A Esperança é filha da Noite e irmã da Aurora

 

A Esperança é filha da Noite e irmã da Aurora

 

“Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”

(As Caravanas – Chico Buarque[1])

 

Como assim a Esperança é filha da Noite e irmã da Aurora? Quem disse isso?

Estou me referindo aqui ao contexto da mitologia grega antiga, onde Noite (Nyx – Νυξ) é mãe de diversos deuses, dentre eles Sono (Hipnon – Ϋπνον), Sonho (Oneiros – Ονειρος), Aurora (Heos – Ήως) e Esperança (Elpis – Ελπίς). E é a partir deste mito que inicio o artigo desta edição da ArteCult. Meu objetivo de hoje é fazer uma articulação do conceito da esperança, a partir do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han num dos seus mais recentes livros, O Espírito da esperança contra a sociedade do medo[2] e da ideia de resignação no estoico Epicteto, segundo alguns fragmentos contidos no Manual[3].

São dois pensadores muito distantes cronologicamente, mas, cada um, em seu tempo, viveu/vive uma época de crises e colapsos de valores ético-morais, como explico mais adiante. Dois filósofos ‘exilados’ e que refletem sobre os problemas que atormentam o mundo de suas épocas. O sul-coreano mudou para a Alemanha, onde mora até hoje e onde estudo Filosofia, Literatura e Teologia. Epicteto, nascido no ano 70 d.C., em Hierápolis (atual Turquia), foi escravizado e levado para Roma, por Epafrodite. Depois de alguns anos foi libertado e estudou com o estoico Mussônio Rufo. Depois fundou sua escola em Roma e no ano 93, devido à perseguição de Domiciano aos professores e filósofos, exilou-se para Nicópolis, norte da Grécia, onde reestabeleceu sua escola e ficou até sua morte, por volta do ano 135. Epicteto nada deixou escrito (assim como Sócrates), mas um de seus alunos, Flávio Arriano, compilou suas ideias no Manual e nas Diatribes.

O Manual[4], segundo Dinucci (2020), o tradutor da versão que elegemos para este artigok “(…) consiste em um conjunto de apotegmas para que o seguidor do estoicismo tenha sempre à mão os princípios para enfrentar e vencer as dificuldades da vida”. (p. 12). É um manual para ser consultado sempre que tenhamos necessidade, diante das dúvidas, de como agir e reagir. Trata-se de uma possibilidade de saída diante das encruzilhadas de questões éticas que a vida permanentemente nos apresenta, ou seja, uma ‘adaga’ de preceitos filosóficos, para nos libertar das dúvidas, das angústias e dos tormentos da alma, levando o homem a uma vida feliz e livre das inquietações. Aliás, a frase mais usada no Manual é justamente: afastar-se das coisas que não estão sob nosso controle.

O Manual é composto por cinquenta e três fragmentos. E para iniciar trago o primeiro:

“I. Das coisas, algumas estão sob nosso controle, outras, não. Estão sob nosso controle o juízo, o impulso, o desejo, a repulsa – em suma: o quanto for ação nossa. Mas não estão sob nosso controle o corpo, as posses, a reputação, os cargos públicos – em suma: o quanto não for ação nossa. As coisas que estão sob nosso controle são por natureza livres, desimpedidas, desobstruídas”. (p. 31).

Neste fragmento podemos destacar o chamamento para um olhar para si, sob o comando da razão; um afastamento das coisas materiais, dos bens externos. Segundo o filósofo, o que depende de cada um é um vasto e livre campo de atuação. Ele nos aconselha ainda a não nos deixarmos afetar pelo que nos é exterior. As inquietações sociais e políticas estavam, estão e estarão sempre presentes. O aconselhamento desde Epicteto é não se permitir ser guiado por esse conjunto de valores exteriores. O uso da razão e do questionar-se são a âncora. E livrar-se dessas opiniões externas é absolutamente libertador, segundo nosso filósofo, um ex-escravizado. Porém isso representa um árduo e permanente exercício de pensamento e de atitudes.

Dando continuidade, apresentamos o fragmento número cinco:

“V. Não são as coisas que inquietam os homens, mas as opiniões sobre as coisas. Por exemplo: a morte nada tem de terrível, ou também a Sócrates teria se afigurado assim, mas é terrível a opinião sobre a morte, segundo a qual ela é terrível. Então, quando formos impedidos, quando nos inquietarmos ou nos afligirmos, jamais consideremos qualquer outra causa senão nós mesmos – isto é, nossas próprias opiniões. É ação do ignorante acusar os outros pelos equívocos que ele mesmo comete. É do que começou a se educar acusar-se. É do homem educado não acusar os outros nem se acusar”. (p. 34).

Não são as coisas em si que perturbam os homens, mas o que estes pensam sobre elas. Identificamos aqui um traço marcante da influência socrática: afastar-se da opinião, do falso conhecimento e ao mesmo tempo um convite ao autoconhecimento. Como um conselho para um ‘exercício’ filosófico, vemos no fragmento uma orientação ética de autorreflexão para um distanciamento do que aflige a alma. Considero este o fragmento mais importante de Epicteto, onde vemos muito explicitamente o fundamento de seu pensamento sobre a questão da aceitação do que não podemos mudar – na radicalidade da morte. Não é, de modo algum, uma passividade; ao contrário, é um chamamento para a racionalidade sobre o entendimento dos nossos limites e de nossas fraquezas. Para os estoicos, somos portadores e tutores de uma partícula do Cósmos (que tudo rege): o lógos.

Já no fragmento VIII, ele nos alerta para que “Não busques que os acontecimentos aconteçam como queres, mas quer que aconteçam como acontecem, e sua vida terá um curso sereno”. (p. 35). Neste excerto, uma aproximação com duas ideias centrais no pensamento de Epicteto: ανέχου – anekhou (suportar; resignar-se) e απέχου – apekhou (abster-se). Aceitar os acontecimentos que nos ocorrem, como se apresentam sem tentar mudar a realidade para caber em nossa forma de pensar e perceber o mundo.

O que Epicteto nos ensina e que não é minimamente fácil, mas não impossível de se aplicar é aceitar o que não podemos mudar. Acatar os acontecimentos como são, sem tentar ‘mudá-los’ para ‘caber’ em nossa forma de enxergar o mundo. Bastante apropriado para uma reflexão dos dias atuais, onde impera a tentativa da não aceitação da realidade que se nos apresenta e o escape pela via da crença no senso comum e na compensação material, onde o ‘sujeito da performance’ é capaz de quase qualquer coisa para preencher esse vazio. É aqui onde ‘convido’ Byung-Chul Han para o ‘debate’. Em seu livro Sociedade do cansaço[5], o filósofo explica que:

“A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais ‘sujeitos da obediência’, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos.” (p. 23)

O filósofo nos fala da mudança da sociedade disciplinar (conceito de Foucault) sobre os meios de ‘controle’ do sujeito, como asilos, presídios, quartéis e fábricas para a sociedade do desempenho, com indivíduos cada vez mais isolados e em busca de ‘aumento da produtividade’, como destaca o filósofo mais adiante na mesma obra:

“A mudança de paradigma da sociedade disciplinar para a sociedade de desempenho aponta para a continuidade de um nível. Já habita, naturalmente, o inconsciente social, o desejo de maximizar a produção. A partir de determinado ponto da produtividade, a técnica disciplinar ou o esquema negativo da proibição se choca rapidamente com seus limites. Para elevar a produtividade, o paradigma da disciplina é substituído pelo paradigma do desempenho ou pelo esquema positivo do poder, pois a partir de um determinado nível de produtividade, a negatividade da proibição tem um efeito de bloqueio, impedindo um maior crescimento.” (p. 25)

Voltando ao mito da Noite, com Aurora e Esperança: quais elementos estão contidos nesta narrativa? A Noite, que é o intervalo de repouso, onde dormimos e sonhamos e de onde nasce a Aurora e a Esperança. É simbólico e até um pouco poético, mas bastante representativo. E o filósofo Han fala logo no início de seu O Espírito da esperança: contra a sociedade do medo que:

“estamos numa multicrise. Olhamos amedrontados para o futuro sombrio e falta esperança em toda a parte. Saltamos de uma crise para outra, de uma catástrofe para outra, de um problema para outro. Entre pura resolução de problemas e gerenciamento de crises, a vida definha: torna-se sobrevivência. A ofegante sociedade da sobrevivência assemelha-se a um doente que tenta de todas as maneiras repelir a morte iminente. No entanto, apenas a esperança nos permite recuperar a vida que é mais que sobrevivência. Ela estende o horizonte do significativo, que revitaliza a vida e lhe dá asas. A esperança nos presenteia com o futuro.” (p. 10)

E pergunto se rejeitar a esperança não seria um malicioso artifício da engrenagem do sistema neoliberal para que o sujeito da performance seja acorrentado ao medo e siga em modo contido, sendo apenas sujeito da produção, descrente do futuro e apequenado? Para nos ajudar na reflexão, trago uma explicação do sul-coreano:

“O medo onipresente de hoje não decorre realmente de uma catástrofe permanente. Somos afligidos sobretudo por medos difusos, que são estruturalmente condicionados e, portanto, não podem ser atribuídos a eventos concretos. O regime neoliberal é um regime do medo. Ele isola o ser humano ao torná-lo empresário de si mesmo. A competição total e a crescente pressão por desempenho erodem a comunidade. O isolamento narcisista gera solidão e medo. Até mesmo nosso relacionamento conosco mesmos está cada vez mais marcado por medos: medo de falhar, medo de não atender às nossas próprias expectativas, medo de não acompanhar o ritmo ou medo de ficar para trás. É justamente esse medo ubíquo que aumenta a produtividade.” (p. 23).

É preciso, portanto, muita coragem, serenidade e racionalidade para se descontaminar desse medo paralisante. E neste sentido, o Suportar (com maiúscula) poderia muito apropriadamente entrar para o panteão dos deuses mitológicos e ser um aparentado de Esperança. E sem medo, pois é preciso ter a capacidade de entender e elaborar o que nos acontece. E a esperança? Para o filósofo:

“A esperança é eloquente. Ela narra. O medo, por outro lado, é incapaz de falar, incapaz de narrar. […] A esperança é também, linguisticamente, a figura oposta ao medo. O dicionário etimológico de Friedrich Kluge diz a respeito de hoffen (esperar): ‘ao inclinar-se para a frente, tenta-se ver mais longe, ver com mais precisão’. Portanto, esperança significa ‘olhar para longe, olhar para o futuro. Ela abre o olhar para o que está por vir.” (p. 13-14)

Para o pensador, a esperança possui ainda múltiplos atributos, aqui resumidos:

  • “Ela desperta. Com frequência, precisa ser chamada, invocada.” (p. 17).

 

  • “A esperança nos parece, por assim dizer, magnetizada pelo amor ou talvez, mais precisamente, por um conjunto de imagens que evocam e irradiam esse amor. O medo e o amor excluem um ao outro. Na esperança, por outro lado, o amor está incluído. A esperança não isola. Ela reconcilia, une e alia. O medo não coaduna com a confiança, nem com a comunidade, nem com a proximidade, nem com o toque. Ele só provoca alienação, solidão, isolamento, perda, impotência e desconfiança.” (p. 27)

 

  • “A esperança é o fermento da revolução, o fermente do novo. […]. Não há revolução do medo. Aqueles que têm medo se submetem ao domínio. Somente na esperança de um mundo diferente e melhor se forma um potencial revolucionário. Se hoje não é possível uma revolução, é porque não sabemos ter esperança, porque permanecemos no medo, porque a vida definha em sobrevivência.” (p. 30-1)

 

  • E por fim: “a esperança é o salto, o elã, o ímpeto que nos liberta da depressão, do futuro esgotado.” (p. 33)

A Esperança nos aponta para um coletivo, um ‘nós’ e nos presenteia com os novos ventos, seus sobrinhos na mitologia, narrada por Hesíodo no poema Teogonia, onde ele conta a origem dos deuses gregos antigos:

“Aurora pariu ventos ânimo-vigoroso clareante Zéfiro, Bóreas rota-ligeira e Noto, em amor a deusa com o deus deitada. Depois deles, Nasce-Cedo pariu Estrela da Manhã e astros fulgentes, com os quais o céu se coroa”

Que possamos seguir adiante, nesses ventos da Aurora, buscando entender o que acontece conosco, tentando, pelo uso da razão, livrar-se do lodo do senso comum. Porque elaborar o que se passa conosco requer tempo, silêncio, auto-observação e resignação. A coragem para seguir adiante floresce subitamente no seu momento.

E finalmente, que possamos seguir na graça de Esperança, como nos diz o poeta Vinícius de Moraes em seu Samba da bênção[6]:

“Fazer samba não é contar piada
E quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração

Porque o samba é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança
A tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não”

 

 

ZAL

Zalboeno Lins (ZAL). Foto: Divulgação

 

 

 

 

 

 

Siga o Parresia Pensamento nas redes sociais:

@parresia.pensamento

 

 

 

 

REFERÊNCIAS:

[1] Trecho da música As Caravanas.

Compositores: Francisco Buarque de Hollanda

Letra de As caravanas © Tratore

[2] HAN, Byung-Chul. O espírito da esperança: contra a sociedade do medo. Tradução de Milton Camargo Mota. Petrópolis, RJ: Vozes, 2024.

[3] ARRIANO, F. O Manual de Epicteto. Tradução de Aldo Dinucci. Campinas, SP: CEDET, 2020.

[4] Como referência, utilizamos a versão traduzida pelo professor Aldo Dinucci, conforme dados da referência bibliográfica ao final deste trabalho.

[5] HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução Enio Paulo Giachini. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

[6] Compositores: Baden Powell / Marcelo Peixoto / Vinicius De Moraes. Letra de Samba Da Benção © Sony/ATV Music Publishing LLC, Universal Music Publishing Group

 

 

Author

Me chamo Zalboeno Lins Ferreira, mas pode me chamar de Zal.☺️ Sou graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento do RJ. Em seguida concluí o Mestrado em Filosofia Antiga, com Dissertação falando sobre o conceito da morte e vida feliz em Platão, Epicuro e Epicteto. E atualmente faço Doutorado em Filosofia Antiga pela UERJ, com o projeto de pesquisa sobre o conceito da morte e felicidade em Epicuro e Krenak. E nesta pesquisa, vou traduzir as Cartas de Epicuro do grego antigo para o português e anexá-las à Tese. Mais uma contribuição que fica das Cartas epicuristas. Também realizo palestras de temas de Filosofia, tanto para um programa interno da empresa onde trabalho, quanto para pessoas fora da organização. Semanalmente também apresento o Filosofia de Primeira, no Programa De Primeira Categoria da Rádio Itapuama FM (92,7) de Arcoverde (PE). Comento ideias e temas de autores de Filosofia em inserções de 4 a 5 minutos... É uma forma de deixar a Filosofia acessível para mais e mais pessoas, de forma simples, sem descaracterizar a ideia original do pensador. Mas acima de tudo, sou um grande admirador da Filosofia, como meio de nos resgatar do senso comum...☺️ Num direcionamento de uma vida feliz! Uma vida compartilhada! E por fim, como costumo repetir: sigamos em philía!

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *