“Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!(…)Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias (…)”(Casimiro de Abreu em “Meus Oito Anos”)
Foram duas semanas emotivas para mim, entre os aniversários dos meus pais e o meu, que ocorreram no espaço de uma semana. Juntos, na casa deles, por um momento perdidos entre as lembranças da juventude deles e os meus primeiros anos de vida, por motivos pessoais, lá no fundo do peito, senti saudades de quando eu era uma criança a ser protegida e todas as situações de controle e segurança cabiam aos meus pais. Saí da casa paterna tocada por uma sequência de associações provocadas pelas lembranças, depois que minha mãe, após reviver uma memória, abriu a porta de outras tantas, tão queridas, tão distantes da realidade de agora.
Então, resolvi trocar esse aperto no peito por um punhado de risadas, terminando a noite ao lado de amigos queridos. Um deles, avançada a hora, aluguei com as minhas questões existenciais. E, como não poderia deixar de ser, falamos de Deus e das coisas de que se tinha que falar, cujo sentido tentamos entender.
No dia seguinte, amanheci com o objetivo de ir a uma concessionária para trocar de carro. Na preguiça do início do dia, decidi trocar a indicação de um amigo de uma revendedora num bairro mais distante e optei por escolher uma loja de um bairro vizinho, por pura comodidade. Tendo chegado cedo, fui atendida por um vendedor que me mostrou tudo mas acabou me passando a outro que cuidava de determinado convênio que poderia gerar um desconto na compra do veículo.
Sentado diante de mim, ao preencher a ficha do meu cadastro, viu meu endereço. Disse a mim que morava no meu bairro. Mais: que morava na rua atrás da rua da casa da minha infância. A casa que mais amei morar, aquela com que sonho quando sonho que estou em casa. Ao dizer a ele a rua em que morei, ele se lembrou de ver da janela de seu apartamento os quintais de três casas que viraram prédios e os descreveu. Um deles era o meu quintal. E ele me disse: era tão grande que havia uma árvore (sim, nossa mangueira!) e que uma criança andava de bicicleta (sim, eu!).
Era eu sobre a bicicleta, a criança que fui, fixada na memória do estranho que agora me vendia um carro. Era eu circulando a mangueira de casa e aprendendo a fazer curvas, com os joelhos constantemente arranhados dos tombos e cantando enquanto guiava.
A memória viva da infância e do prazer que era viver aquela experiência no meu passado me acendeu a memória e o peito.
Andar de bicicleta era o meu passatempo preferido, além de dançar no quarto. Era eu, me afastando do colo, aprendendo a pedalar para longe, sonhando estar em caminhos imaginários. Enfim, a criança que fui, aquela de que sentira saudade no dia anterior, que mora dentro de mim, onde moram as outras “Anas” que já fui, estava ali, existia numa memória aleatória que não era a minha, não era a dos meus pais, era a daquele cara estranho a minha vida, muitos anos mais velho do que eu.
E ele sorria, achava engraçada a coincidência, lembrava-se do nome do dono da chácara onde minha mãe comprava plantas. Ele não sabe, eu não contei, mas aquela criança também corria entre os labirintos de plantas da chácara, inventando um jeito de divertir-se, enquanto a mãe sonhava jardins e desenhava um caminho verde ou de flores que nem me lembro se desabrocharam.
Minha mãe jovem, de cuja silhueta me lembro com exatidão: a cor que seus cabelos tinham naquela época, o jeito como se maquiava nos anos 70, o sorriso na conversa animada com o pessoal da chácara. O cheiro que minha mãe tinha naqueles dias, o perfume do laquê que usava, o hálito fresco – tão viva sua juventude para mim que despertava a memória de todos os meus sentidos. Tão diferente da mãe idosa, mais frágil, diferente daquela, que me abraça não para abrigar-me mas para abrigar-se em mim.
Ele não sabe que minha saudade aumentou naquela nossa manhã, porque não ficamos assim tão íntimos. Mas a saudade de hoje é diferente da de ontem.
Aqueceu meu coração a memória daquela alegria no peito, os pés descalços pedalando a Monark, as mangas maduras caídas e esmagadas contra o chão do quintal, das quais desviava na bicicleta, os cheiros de manga e flor que o vento jogava contra o meu rosto. Espantou a pontinha de melancolia que toda saudade tem. Era estar lá depois de um gatilho.
E “lá” era um lugar que eu julgava perdido.
Mas que, descobri: a mente reiventa e o coração pode sentir, se a gente se deixa levar.