que tinha para vender, todos juntos. Como um site físico. Hoje, em que quase só se compra online, estar em uma livraria é inenarrável. Peguemos a Travessa, por exemplo: ela reúne num único lugar uma enormidade de títulos que se espalham por quilômetros à nossa volta e onde quer que olhemos lá está um livro que queremos comprar. Ora, você diria, então por que é difícil? Livro não é comida, nem bebida, mas é alimento. Alimento para o espírito. Para a mente, para a vida. Escrevi “A vida dos livros” que lancei em 2010 num blog justamente pensando nos meandros de se fazer um livro. Mas acabei falando sobre toda a cadeia do livro, do autor ao leitor, passando pelo revisor, o diagramador, o editor, o impressor, o distribuidor, o transportador e o vendedor de livros, que é justamente o livreiro, o livreiro que eu não podia ser. Entre o autor e o leitor, existe uma sucessão de pessoas invisíveis que estão contidas no livro que pegamos na livraria.

O livreiro é o distribuidor final, que devolve a migalha de dinheiro que sobrou depois de todos os custos pagos. Por isso, o autor recebe tão pouco. O livro alimenta toda essa cadeia de pessoas e empresas só para que o livro chegue à livraria e ao leitor. Monteiro Lobato levava livros para vender no açougue! Mas ele foi péssimo administrador da própria editora. Por isso, escritores não podem ser gerentes de si mesmos. Mas, por sorte, podem ser editores, que é o que eu sou, mas não me pergunte como sobrevivi 25 anos como editora. Acho que foi só porque eu acreditava no que estava fazendo: livros. Mesmo sem ter ficado rica. A riqueza é outra. É de pessoas e reconhecimento. O dinheiro é só para pagar as contas e se não der, negocia-se. Não há dinheiro para tudo. E por isso livros não podem ser feitos de graça, nem livro pode ser dado sem algum custo. Há muito que se pensar sobre isso ainda.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Author

Thereza Christina Rocque da Motta (São Paulo, SP, 1957) é poeta, editora e tradutora. Foi Jurada de Tradução do Prêmio Jabuti, em 2018. Recebeu a Medalha Chiquinha Gonzaga da Câmara dos Vereadores, em agosto de 2021. Coordena a Ponte de Versos desde 2000, evento incluído no Calendário Oficial de Cidade do Rio de Janeiro, em 2024. Fundou a Ibis Libris no Rio de Janeiro, em 2000. Publicou Joio & trigo (1982), Capitu (2014), Lições de sábado (crônicas, 2015), Minha mão contém palavras que não escrevo (2017), O amor é um tempo selvagem, Lições de sábado Vol. 2 e A vida dos livros Vol. 2 (2018), Poesia Reunida 40 anos (1980-2020), Sheherazade: Novas lendas das 1001 noites e três já conhecidas (2022), entre outros. Traduziu, entre outros, Marley & Eu, de John Grogan (2006), A Dança dos Sonhos, de Michael Jackson (2011), 154 Sonetos, de William Shakespeare (2009), Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll e O Corvo, de Edgar Allan Poe (2020), Mais mortais que os homens, org. Graeme Davis (2021) e A última casa da Rua Needless, de Catriona Ward (2023), vencedor do British Fantasy Award, como Melhor Romance de Terror de 2022.

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