“há tanta coisa que sem existir
existe
existe demoradamente
e demoradamente é Nossa
e Nós “(Fernando Pessoa)
Eu me senti transparente quando nos encontramos. Contei sobre os projetos para o ano seguinte, sobre a compra de um carro. Mas você não pode dar-me atenção. Sua família reunida, as pequenas vitórias dos mais jovens a orgulhar-nos, a preocupação com os idosos, tudo nos interrompia. Os filhos querendo diminuir o tempo da nossa despedida, ansiosos para retornar à casa, ao desenho, ao videogame.
Você não prestou atenção, mais acostumado a falar de si do que a perguntar por mim. Usou o assunto do meu aniversário para falar da festa que fará no seu. Interessou-se por minha saúde para contar-me dos resultados dos seus novos hábitos de alimentação.
Eu já não dormia. Deixara de sorrir há meses. Desliguei os interesses. Meu silêncio se quebrava, somente, com o som dos carrinhos dos meninos, brincando no quarto, lembrando-me que era hora de alimentá-los ou mandá-los dormir.
Eu pensava que você, entre todos, perceberia. Embora eu disfarçasse. Ligava a tevê para fazer barulho, acendia as luzes da casa. A vida parecia normal embora fosse tarde para tudo que deveríamos ter conversado.
Eu quis dizer a você mas pensei não adiantar mais. Quis ligar mas achei que estaria ocupado para atender. Eu perdia o fôlego, de madrugada, sem você saber.
Estava no mundo. Misturava-me. Esgueirando-me entre as pessoas na reunião da família ou nos intervalos de almoço do trabalho. Acompanhando a multidão. Eu compunha cenários. Um pano de fundo. Minhas vontades não estavam à frente. Minha urgência não era prioridade. Transparente, eu disse. Você, ao menos, me escutou?
Nada dissemos. O que calamos poderia precipitar rompimentos ou piorar a saúde dos pais. Atrapalhar a estabilidade dos filhos, os seus, os meus, a esperança no futuro. Vir à luz abalaria o mundo. Ficamos acostumados à sombra.
Desejei que você chegasse em cada noite do inverno. Você me prometera um foundue, eu esperei. Na primavera, abri a janela para que você visse as luzes acesas, a caminho de casa, tendo certeza de que eu não dormiria. Quem sabe viesse e, finalmente, escutasse o que eu tinha a dizer.
Ouvi o estrondo na rua de baixo, onde você morava. Havia sirenes, corri para a varanda. Vi a fumaça fluir na direção do céu. Corri até a porta do prédio de onde esperei que você saísse, enrolando suas crianças no cobertor, talvez de mãos dadas com ela. Eu nunca soube se ela voltara. Vidros estilhaçados. Familiares aflitos. Pequenas explosões.
As pessoas se acumulam em torno de mim. Alguns moradores são atendidos. Eu não suporto a ideia de recolher todas as palavras por dizer. Não saberei sepultar em mim esse amor. Atende o telefone, vai. Aparece na portaria, anda.