A certidão de nascimento carioca esta no CCBB

 

As pedrinhas de Oruanda sempre mexeram comigo, desde quando soube da sua existência através da música do Chiclete com Banana, aos meus vinte e poucos anos, lá na terra do axé, na Bahia.

“Pedrinha miúdinha de aruandaê Lajedo, tão forte Pedrinha de aruandaê

Zulê taê,

Zulê tá Zulê taê,

Zulê tá Zulê taê,

Zulê tá Chamando os erês pra cantar com os orixás”

E agora me aprofundei e entendi a beleza da pedrinha, a ideia de um “lajedo tão grande” que significa um conceito espiritual presente nas religiões afro-brasileiras. Em contraste com a “pedrinha miúdinha”, ilustra a dualidade entre o pequeno e o grande, o simples e o complexo, mostrando que ambos coexistem e se complementam. A expressão, em seu conjunto, sugere que cada indivíduo, ação ou elemento, por mais simples que seja, possui um valor e um papel na grande teia da vida e na construção do universo espiritual.

E tudo isso se deleita no espetáculo com muita beleza, um texto muito bem estruturado. Posso compará-lo a uma árvore, com raízes bem fincadas, tronco, ramos e folhas e flores sadias, com belíssimas cores a serem contempladas. Tudo muito bem pesquisado, uma riqueza, o próprio Pau-Brasil, é como identifico a dramaturga.

De orixás à bola de futebol, é de uma perspicácia que transcende.

Entre os ensinamentos de um griô e uma rajada de tiros carioca, assim escorre o texto em nossos ouvidos, que se enlaça à contemporaneidade e à importância do ser, como se misticamente dançasse com os ensinamentos das oralidades expressivas desde o começo de nós mesmos. Incrível. Um mergulho profundo no ontem e hoje.

Uma das mais emocionantes frases que ouvi na vida: o Brasil continua com a mesma teoria escravocrata, com casas e quartos de empregada, a casa-grande e a senzala, roupas brancas nas babás, como se não soubesse do corpo negro em indumentárias brancas, trazendo ao texto Oxalá. Isso é emocionante, uma licença poética incomensurável para aqueles que provam das injustiças, do racismo e do conhecimento das religiões de matriz africana. Um desaguar de resistência negra ao coração desse povo que sofre as humilhações dos senhores dos engenhos, até hoje em muitos de nós.

Daniela Pereira de Carvalho foi um dos nomes que a crítica Barbara Heliodora, no seu livro “A História do Teatro Carioca”, publicado em 2013, profetizou como marcantes no futuro da dramaturgia brasileira. A crítica não era bem vista por todos, mas seu olhar era de águia, muitas vezes pouco gentil, mas leal às sensações dela, e nesse caso específico, ela foi assertiva.

Daniela se debruçou sobre a obra de Luiz Antônio Simas, que pesquisa o Brasil, entende que nesses mares nascem vidas, que nessa terra há riqueza. Na mistura entre a matéria e a espiritualidade há um desaguar de opulência, nos fazendo entender que o Brasil é digno de ostentação. E das palavras por ele escritas era primordial nascer o teatro, o qual é a vida de um texto, ou melhor dizendo, escrituras sagradas de uma cidade, muito bem entendida por Luiz.

Esse espetáculo me trouxe a sensação de mulher apaixonada, ver a colina mais verde e o céu mais azul do que realmente são. Um teatro que, para ser bom, não precisa de práticas atuais como microfones ou vídeos. Ele é o texto, o ator e o espectador, a tríplice cênica absoluta dos tempos primordiais que construíram o que entendemos ser teatro na veia.

A iluminação de Elisa Tandeta é de bom tom, com movimentos elegantes que acompanham as cenas com afinidade. E posso dizer o mesmo do cenário e figurino assinados por Lorena Sender, que trazem dois personagens: os tons, as paletas de cores eram sóbrias, um âmbar, uma mistura, tom de pele. Os três quesitos teatrais brincam, como se estivessem em uma ciranda, compondo uma plasticidade refinada.

Bruce, o diretor, tenho uma coisa a reconhecer: quem é rei não perde a majestade. Bruce é um dos melhores diretores de teatro da minha época, sempre potencializando o teatro carioca, com ideias e montagens diferenciadas. Dessa vez ele se superou. É de assustar essa proeza de ser cada vez maior, como se ele entrasse em um ringue com ele mesmo. Isso é coisa de gente grande! Ainda que não tenha um patrocínio daqueles, ele consegue seguir com beleza irretocável.

À frente da Cia Esplendor, que ocupa o CCBB, comemorando mais um aniversário, traz obras como “Tartufo” e “Revolução dos Bichos” e vai apresentar outro espetáculo, “Hamlet”, que contará com a atriz Sirlea Aleixo. Claro que quem gosta de teatro está ansioso por mais uma obra. Não é à toa que a Cia chama-se Esplendor. Eles são esplêndidos no que fazem.

A obra “Pedrinha Miúdinha” deveria estar em todos os espaços, territórios da cidade do Rio de Janeiro. Cidade essa que, como mesmo diz o texto, foi construída sobre cemitérios indígenas por mãos de escravizados, ancestralidade que compõe o espetáculo. Inclusive, os alunos das escolas do ensino médio deveriam ter acesso a essa obra, porque também conversa perfeitamente com a Lei 10.639/2003, que nos leva ao ensino da cultura afro-brasileira, africana e indígena nas escolas públicas e privadas.

O Brasil é exatamente isso que está em cena: uma mistura de povos, indígenas, negros e colonizadores portugueses. Querendo ou não, o sangue europeu está entre nós. E, dentro desse contexto, a questão de não amar o Brasil, mas amar a brasilidade, torna-se uma pérola aos ouvidos. Um entendimento digno de palmas ou louvor!

Se para o Brasil temos a carta de descobrimento de Pero Vaz de Caminha, “Pedrinha Miúdinha” deveria ser reconhecida como a certidão de nascimento do Rio de Janeiro, nem mais, nem menos.

Exatamente por isso, essa obra não pode parar. Ela carrega história, pesquisa, uma resistência brasileira, sobretudo da nossa cidade que já foi capital desse país. Escolas, turmas do ensino médio, adultos, comunidades, TODOS deveriam assistir a essa montagem, porque ela é educativa e também proporciona reflexão sobre quem realmente somos e como deveríamos ser, ressignificando nossa passagem nessa vida.

Elias Rosa e Lytho Santana, os músicos, dos sopros indígenas ao batuque e também ao som das asas do ubu rei, nascem deles como um rio que emana vida. Eles trazem ao espetáculo a forma mais incontida de um som elevado. Toda a sonoplastia é sublime, coesa e casada às cenas, sem pecar. Nada mais a dizer, afinal, superioridade é a palavra que define esses profissionais…

E ele, deixei por último. Se começo pela dramaturga, preciso terminar com ele. RICARDO LOPES. Conheci o artista através da Cia Esplendor. Bruce, o diretor, sempre enxerga para além nos artistas da companhia. São artistas que podemos comparar ao mais limpo ouro. Damasceno e muitos outros que me derreto diante das atuações. Ricardo também é uma pedra preciosa. Nos encontros da vida, em estreias, eu brincava com um tom de voz diferenciado, gritando “Ricardo Lopes”, mas eu não sabia que um dia ele iria me fazer entender esse hábito. Era como se minha alma já o ovacionasse por essa obra. Ele me encantou e me levou para outra dimensão. Feitiçaria? Vai saber…

O espetáculo também transita pela espiritualidade, invoca a sabedoria dos ancestrais e, claro, Ricardo é coroado com a bênção desses elementos. Eu creio nisso. Ricardo brinca entre um personagem e outro. Um deles parece o malandro, e o outro, um preto velho, cuja idade dobra-lhe a coluna. Cada suor que brota dos poros do ator é a chancela de um esgotamento físico ao exercitar o seu personagem, o ofício do ator, que se deleita em fotografias cênicas de mais alto nível: mãos que tremem, coluna cansada de um preto velho sábio, que vê a vida com deiscência e valores primordiais para cada um de nós.

O corpo do Ricardo é a verdade do corpo negro: malemolente, portador de sensualidade. Seus olhares permeiam entre o ontem e o hoje. Suas embaixadinhas com uma bola aos pés mostram quem realmente somos, sem contar o gole de cerveja que também conta a história da cidade e da história pelo mundo. Defendendo o botequim, que é pura resistência. A voz do artista, que permeia entre um homem e um ancião, é prodigiosa, alcança os céus.

Na verdade, Ricardo já mostrou que é um bom artista, mas já tinha passado da hora do holofote estar somente sobre ele, para mostrar toda sua maturidade artística. São anos se construindo dentro da companhia, e agora ele chegou mostrando tudo que o manteve de pé: a fé e o aprendizado.

Acredito que ele não tenha noção do que ele nos entrega. Gostaria que tivesse, mas, para isso, teria que sair do corpo, e isso é o que menos desejamos agora. Agora é hora de seguir o rio que comanda a vida, o lugar no pódio. Assim espero e torço veementemente.

Ricardo se joga no palco que é dele. Portanto, meu Brasil brasileiro, ele é nosso preto inzoneiro, e me basta cantar-te nos meus versos: abramos alas para o Ricardo passar, sem tapetes vermelhos hollywoodianos, mas com muito sangue negro que o fez chegar nesse lugar, lugar de um artista de excelência.

Já cheguei até aqui e, a meu ver, é o melhor espetáculo de 2025. Mas ainda temos mais cinco meses pela frente…

O tema musical “Dona do Terreiro” foi o escolhido por mim para cantar essa obra, ou festejar, porque é a festa do teatro, uma montagem em que podemos contemplar o jogo cênico e tudo que ele oferece em um corpo também cênico. É festa para todos. Que a dona do terreiro entenda que nossas pedrinhas estão no lugar certo, porque respeitamos nossas histórias e nossos credos.

 

SINOPSE

A mais nova criação da Cia Teatro Esplendor, o solo inédito “Pedrinhas Miudinhas” é
interpretado pelo ator Ricardo Lopes, com direção de Bruce Gomlevsky e
dramaturgia de Daniela Pereira de Carvalho. O espetáculo tem como ponto de
partida o livro “Pedrinhas Miudinhas – Ensaios Sobre Ruas, Aldeias e Terreiros”,
coletânea de 43 ensaios do escritor e historiador Luiz Antônio Simas, além de
apresentar outros textos de obras recentes do autor, propondo assim um mergulho
nas raízes da cultura popular brasileira. Essa é a primeira vez que uma obra de Simas é
adaptada para os palcos, com estreia no dia 18 de julho, no Teatro III, do CCBB Rio.
A obra percorre temas como religiosidade, samba, forró e futebol, além de
homenagear figuras emblemáticas como Garrincha, Noel Rosa e Jackson do
Pandeiro.

 

FICHA TÉCNICA

Interpretação: Ricardo Lopes
Da obra de Luiz Antônio Simas
Dramaturgia: Daniela Pereira de Carvalho
Direção: Bruce Gomlevsky
Músicos: Elias Rosa e Lytho Santana
Iluminação: Elisa Tandeta
Cenário e Figurino: Lorena Sender
Assessoria de Comunicação: Dobbs Scarpa
Direção de produção: Gabriel Garcia

 

SERVIÇO

Temporada: 18 de julho a 04 de agosto de 2025
Dias: sex, sáb e seg, às 19h. Dom, às 18h.
Local: Teatro lll – Centro Cultural Banco do Brasil (Rua Primeiro de março, 66 – Centro
– Rio de Janeiro / RJ)
Duração: 60 minutos Capacidade: 60 lugares Classificação etária: 12
Ingressos: R$ 30 (inteira) R$ 15 (meia)

 

Paty Lopes (@arteriaingressos). Foto: Divulgação.

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Author

Dramaturga, com textos contemplados em editais do governo do estado do Rio de Janeiro, Teatro Prudential e literatura no Sesi Firjan/RJ. Autora do texto Maria Bonita e a Peleja com o Sol apresentado na Funarj e Luz e Fogo, no edital da prefeitura para o projeto Paixão de Ler. Contemplada no edital de literatura Sesi Fiesp/Avenida Paulista, onde conta a História de Maria Felipa par Crianças em 2024. Curadora e idealizadora da Exposição Radio Negro em 2022 no MIS - Museu de Imagem e Som, duas passagens pelo Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com montagem teatral e de dança. Contemplada com o projeto "A Menina Dança" para o público infantil para o SESC e Funarte (Retomada Cultural/2024). Formadora de plateia e incentivadora cultural da cidade.

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