Às quartas – O rock de ontem

Grande alegria reencontrar, perdido num HD externo, um dos textos que escrevi para a Obvious Magazine, após assistir a um show do Frejat e dos Titãs na Fundição Progresso, há anos. Por fatos recentes (a partida de Erasmo Carlos e a de Rita Lee, os 40 anos do Frejat comemorados extraoficialmente no Circo Voador, a reunião de todos os membros dos Titãs em turnê e um show de Os Correas, a nova geração da família Golden Boys, no Teatro Rival), senti vontade de voltar àquelas ideias.

Tanto Frejat, oriundo do Barão Vermelho, quanto Titãs estão entre os ícones do rock brasileiro. Na platéia de seus shows, numa noite, anos atrás, me dei conta de um detalhe. Ambos haviam incluído uma canção de Roberto e Erasmo Carlos em seu repertório.

Os artistas pertencem à geração rock dos anos 80, marcante pelo talento e, também, pelo momento que antecedeu e pelo que sucedeu ao processo de abertura política do país. Sem contar a realização do primeiro festival de rock internacional no Brasil (o Rock in Rio). Essa geração bebeu na fonte do rock dos anos 60, cujos artistas nacionais mais bem sucedidos foram Roberto e Erasmo Carlos. A referência a eles não foi acaso.

Pelo “Jovem Guarda”, programa de TV dos anos 60, apresentado por Roberto, ao lado de Erasmo e Wanderléa, todo o rock nacional da época passou. O programa teve importante papel num momento em que, mundialmente, ocorria uma série de mudanças no pensamento político, cultural e comportamental. Seus integrantes se vestiam de uma maneira nova, revolucionária e rompiam barreiras com suas gírias e expressões. Recebiam duras críticas: suas canções eram muito simples e, em sua maioria, infantis para os padrões atuais. O distanciamento, entretanto, nos fez perceber, à luz do cenário em que foram criadas, o rompimento com conceitos, padrões e comportamentos fundamentais para as transformações sócio-culturais no país, nos anos que se seguiram.

No mundo, o rock surgiu atravessado por temáticas políticas, mas no Brasil, num primeiro momento, esteve desvinculado dessa abordagem. Roberto e Erasmo integravam o time dos primeiros compositores do rock nacional, substituindo, em grande volume, as frequentes versões estrangeiras por letras originais. Suas canções (e as dos demais artistas do iê-iê-iê nacional) eram, basicamente, românticas, com promessas de fidelidade, frases simples e rimas pobres. Sob a superfície, entretanto, havia ousadia.

Roberto Carlos e Erasmo Carlos. Foto: Divulgação/Arquivo

Se nada registraram relativo ao efervescente momento político do país, as músicas lançaram uma semente transgressora: a permanente inquietação de uma sexualidade reprimida e as primeiras considerações sobre o corpo como fonte de prazer. Foram a voz dos jovens de uma geração pré-revolução sexual do fim dos anos 60.

Num primeiro momento, na voz feminina de Celly Campello, notava-se recato e ingenuidade. Na música da Jovem Guarda, já notava-se uma expressão vigorosa do desejo sexual e de romper-se com a ordem moral: (1) “deixa essa boneca/faça-me o favor/deixa isso tudo/vem brincar de amor/…/sua boneca vai quebrar/mas viverá o nosso amor”, cantava Renato e seus Blue Caps; (2) “nela dou um beijo/com empolgação/do beijo sai faísca/e a turma toda grita/que o fogo pode pegar/…/sigo incendiando bem contente e feliz/nunca respeitando o aviso que diz/que é proibido fumar”, cantava Roberto; (3) “meu bem, meu bem/toda vez que eu te vejo/mais aumenta o meu desejo/…/me acende com teu beijo/me acende”, cantava Erasmo.

O beijo deixou de ser inocente gesto romântico para ampliar os sentidos do corpo e criar a tensão sexual. Tornou-se, até, revolucionário: uma hora, a turma grita que (4)  “o fogo pode pegar”, calcada na lei (“é proibido fumar”), e intérprete responde “nem adianta o aviso olhar/pois a brasa aqui agora eu vou mandar”, evidenciando sua vontade irreprimível. Noutra, desafia-se e rotula-se o repressor como alguém que não tem coragem de transgredir: (5) “todo mundo olhou me condenando/só porque eu estava amando/…/mas com água na boca/muita gente ficou”.

Ali estava o primeiro grão. E logo o rock faria florir a semente plantada, com a “Tropicália” expondo as feridas da moral de aparências (como em “As pessoas na sala de jantar”, de “Os Mutantes”), passando por Raul Seixas nos anos 70, desaguando no Rock Brasil dos anos 80, que se tornou amadurecido e forte nos anos 90.

Titãs. Foto: Divulgação

Mas os anos 60 permaneceram no inconsciente das novas gerações. Muitas músicas dos anos 80 possuem harmonias que lembram os iê-iê-iês de Roberto e Erasmo. O primeiro nome dos Titãs foi “Titãs do iê-iê”. E a banda teve, também, como referência, a poesia concretista do final dos anos 50 e pós-concretista dos anos 60. “Flagra” (6), sucesso de Rita Lee, remeteu à cena descrita em “Splish Splash”. Erasmo, eterno roqueiro, participou do primeiro Rock in Rio ao lado dos grandes artistas da geração que se formaria: Blitz, Lulu Santos, Os Paralamas do Sucesso, Barão Vermelho, Kid Abelha e os Abóboras Selvagens. Anos depois, Frejat produziu um disco (“Rei”) em que os artistas da geração 90 do rock and roll regravaram canções consagradas na voz de Roberto Carlos.

A mudança se consolidara. Entre as músicas cantadas por Frejat naquele show, havia duas de total ruptura com os padrões românticos e da imagem feminina. Em (7) “Puro êxtase”, a descrição de uma mulher com domínio total de sua sexualidade e escolhas, imersa numa noite de prazer (até luxúria, pode pensar-se, quando desfeita a ambiguidade sugerida pelo uso das palavras “êxtase” e “ecstasy”) e (8) “Por que a gente é assim”, em que a entrega sexual está acima da romântica – “canibais de nós mesmos/antes que a terra nos coma”, autodefine-se o intérprete, pretendendo ser devorado, mastigado e beijado na intensidade do seu desejo.

Se, nos anos 60, a transgressão foi sugerida, nos anos 80, o rock rompeu essas amarras comportamentais de forma bem ampla. E se movimentou tão fortemente que se reafirmou com força e popularidade e, ainda assim, mais fiel ao seu compromisso político (entendendo política como uma noção mais ampla do que “música de protesto”).

Talvez hoje não seja o rock a fazer esse papel disruptivo mas, sim, o movimento funk e/ou o rap. Não sei. Saberemos à frente, quando o distanciamento nos permitir enxergar, em larga visão, o legado que se deixou.

Frejat. Foto: Divulgação

Notas:

  • Sobre o discurso da sexualidade nas canções da Jovem Guarda, “A Aventura da Jovem Guarda”, de Paulo de Tarso C. Medeiros. Peguei ideias dali.
  • Créditos das músicas citadas:

(1) Menina Linda (I Should Have Know Better) (John Lennnon /Paul McCartney /Renato Barros)

(2) e (4) É proibido fumar (Roberto e Erasmo Carlos)

(3) Você me acende (You Turn Me On) (Ian Whitcomb / Erasmo Carlos)

(5) Splish Splash (B. Darin / Erasmo Carlos)

(6) Flagra (Rita Lee / Roberto de Carvalho)

(7) Puro Êxtase (Guto Goffi / Maurício Barros)

(8) Por que a gente é assim (Agenor Neto / Roberto Frejat / Jose Neves / Ezequiel Neves)

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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