Eu sonhava ser cantora. Mas, me diziam, eu era desafinada. Ainda assim, me arrisquei.
No colégio de freiras onde estudava, ocorreu uma Semana da Cultura. Os alunos se inscreveram nas diferentes categorias artísticas. Contrariando as expectativas, deixei “Poesia” de lado e pus meu nome em “Canto”.
Ninguém se inscreveu, além de mim. Portanto, a música tinha que ser memorável. Eu não era popular. Tímida, tinha 11 anos e dermatite alérgica, a pele branquicela irritada em locais aparentes: a dobra do braço, a mão, às vezes o rosto. Era uma das poucas alunas obrigadas pela família a usar a saia no comprimento exigido pela escola. Mas era sagaz e havia em mim um espírito em ebulição.
Comportada, sonhava com a liberdade. Conhecer o mundo, escrever histórias, destacar-me na multidão como pessoa interessante, andar com os “nerds” dos gibis e dos livros, chamar a atenção dos meninos. E, claro, cantar!
Escolhi Rita Lee. Ela era uma espécie de alter ego meu. Ruiva, como eu queria, de vez em quando, ter nascido, e engraçada. Suas letras nos faziam rir do ridículo e observar o desconcerto dos mais velhos. Escolhi cantar “Tatibitati”. Insinuava-se infantil mas era sobre escolher namorar o bicho papão, de quem, tantas vezes, a menina fora alertada para afastar-se. Ir ao contrário da criação recebida. “Não dê ouvidos às más companhias”, a mãe lhe dissera. “Eu sou má companhia”, assumia-se. Eu entendia as metáforas, o discurso velado sob a fala de criança. Achei perfeito.
Na frente da turma, balancei o corpo, morta de vergonha e cheia de coragem. “Quando eu nasci, minha mãe dizia: tome cuidado com o bicho papão”. A sala, repleta de crianças da minha idade, reagiu com risos. “Fiquei mocinha”, as risadas foram altíssimas. Minhas bochechas coradas jogaram a autoconfiança para o pé. Soou o sinal de saída, como um gongo de show de calouros. Os alunos arrastaram as carteiras na pressa de saírem. A professora avisou que continuaríamos no dia seguinte. Sepultei ali a carreira de cantora.
Em casa, improvisei um poema. No outro dia, pedi para mudar de categoria. Saí de “Canto” para “Poesia”. Misturada a uma dezena de crianças, li meu poema sob aplausos.
Não cheguei ao fim da canção. Meu singelo gesto revolucionário foi desacreditado. Ouvindo a notícia da partida de Rita Lee, me lembrei de ter sonhado ser como ela por um dia. Mas minha plateia não entendera nada. Nem a subversão dos papéis, nem a malícia da menina, mais madura do que a maioria. O discurso ruptivo com a caretice da nossa criação dentro do espaço conservadorista da escola.
Senti orgulho dessa lembrança. Eu punha as outras crianças no chinelo. Já entendia Rita aos 11 anos. Com ela, segui aprendendo sobre os espaços para o feminino, sem agressividade, com irreverência e amor. “Gata Borralheira, você é princesa”, precisei ouvir, em certa altura da vida. Já estava dito por ela. Bastava escutar.
Obrigada, Rita, por tudo.
Aninha, lembrei de você soltando a voz e as brincadeiras ouvindo música! Tempos de descoberta!