Em pleno subúrbio carioca, já que Deus é brasileiro, Ele veio. Nada de muito pirotécnico ou expressivo. Não houve mudança climática, chuva torrencial ou um Sol de lascar moleira. Ele veio. Sem cerimônia. Decidiu assim vir por pura saudade. Há muito tempo que não pisava em solo criado. Deixara tudo às soltas, sob as rédeas das leis da natureza, em Suas férias monumentais, observando outros universos e criações, quis voltar para se divertir com aqueles que eram Seus semelhantes.
Bairro melhor para aparecer não havia: Água Santa. Sentia-se em casa. Quando criou o mundo, era ali que estava a pedra fundamental de tudo. Fez questão de olhá-la, contemplando, sentado em um banco de praça criado pelos seus. Leu em bom português, “Deus seja louvado”. Foi nesse breve tempo em que algumas pombas, uns cães vadios e alguns gatos magros resolveram se aproximar. Sabia o nome de cada um deles. Alguns eram seus amigos do passado. Deu-lhes de comer com um estalo de dedo. Brotou, com o verdadeiro passe de mágica celestial, a iguaria preferida de cada um deles. Era cedo, o Sol estava começando a despontar no horizonte, as ruas cinzas e brotadas de silêncio e vento ganhavam seus contornos singulares. Estava decidido a tomar um banho nas Águas Santas de Água Santa. Por mais que ali houvesse a pedra fundamental do mundo, não fora ali que havia criado a água. Os bichos O seguiram. Conseguiu achar um pedaço do córrego original que deixara por ali havia milênios. Era pouco o espaço. Tudo à volta estava tomado de uma maquinaria que sugava a água e a embalava em galões azuis a serem comercializados. Todos os bichos beberam com certo receio aquela água. Tinham algum medo. Observavam ressabiados. Pediu para que se acalmassem. Nada iria acontecê-los aquele dia. “Hoje vocês estão Comigo”, disse-os, respeitando o uso da maiúscula gramatical quando sobre ele escrevem. Ops, Ele.
Era próximo das seis da manhã, Seus ouvidos sensíveis a tudo já podem ouvir as movimentações humanas. Deu por falta de algumas árvores, outras formações rochosas, mas sabia da capacidade do homem em mover Suas montanhas. Isso, no fim, não O incomodava. Deixara mesmo a cargo das ordens da evolução natural a seletividade exótica e contumaz do mais forte sobre o mais fraco. Por conta disso, deu aos seres vivos a chance do retorno, de voltarem a esse lugar abençoado para viverem a vida que bem quisessem, no óbvio limite da Biologia e das leis naturais. Por exemplo, entre os bichinhos, estavam um ex-anjo, um imperador etíope do século XII e um antigo deus olímpico. Viviam agora vidas simples, afeitas aos limites daqueles bichinhos em que se transformaram, pelo desejo de retornar que lhes fora dado. Estavam se banhando todos, quando surge um homem robusto, trajando um uniforme, gritando com todos aqueles seres, tentando vencer as próprias pernas que o faziam arfar obcecadamente. A fonte pertencia a uma empresa e os sensores de invasão apitavam alto na central de comando. Foi ali que o vigia deu de cara com Aquele Homem Altivo, de estatura mediana e sorriso carismático. Trajava roupas simples. Um tanto magro. Calça jeans molhado, uma sandália franciscana rangendo, blusa preta. Ele levantava, saía de dentro do córrego. Pediu para os bichos seguirem suas vidas, nenhum ficou para defendê-Lo. Aliás, nem precisaria. Com a saída cadenciada dos bichinhos, passos calmos e voo em precisão, o vigia também se aplainou. Esticou a mão àquele Homem, que tinha uma energia viva. “O que você faz dentro do Rio?”, “Vim só matar uma saudade”, “Eu na tela só vi os bichos se divertindo na água, não tinha te visto.”, “Eu é que não queria ser visto mesmo”, e deu uma leve risada.
“Você vai me prender?”, perguntou Deus. “Não, não! Só peço que saia”. Não se demorou muito e resolveu seguir. Antes, olhando o vigia, que O olhava atônito, em dúvida dos sentimentos que aquele Homem lhe produzia, decidiu que não deveria seguir flanando por aí molhado daquele jeito. Uma brisa quente o envolvera, secando-o. O vigia, desacreditado da cena, forçou os olhos. “Você tem a mesma mania de seu bisavô”. Escutara isso num passado distante, de sua avó, que dizia ver naquele netinho, que crescera um homem robusto, uma semelhança com o pai, falecido 20 anos. “Você conheceu meu bisavô?” O Homem ri.
Depois de finamente seco e podendo voltar aos passos, seguiu as ruas distraidamente, lento. Tinha se esquecido da sensação do Sol no corpo. Desabotoou a blusa três casas apenas, queria sentir aquele toque quente e aveludado do hélio incandescente daquela estrela. Passou a ver carros. Julgou que fora um dos maiores erros cometidos pelos Seus semelhantes trocar a carroça pelo carro. Isso os apressou. Mas sempre soube que eram apressados. O que o cavalo fez a eles o cavalo-vapor deu maiores possibilidades. O barulho ritmado e grosso, de profusas fumaças, escondia o som silabado dos ventos. Era uma invenção que Lhe conferia orgulho e apreensão. Era preferível não ficar opinando, estava ali para matar saudade. Não demorou muito, entrou na rua do presídio. Não lembrava muito dele. Deixou tudo a cargo dos homens mesmo. Aquilo era obra deles, tipicamente.
Havia uma padaria próxima, resolveu sentar. “O Senhor vai querer alguma coisa?”, estranhou o fato de ser chamado de Senhor, pois há tempos fora do planeta, perdera o costume da alcunha, “Não sei, o que me sugere?”, “Pingado e pão na chapa”, “Então, pode ser”. Olhava pra rua, na frente do presídio começava a concentrar um grupo de pessoas, principalmente mulheres e crianças, à espera da hora da visita. O pão e o pingado chegaram. A padaria começa a encher. Principalmente de pessoas apressadas. Alguns poucos homens sentados no balcão, também tomando café. Um menino senta à mesma mesa que Deus. “Por que você brilha?”, “Eu brilho?”, “Mãe, olha o moço aqui, ele brilha, não brilha?”, “Júnior, para de aborrecer o moço, deixa ele!”, ela não sabia quem ele era, por isso disse o ele em minúsculo. Moço também. Deus ri. Bebe do café. Oferece um pedaço do pão. O menino levanta rápido. Corre em direção da mãe. Um senhor pede licença pra sentar naquela cadeira. Nem trocam olhares mais profundos. Deus termina seu café. O homem agradece e vai embora. No balcão, já mais vazio, Deus pede a conta e se incomoda com a imagem de um homem de cabelos longos com ar suplicante. “Senhora, quem é?”,”Como assim? Aquele é nosso Senhor Jesus!” , “Aquele é Jesus?”, “Sim, todo mundo sabe que aquele é Nosso Senhor Jesus Cristo!”. Deus ri. Não uma gargalhada aberta, mas tem lá seu deboche, ao ver que aquela imagem nada tem a ver com o verdadeiro.
Hora de andar mais. Deus segue a pé pro Engenho de Dentro, pensou em materializar uma bicicleta ou um skate, mas desiste, pois logo perceberiam que seu equilíbrio seria exótico demais. Sua caminhada é constante e rápida, macerada na pressa e no desejo de continuar matando saudade. Era quase sete da manhã quando viu o trânsito do Méier tomado de carros e motos por todos os lados. Crianças de uniforme, pais assoberbados, alguém grita, Ai meu Deus, mas viu que não fora reconhecido. Era um jovem, quase atropelado por um ônibus. Deus está mesmo na metade da rua Dias da Cruz quando decide pegar um ônibus.
O destino não era o maior desejo, mas a proximidade com as pessoas. Resolve fechar os olhos, ouvir pensamentos. As súplicas de sempre. Até que sentiu uma mazela absurda. Era a pureza do ódio de um homem pelo trabalho, pelo chefe, pela vida, por tudo. Resolveu sentar-se ao lado dele. Queria puxar uma conversa. Ver se conseguia dissuadi-lo de tudo aquilo.
– Olá, posso?
– Claro. Tá vazio.
– Obrigado.
Breve silêncio.
– Esse ônibus vai pra onde?
– Ahn?
– Sabe pra onde vai esse ônibus?
– Centro. Candelária. Vai soltar onde?
– Não sei. Ainda não sei.
– Como assim?
– Sem rumo hoje.
– O Senhor tá bem?
– Eu que pergunto, você tá bem?
– Como assim? Ahn?
– Você não me parece calmo hoje.
– Tá tirando uma comigo?
– Não! Claro que não.
– Tu não é daqueles pastores chatos pra dedéu que vêm do nada dizer da palavra do Senhor e bla blá blá!?
– Não! Claro que não.
– Te contar uma. Se tu tem alguma ideia dessa de me mandar algum sermão, te digo logo, Deus não existe, isso é invenção desses que são fracos de cabeça e que querem de alguma maneira de se sentirem bem. Deus é um produto para uma coletividade de fracos – Deus se silencia. E ainda mais, me deixa dormir.
Deus ficou atônito. Sentiu um pouco de Suas forças exaurirem, em plena manhã de retorno. Mesmo com um baque do descrédito, da desconfiança de que não mais existe, Ele prefere respirar fundo, ainda permanecer sentado ao lado daquele homem, que agora tenta dormir antes de chegar ao trabalho, e continuar sua jornada particular de matar saudade da humanidade. Ele até lembra das vezes em que ficou irado com as pessoas, mandou-lhes pestes, destilou Seu nervosismo, mas agora era um Deus terapeutizado, do Impossível, que não ia ficar enviando chagas e mais chagas.
O ônibus segue seu caminho. Deus se levanta para uma moça grávida, que espera um menino de inteligência ímpar e que vai mudar profundamente a história daquela família de pessoas há muito tempo pobres. Continua escutando seus pensamentos, alguns difusos, outros profundamente preocupados em agradar ao Divino. Pretende descer. Era próximo da região da Tijuca, ao lado de uma igreja que o fez ainda mais gostar de ter parado, Igreja de São Francisco Xavier. Entrou e nela sentou. Estava vazia. Mais um cachorro se aproximou, muito esmirrado. Aquele era um ex-padre, profundamente pecador, punido com o retorno. Deus não se conteve e deu-lhe a cura para aquelas feridas e o alimentou. Não percebeu que era observado pelo próprio sacristão, que se assombrou com o poder daquele homem. “Quem é você?”, “Eu?”, “Eu vi o que Você fez”. Deus levemente ri. Tem um ar de súplica e encontro naquele sorriso. O sacristão, assustado e ao mesmo tempo embevecido, diz, “Aqui é a casa do Senhor”.
O silêncio após a fala se manteve por mais alguns minutos, enquanto o cachorro, visivelmente outro, alimentado e com pelos brilhosos, agradecia ao seu Benfeitor o fato de não mais ser um resto de vida e ter ali, talvez pela primeira vez em séculos, algum direito à dignidade reestabelecida. Deus continuou a acariciá-lo e, em súplica aos pedidos caninos, deu a ele o direito ao sono eterno. O humor do sacristão se transformara. Como assim, uma pessoa com tamanho poder, tiraria a vida de um inocente cachorro que acabara de ser ajudado? Transtornado e pesaroso, o sacristão olha fixamente para Deus e diz, “Aqui é a casa do Senhor! Vade retro, Satanás!” Era um segundo baque, dessa vez de um fiel de dentro de Sua casa. Lembrou de Franciso Xavier, de Navarro, que havia sido homem bom e propagador da fé que O alimentava. Ali não estava um homem digno, ou talvez um homem profundamente tomado pela dúvida, que com certeza não O deixaria explicar quem era. Deus prefere, uma vez mais, o silêncio à explicação.
O corpo do cachorro desaparece. O sacristão se assusta ainda mais. Deus não está para brigas. Sai dali. Descobre o metrô e desce as escadas, descobrindo outra grande maravilha recente da humanidade. Um tom mais ameno que o ônibus, com ar condicionado mais potente, maior conforto e estações climatizadas transferem a Deus uma sensação de acolhimento. Estava menos cheio. Continuou em direção ao Centro.
Estação Uruguaiana. O vuco vuco é assustador e gracioso. Queria matar saudade desse mundaréu que Ele mesmo criou e que ali se personificava no caos sistemático humano. Deu por falta de algumas árvores do passado, mas não tinha o direito de questionar o livre arbítrio humano. E esse respeito à Própria lei parecia mais necessário do que nunca. Ele, que deixou um mundo pleno para todos, agora vê essa degradação que O abobalha e O deixa desnorteado. Mas, no fundo, Ele sabia que isso era assim mesmo, que logo aconteceria. Os animais como um todo tinham essa capacidade de mudar a natureza, não tanto quanto os homens, Ele sabia. Mas, no fundo, nem Ele mesmo esperava que mudassem tanto e tudo à volta. No fim de tudo, estava amando aquela mudança. Sabia que a natureza logo logo recuperaria seu posto. O homem, à Sua imagem, é temporário. Ficou na dúvida por onde seguir. Foi numa onda humana, em que todos andavam pra esquerda. Deu na Presidente Vargas, uma avenida longa e retilínea. Resolveu descer a rua, seguir o fluxo dos carros. Lembrou lentamente de como ela foi construída. A devastação do matagal uns séculos antes, a construção da igreja, isso O fez bem. Viu como acertada a decisão de retornar para um passeio.
Tomou um susto. Passou por Ele um veículo eletrificado bem modernoso e chique, leu suas siglas, VLT, e se admirou pelo desenho tão ao gosto do novo século. Sua memória prodigiosa também se lembra do dia em que inspirou a percepção de que Sua principal energia criadora, a eletricidade, poderia ser medida e usada por esse animal maravilhoso fruto de Sua criação. Viu que funcionava também como o metrô. Materializou o cartão de entrada, visto na mão de uma jovem que aportava uma criança no colo, e entrou, ajudando-a a parar em um dos assentos, “Obrigada”.
Os bancos eram em forma de Ilha, um se posicionava em frente ao outro. As pessoas de uma forma ou outra se olham, têm acesso ao breve mundo que se abre com esse posicionamento. Deus tem pernas largas, firmes, um pouco longilíneas, de pés calçados em sandálias franciscanas, unhas quadradas e justas, bem cuidado. Resolvera vir em uma imagem mais clássica de sua personificação, com barba volumosa, cabelos bem cheios. Tinha o tom de pele levemente amorenada, puxada pra um tom avermelhado de jambo, o que Lhe conferia um certo ar de saúde e vida próxima à praia. Apresentava certa corpulência, não veio como um homem magro, famigerado. Não quis ter o volume físico dos halterofilistas. A blusa escura O dava certo ar de vocalista de banda de Heavy Metal. A criança no colo da mãe O olha. Parece entretida e maravilhada com pouco. A mãe percebe a forma como sua criança está entretida e fixa naquele homem de ar misto de tranquilidade e pouca afeição. Ela tenta lê-lO. Tem um ar resoluto. Parece-a calmo demais, com um leve sorriso que beira a esquisitice. Passa a receá-lo. Começa a supor se era um desses drogados que ficam vendendo miçangas na praia, desses aliciadores de criança. Seu coração se alerta para algum perigo.
Deus se manteve entretido à criança. Não percebia os olhares de estranhamento da mãe. Sempre teve uma predileção pelas crianças. Quando decidiu criar Adão e Eva, não os fez adultos. Adão, o primeiro, era Aleph, o menino. Depois de muito imaginar o todo dos planetas, queria um bípede diferente. Dos traços originais dos primatas, que havia desenhado alguns séculos antes, decidira que iria criar um ser e depois a ele se assemelhar ( chupa, Darwin). Assim que o fez, em uma versão criança, imaginou-Se adulto. Um tom de frio no espaço onde estava o fez criar barba. Tinha gostado da pelagem dos ursos e dos leões. Conferiu-a ao homem. Se a barba estava para o homem, deu-lhe alguma força, um pêndulo e um pouco do desejo da exploração. Algo que também marcava Deus, um desejo para se conhecer as coisas. Para todos, deu também uma fêmea, a quem se conectasse, pela expressão divina do sentimento. Foi aí que imaginou que seria perfeito se todos fizessem de si uma mistura com o outro, criando crianças. Amou a ideia, refez o esboço dos mundos e decidiu concentrar tudo em seu aquário de maior amor: a Terra. Ali estariam todos que vivessem. Decidiu pensar outros mundos depois.
A criança O fita constantemente. A mãe saca de um celular, coloca desenhos e dá nas mãos da neném. Mesmo assim, ela fita Deus. E Deus a retribui. Começa a fazer leves caretas, que puxam da criança uma gargalhada gostosa. A mãe dá um sorriso burocrático. Das caretas, decide aos truques com dedos. Até que decide forjar a imagem brilhosa de um cachorrinho. Trouxe em uma luz sutil e constante, abobadada, as lembranças de um cachorro que fora daquela mãe. Ela vê e se surpreende. Joana era o nome daquela mãe. Enquanto a criança não dimensiona a grandiosidade daquele truque, Joana não acredita no que vê. Ela, primeiro, tem dúvidas. Não pode ser Pitoco. Deus aproxima a mão que brilha da criança. Joana não aceita bem. Esquiva o rosto para não mostrar que está emocionada. As pessoas próximas parecem não prestar a atenção, estão disformes e distantes. O VLT para próximo do Museu de Arte do Rio. Joana é rápida em descer. Dá um sorriso amarelo e burocrático mais uma vez e segue.
Não era ali que ela pretendia descer. Mas, para quem é mulher na cidade grande, com uma criança no colo, não é seguro ficar dando papo para homem esquisito, com cara de maluco. Já bastava seu ex-marido. O VLT segue e nada do homem ter saído. Ela se sente melhor e decide andar. Queria ir para longe daquela estação. Pegar outro ônibus para conseguir chegar à própria casa e fazer a neném dormir.
Não deu um minuto, um cachorro passa ao lado dela e pede carinho. Ela se assusta. Ele sobe nas pernas dela e chora um choro conhecido, antigo, de matar saudade e pedir bola. Do susto à constatação, não podia ser.
– Me lembro do quanto você amava Pitoco – Joana berra a ponto de assustar sua criança, que chora.
– Como você sabe?!
– Não importa. Apenas sei. E ele está aqui. Vi que precisava se sentir um pouco melhor. Você está cansada – uma lágrima cai do olho esquerdo de Joana – brinque um pouco com Pitoco, ele também sente saudades suas.
-Mas… como isso é possível? Quem é você? – o ego divinal não o deixa responder. Só, de novo, seu leve sorriso carismático e ambíguo.
Deus senta em um banco. Aproximam-se pombos, Pitoco e alguns gatos. Todos são alimentados pela mão divina da fartura. Joana olha para os lados para ver se mais alguém percebia aquela esquisitice toda ali.
– Então, você é algum mágico muito habilidoso. Só pode.
– Pode se dizer que sim.
– O que quer de mim?
– Nada. Apenas que se sinta bem.
– Por que quer que eu me sinta bem?
Outras crianças se aproximam e começam a brincar com os bichos. Nunca haviam se sentido tão bem.
– Joana, deixa sua neném também brincar.
Pitoco se aproxima e se deixa acariciar por aquela que era a filha de Joana. O cachorro deita, fecha os olhos, seu ar tranquilo vai levando o ambiente a uma a calmaria quase silenciosa. O arrulho dos pombos cessa. As crianças não intencionam correr. Há um tom de admiração coletiva no ar. Joana ainda é cética e reticente. Se tinha alguma pressa em chegar a algum lugar, agora não mais. Joana senta, ressabiada, observando aquele homem inexplicável.
– Você vai me dizer quem é?
– Quer caminhar?
Eles se levantam. Joana pega sua neném no colo e Pitoco desperta. Os pássaros se dispersam e os demais animais tomam seus rumos. As crianças passam a voltar para seus pais, que pouco tinham percebido da distância que tinham tomado.
– O que você quer mim?
– Eu? Nada. Há muito tempo que não quero nada. Hoje vim só pra matar a saudade de vocês.
– Quem é você?
– Importa mesmo?, Joana dá de ombros. Pitoco se locomove calmamente ao lado de sua antiga dona. Resoluto – Você ainda gosta de comer cachorro-quente?
– Como sabe?
– Com muita batata palha, não é?
Os dois comem cachorro-quente com uma Coca-cola. Pitoco ganha alguns pedaços. Olham para o mar, aproveitando o breve momento. Deus se sente em casa. Queria poder viver essa paz que sempre prometera. Joana parece mais à vontade, aceitava Pitoco e Aquele Homem com ares divinais.
– Quando você for embora, eu vou morrer?
– Morrer? Por quê?
– Você é a Morte, não é? Está apenas me dando alguns agrados para depois me levar, correto?
– Eu não sou a Morte.
– Não?
– Não mesmo.
Ela respira fundo. Dá uma última mordida no cachorro quente e acaricia o cachorro. Sua neném dorme o sono dos justos, com leve ronronar.
– Você pode me dizer sobre o futuro, então?
– Posso. Mas devo?
– Se você não é a Morte, você deve ser algo pior. Mas não quero mais saber. Quero saber da minha filha.
– O que tem ela?
– Ela vai ter mais sorte do que eu?
– O que chama de sorte?
– Ah, você sabe! Sorte, do tipo que a gente tem carreira, futuro. Essas coisas.
– Não há sorte em você ser a única mãe possível pra sua filha?
Joana bebe mais um gole da Coca.
Segue-se um silêncio de mais de cinco minutos.
– Mas ela vai ter uma vida diferente, não vai?
– Sim. E você terá muito a ver com isso.
– Ah, com certeza! Eu vou nessa. Obrigado pelo dia.
– Quer levar Pitoco com você?
– Posso?
– Claro, é seu cachorro.
– Como vou explicar sobre ele aos outros.
– Só diga que é muito parecido. Só isso.
– Tá. Tchau!
Pitoco lambe as mãos de Deus e segue, agradecendo ter voltado.
Um certo sentimento de esperança retorna. A tarde com Joana foi boa, apesar do leve desconforto dela. Compreensível no final das contas. No entanto, Ele não percebeu que era observado à distância por algumas senhoras que panfletavam para um grupo religioso que pregava o retorno de Jeová. Todo dia, por volta das oito da manhã, elas chegavam com seus panfletos, livretos e, apoiados em um suporte que os colocava organizados em um tipo de vitrine portátil, elas os entregavam mediante visita em sua igreja. Naquela tarde de Sol, depois de pouco comerem e de beberem pouca água, tornaram-se reais testemunhas do retorno da vida de um cachorro. Podiam se dizer mesmo testemunhas. Estavam maravilhadas.
Passaram a última hora ligando para a congregação. Uma, em especial, gravou o momento em que o cachorro fora materializado. Não tinha dúvidas: Aquele homem só podia ser Jeová. “Miga, não estou brincando com isso! Eu mesma testemunhei aqui. Não! Não sei quem é a mulher! Ahn? Será?! Será que é Nossa Senhora?! Oxalá, Glória!” E uma foto da moça com a criança corre os grupos de mensagem da igreja. Durante o momento em que Deus, obviamente sendo o Ele, estava a trazer uma paz à Joana, não percebeu que se avolumava no silêncio da virtualidade da internet um grupo que já O elevava e que queria que Ele se pronunciasse. Ao longo de todo o papo com Joana, foram chegando mais e mais senhoras. Elas preferiram se avolumar, tornar-se a igreja fora da igreja e continuarem observando. Deus caminha, impávido, alheio ao poder humano das criações em torno Dele.
Um outro grupo decidiu seguir Joana. Conseguiram localizá-la em redes sociais, surpreenderam-se negativamente ao saber que ela tem uma filha, ao invés do próprio Menino Jesus. Alguns começam a especular que Jesus agora viria menina, pois o século XXI é delas, das mulheres. Alguns já compartilhavam fotos de “Nossa Senhora, a Menina” acreditando que a criança seja a reencarnação de Jesus. A dúvida paira sobre Pitoco. Quem seria o cachorro? Seria José? Seria um dos Reis Magos? Ou um dos apóstolos? As especulações são infindas. Uma carola declara ter certeza de que era Francisco de Assis, o Santo dos Animais. Ela chega, através de um aplicativo, a colocar a foto do cachorro ao lado da do santo para ver como eram parecidos. Usara a pintura feita por Giotto, em que aparece também um Jesus-pássaro. Acredita até que algumas manchas nas patas seriam os mesmos estigmas de São Francisco.
Passaram a imaginar qual hora seria a melhor para falar com Jeová. Estavam seguindo a distância, não só por discrição, mas porque muitos tinham moléstias que incapacitavam à rápida locomoção. Um grupo de jovens já pensava no cântico que entoaria quando diante Dele estivessem. Deus alheio a tudo.
Em sua caminhada solitária, a observar pessoas que apenas passavam em sua frente, sem usar seus tão amplos e inimagináveis poderes – até para esse que conduz as palavras aqui – viu uma placa escrita sinalizando Centro Cultural Banco do Brasil. Por ser o Todo Poderoso, tinha um orgulho particular de Sua criação: museus. Se há algo que o livre arbítrio mais O trazia de regozijo era a existência de museus e exposições culturais das mais variadas realidades. Lembrou, com carinho, do surgimento das Ágoras Gregas e das Pirâmides. Gostava de observar o trabalho na construção, sem nenhuma ajuda Dele, esperando que encontrassem as soluções que o Próprio escondia entre regras da Física e da Matemática. A Matemática, em especial, Lhe dava mais espanto e doçura, essa forma peculiar que muitos deles encontraram de ler a natureza que os rodeia. Uma vez, na Trinity College, ficou observando o jovem Newton, tão singular, em seu pensamento longevo. Fez questão de deixar cair uma maçã para ver no que daria. No final das contas, Deus deu uma forcinha para a “criação” da Física. Veio Nietzche e deu outro entendimento. Andou com certa ligeireza até o CCBB, curtiu uma exposição bem exótica e gostosa, com personagens de video game recentes, esses novos deuses da contemporaneidade. Ficou por mais de uma hora, sentiu fome, tomou um café com um croissant de queijo e presunto. Depois, uma torta de quiche e outra de red velvet. As mãos de Janaína, a cozinheira por trás daquele café no CCBB, sempre foram maravilhosas, tal qual de sua mãe, Eneida, de origem italiana, afeita a quitutes.
Do nada, começa uma correria de seguranças em frente ao museu. Portas trancadas, um barulho ensurdecedor de pessoas gritando o nome de Jeová. “Sabemos que Deus está aí dentro!”, como poderia ter sido descoberto? Um pouco de leitura de algumas mentes na multidão revelam como fora descoberto. Passou a se preocupar com Joana. Ela estava sendo perseguida por um outro grupo. Acuada em sua casa. De olhos fechados, Deus fala com Joana, pede para que não se preocupe, qualquer coisa Pitoco a defenderia. Pensou, naquele instante, em apagar a memória de todos em um estalar de dedos. Era melhor não. Poderia ser uma ótima oportunidade.
Um segurança do recinto O aborda, “Com licença, o senhor pode me acompanhar?”, Deus se levanta, o guarda, de singular e bem fundamentado nome Belo, apresenta um ar de suspeição e receio, “Há uma multidão lá fora com cartazes com a foto do senhor, dizendo que o senhor é o Senhor”.
O senhor ri:
– Eu?
– Parece que sim – a palidez de Guarda Belo se torna ainda mais enfática.
– E o que você acha, Ronaldo?
– Como o senhor sabe qual o meu nome?, depois de um longo suspiro, o Guarda Ronaldo Belo se treme – então, é Você mesmo? – e Deus dá mais uma leve risada.
– Não se preocupe. Deixa que eu falo com todos.
Foi nesse momento que Deus desceu. Resolveu ser pirotécnico. De uma janela alta da sacada, decide sair flutuando. Em seu entorno, pássaros que chegavam aos milhares, bichos dos mais diversos se aproximavam. Sua aparição gerou um silêncio sepulcral. Ali entendeu como o seu descuido cobrava um preço alto. O Centro do seu amado Rio de Janeiro estava tomado por uma multidão absorta de fiéis. Carros de som, imprensa, tudo que pudesse observar Deus ali, ali estava. Os canais religiosos estavam com os índices nas alturas, os líderes religiosos expunham seu contentamento exacerbado aos montes, outros já se viam perdendo seu rebanho. Já que Deus veio, o que seria deles? Países dos mais diversos questionavam o fato de Deus aparecer no Brasil, sabendo todos eles que Deus, com certeza, nascera em seus países. O mundo estava um caos sistemático pela aparição. Ateus continuavam não acreditando naquele Deus, “Aquele homem encontrou uma maneira de levitar. É impossível ser Deus”.
Do meio da multidão alguém grita, “Cadê Jesus?”, e uma nova balbúrdia se inicia, “ É verdade que Jesus será mulher?”, “Te amo, Deus”, “Casa comigo!”, “Nos arrebata, Senhor”, “Dê-nos o Livramento!” “Entra na minha casa, Entra na minha vida(…)” Deus levanta a mão e decide ser irritantemente sincero.
– Fui descoberto por descuido. Hoje, depois de muito tempo, decidi andar por entre vocês. E que saudades! Mal me lembrava da última vez em que aqui estive. No entanto, temos muito o que conversar! Há muito o que vocês têm que aprender para não cometerem erros. O primeiro: céu e inferno. Vocês criaram isso. Esqueçam isso. O que Eu dei a cada um de vocês foi antes de mais nada uma vida. Uma chance de viver. Uma chance a estar aqui. Aproveitem! Todos!
O silêncio persistiu. Estavam mesmo diante de Deus, pois Ele voava sobre todo mundo. Deus, inclusive, enviou-lhes sentimentos positivos. Nunca a humanidade tinha experimentado um sentimento dessa magnitude de forma coletiva. Muitos respiraram fundo. Outros fecharam os olhos. A comunhão era a mesma. Todos felicíssimos.
Armas começaram a ser colocadas no chão. Aquela figura humana com ar resoluto começou a gerar uma paz coletiva. Jornalistas, em polvorosa, dialogavam sobre a nova conjuntura política mundial. “É o fim de todos os regimes”, diziam. Aos poucos, Deus foi alimentando os animais. Muitos deles sofriam a ignonímia humana. Depois disso, os desvalidos, muitos deles passaram fome pela querência humana. Não iria questionar os rumos que a própria sociedade tomara, esse era um problema deles, mas resolver atenuar e desmentir tudo aquilo que colocaram em sua conta e na conta de Jesus. Até pensou em trazê-lo de volta, mas seria ainda mais caótico. Na última vez que veio, deu o maior trelelê e ele acabou se dando mal. Tadinho. Lembrou-se até de uma conversa que tiveram séculos atrás se era hora de ele voltar ou não, “Deus me livre”, disse.
Presidentes e senhores responsáveis pelos vários países no mundo começaram a exigir uma reunião com Deus. Ele não podia aparecer assim e criar esse caos todo, “Que Deus é esse?”, e por cima questionavam o fato de Ele ter aparecido justo no Brasil. “Deus não pode ter uma única nacionalidade, nem privilegiar uma única nação. Deus intervém. Direto na mente de todos.
“O fato de Eu estar no Brasil é porque aqui eu criei tudo. No bairro que hoje chamam de Água Santa”, não deu outra, os sites de aluguel e de compra e venda de casas aumentam exponencialmente seus preços, é algo instantâneo.
Jerusalém colapsa. Como pode o local berço da civilização religiosa contemporânea não ser o lugar onde Deus nascera? Grupos religiosos de distintas realidades passaram a questionar a validade daquele Deus. A coisa passou a complicar ainda mais quando o vídeo da segurança da Igreja onde esteve passa a ser televisionado. O sacristão da igreja de São Francisco Xavier está sendo entrevistado por um jornalista desses programas sensacionalistas. Ele é claro em sua afirmação, “Este homem pode ser muito poderoso, mas ele nunca que seria Deus. Deus não faria o que ele fez com esse cachorro”. Outros líderes religiosos são mais categóricos, “Está na Bíblia. Deus disse que nunca se materializaria para nós, humanos. Ele é um falso Deus”.
O mundo começa a se dividir. Há aqueles que acreditam piamente estarem diante de Deus, outros afirmam que ele é o próprio Capiroto. Dias passam, meses se colam com figurinhas repetidas na mesma ladainha, é ou não é Deus? Seu rosto passa a adornar blusas, novas edições da Bíblia e algumas até afirma que a Bíblia tem de ser reescrita. “Deus está aí. Agora é com Ele.”, “Não! Ele não é Deus!”
Deus, mesmo, resolver desaparecer. Assume uma nova forma. Ainda persiste como homem, não quis vir como Alanis Morissette ou Morgan Freeman. Imaginou-se Steve Carell como Evan Baxter ou inclusive Isaac Bardavid, em que muitos iam pedir autógrafos e não alguma escolha exótica e imponente. Preferiu vir como o Gari Sorriso, aproveitando o ritmo de trabalho e consertando os problemas que se avolumavam depois de Seu surgimento.
Final de expediente, Sorriso volta para casa. À mesa, Deus dá de volta o corpo a Renato, que renasce e sorri. Os dois bebem um bom gole de café. “Quer um pãozinho, Senhor?”, “Não, é melhor não, quero voltar a andar. Decide seguir para outro bairro do Rio: Todos os Santos. Fez questão de chamar alguns deuses de outros passados, mortos pela nulidade humana. Só um apareceu, Cronos, pai de Zeus. “Só veio você?”, “Sim, na verdade pedi aos outros que não viessem, alguns não servem para mais nada”. Deus suspira fundo. “Há tempos que não te via. Sempre tão ocupado, tão cheio de nove horas”, “Pois é, você mexeu demais com a ordem das coisas, olha o problemão que me criou”.
Cronos faz questão de que Deus veja tudo. Ele sente seus poderes sendo dragados por todo mal que os homens naturalmente forjam. Os que acreditam em Deus passaram a ser mortos por aqueles que o veem como o próprio Demônio. Religiões entram em profunda crise. A Economia não funciona mais. Deus diminui, a ponto de encolher por completo, vilipendiado, virou um ser minúsculo que acabou sendo acolhido nas mãos de Cronos, que o engole. Deus desceu goela abaixo. É dentro dele, de Cronos, junto a vários outros, que Deus padece no tempo. Cronos aproveita e pega um ônibus. Ia à Piedade. Achou melhor ver um filme no Norte Shopping, que passava loucamente devido à confusão, Deus (não) está morto.