A ALMA PANDÊMICA : Um breve ensaio, para quem não gosta de pontuação, sobre o papel da ARTE no atual contexto

Foto: Flor de Lótus.  SaffuUnsplash

 

Neste exato momento me coloco diante da experiência do olhar um papel
em branco e iniciar uma escrita nestes tempos de reclusão e pandemia. Esta
frase inicial foi repetida em um dos ensaios que escrevi ao longo do
mestrado, mas retorna agora em um momento no qual o medo absorve a
necessidade de produção (acadêmica, literária, de vida) e, no entanto, é
preciso ao mesmo tempo se libertar das esferas do silenciamento.

Demorei um pouco a começar escrever este ensaio ou sobre qualquer
assunto que possa talvez amenizar a forma como estamos nos movendo
(ou anti – movendo) em uma espécie de retrocesso neste momento. O que
não posso deixar de abordar, mesmo que o desejo de escrever esteja
relacionado a uma necessidade de fala sobre o papel da arte
especificamente neste trabalho, é sobre os efeitos da pandemia gerados
em nossas vidas, e como esta palavra tornou-se sinônimo de medo (para
alguns, ou para todos).

 

Tenho nestes últimos dias me absorvido de algumas leituras sobre política
e o papel da arte neste momento; e esta escrita afetada em parte pela
abordagem de José Gil através de seu ensaio “Medo”, publicado pela n1 –
edições. Entre uma notícia que nos corta e outra, permaneço com a fala de
Gil para pensarmos juntos o que estamos vivenciando neste momento,
recorrendo ao que ele diz o medo não é uma atmosfera, mas sim uma
inundação.

 

Alguns meses atrás (que nem mais lembro de qual) vivíamos em nossas
rotinas, dentro de nossas bolhas particulares, com nossas próprias
ansiedades. Se o medo existia, este era de nós mesmos, das nossas
preocupações (que ainda existem em outras esferas). Neste momento,
temos medo do outro e do desconhecido. Este medo, segundo Gil, está
associado a um certo aspecto de ignorância, por não saber ou confiar que
o outro possa ter o mesmo pensamento que o nosso.

 

Neste caso, a segurança voltada para um bem maior que não apenas nós
mesmos, mas pensando na sociedade de forma mais global. Sim, estamos
vivendo um paradoxo, porque ao mesmo tempo que temos medo,
necessitamos olhar com cuidado para quem / o que tenhamos nos
distanciado ou esquecido (mesmo que nós mesmos). Vejamos o caso no
cenário político brasileiro atualmente, no qual temos medo do que o outro
pense e que de uma certa forma por ser diferente do que pensamos, isto
se torna uma ameaça em nossas vidas interferindo em nossas esferas de
comportamento. Na rua e em casa. Na rua que agora é nossa casa.

Poderia talvez falar de assuntos menos dolorosos, ou que estão sendo
repetidos massificamente, como tem feito as redes sociais. Mas do mesmo
modo que tenho refletido sobre o medo e as nossas angústias, penso no
papel da arte como uma abertura de espaços para a construção de um
senso crítico, e para uma percepção maior sobre o que queremos,
desejamos, o que somos, e possivelmente deixaremos de ser a partir deste
ano, sobretudo para nos perguntarmos qual nosso desejo enquanto algo
que nos afeta, ou nos coloca à margem do mundo.

 

Não há como pensar sobre a relação entre a arte e a verdade sem associar
à realidade vivenciada por todos nós neste exato momento. Nada mais
atual do que por exemplo falar sobre pessimismo quando olhamos as
notícias que nos assolam, e refletimos, com certo agouro: para onde
vamos? E onde paramos quando não percebemos a relação de se afetar
ao nosso lado. Precisávamos de um vírus.

 

As relações de afeto, construídas de forma mais natural pela arte, e talvez
menos dura que a realidade foram esquecidas. Talvez este seja o papel do
artista, e aqui coloco concedo esta função ao próprio escritor já citadas por
Nietzchie quando o autor fala sobre negar a vida e conferir à arte um maior
valor do que a própria verdade. Quando Nietzsche convida Wagner para um
diálogo, ele expõe a arte como uma atividade metafísica tornando o
pessimismo menos forte porque considera a arte mais divina que a
verdade:

Segundo o que parece, ninguém mais do que o autor deste livro –
O nascimento da tragédia – defende uma radical negação
da vida, um real fazer-não, mais ainda do que um dizernão: porém,
ele sabe — ele tem essa vivência, talvez até
não tenha outra vivência para além dessa — que a arte
tem mais valor do que a ‘verdade’. Já no Prefácio, no qual
convida Richard Wagner como que para um diálogo,
aparece a profissão de fé, o evangelho de artista:

“…‘a arte como a autêntica tarefa da vida, a arte como actividade
metafísica’…Este livro é, assim, anti-pessimista:
nomeadamente no sentido em que ensina algo que é mais
forte do que o pessimismo, mais divino do que a ‘verdade’:
a arte. […]” (NIETZCHE, 1888 ).

 

No entanto, a abordagem sobre arte relacionada a uma forma de fazer
política abre espaços para falarmos de outro assunto que criou outros
contornos neste exato momento de pandemia. A abordagem sobre política
e a visibilidade dos corpos, sobretudo, do corpo negro e do corpo pobre. A
partir da leitura de Esferas da Insurreição (2018), percebemos esta questão
ao enunciarmos os seguintes pontos a partir de uma escrita atravessada
pelo pensamento de Suely Rolnik.

 

Conferimos ao leitor, assim como Rolnik (op.cit.), a possibilidade de
compreender e escolher suas ações e fazer os próprios recortes e
interpretações do texto, quando escolhemos não a obra como um todo, mas
apontamos alguns elementos que se repetem durante a construção dos seus
ensaios que partem de uma análise social, psicanalítica e filosófica
comparados aos acontecimentos políticos da época em que foram escritos,
mas que podemos relacionar com as medidas e escolhas sociais do exato
momento em que estamos vivendo.

 

Os ensaios de Suely Rolnik (op.cit.) surgem a partir de um instante em que
nossos modos de vida passam por um momento considerado por ela
contrarevolucionário. Segundo a autora, vivemos imersos em um sistema “heteropatriarcal”,
“colonial”, e “neonacionalista” que visa um desfazer de conquistas em longos
processos de emancipação operária, sexual e anticolonial dos últimos
séculos.

 

O que Rolnik nos aponta é um futuro mutilado. Podemos abrir aqui um
parêntese para o atual cenário pandêmico onde não há pontuações
referentes aos esquemas que manipulam nossas redes nas esferas da
saúde e da política. Vivemos em – reidados. Encapsulados por um poder
que está acima de todos (uma pequena pausa para trocadilhos sobre
jargões presidenciais), e abrimos espaços para uma pós ação incerta. Não
sabemos para onde vamos, e sequer podemos considerar de forma
existencialista quem fomos em algum momento atrás. O tempo, na era
pandêmica da COVID -19 é também mutilado como o corpo que nos espera
em alguma esquina que não revisitamos há algum tempo.

 

Esta perda de identidade tão demarcada em nossas quarentenas
reprimidas por um vírus pode ter explicação em uma possível herança do
que Rolink aponta como opressão colonial e capitalística na qual estes
sistemas acabam por reduzir a experiência do sujeito.

 

De acordo com Rolnik (op.cit), a psicologia do eu está relacionada ao
insconciente colonial. No Brasil, isto se evidencia a partir do momento em
que percebemos a própria tradição psicológica relacionada ao início dos
impérios coloniais e patriarcais europeus onde padronização colonial e
sexual precisaria de um duplo processo de descolonização e
despatriarcalização.

 

Todo este mal-estar acaba configurando uma atmosfera de angústia,
semelhante ao que vivemos neste exato momento. Semelhante à época em
que o livro de ensaios Esfera da Ressurreição foi escrito, vivemos uma
espécie de retorno a outros tempos, onde temos que buscar de alguma
forma atenuar conforme a própria autora fala, a dor de suportar a exclusão,
o exílio, a censura ou castigo social ou um outro tipo de exercício de fé. Se
Rolnik nos reporta a uma espécie de análise sobre outros tempos políticos
exemplificando de forma contudente a ditadura no Brasil, hoje nos auto –
reportamos a outro tempo, onde as mesmas esferas de proteção e cuidado
se repetem diante da repressão. Se antes, e ainda hoje a repressão é
política, o agora nos coloca diante de outro tipo de enfrentamento. A
repressão de nós mesmos, nossas ideias, nossas angústias e o próprio
questionamento da vida: e agora, por onde e quais estratégias de fuga e
reconfiguração a seguir?

 

Neste sentido, qual seria o papel da arte neste momento no qual estamos
submersos a novas rotinas de vida, ou a novos modelos nos quais somos
submetidos para nos mantermos de pé diante do atual cenário de
pandemia. Ainda persistindo no caminho onde Rolnik nos aponta novas
esferas ou possibilidades de pensamento, é preciso como ela diz pensar a
arte como um trabalho micropolítico e também clínico.

 

A partir da sua colaboração com com artistas como Lygia Clark, Rolnik nos
aponta um novo caminho para arte a partir de uma reinvenção da
psicanálise mas confere ao seu leitor a possibilidade de pensá-la a partir
de um entedimento em conjunto desta esfera com a política. Rolnik nos
mostra um caminho no qual podemos começar a pensar na obra como um
ato, deslocando o papel do expectador para a própria obra. Esferas da
Insurreição abre, neste caso, um espaço para uma leitura a partir das
perguntas sobre o que fazer, o que falar, o que escrever, o que pensar e o
que dizer a partir de uma vontade de conservação da vida, no levando a
pensar e entender sobre a política do desejo.

 

Para onde queremos ir, e de onde queremos partir?

 

RENATA BORGES

 

 

Author

Colaboradora e Membro do Corpo Editorial do Site ArteCult, e Doutoranda em Letras pelo Programa de Pós Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Mestre em Letras pelo Programa de Pós Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, contemplada com bolsa de estudos vinculada ao CNPQ. Instrutora de Pilates, ministra aulas particulares voltadas a diversos públicos. Mestre em Reiki, atua como difusora do método em atendimentos particulares e à distância. Desenvolve um trabalho de criação, direção e interpretação em dança contemporânea, que investiga o estudo do gesto nos terreiros de candomblé como fundamentação para uma escrita performática a partir da observação dos estados corporais no ritual e na performance.

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