(Texto escrito em 29 de Maio de 2018)
Numa palestra a que assisti recentemente, alguém citou o Sermão da Montanha: “não saiba sua mão esquerda o que faz a direita”. Fazer o bem sem ostentar. O momento bonito em que se inseriu a fala do palestrante me arrancou da anestesia de dias difíceis que, por motivos pessoais, tenho vivido.
Lembrei-me que, na véspera, entrara numa igreja e estavam acesas as luzes do altar, destacando as letras sobre a imagem de Cristo: “Charitas”. Caridade.
As coincidências me levaram de volta ao tema que meu editor sugerira para um texto e que ainda lhe devia: a caridade. Senti, então, que era este o momento para o texto. Por isso, peço aos que lêem esta coluna que me permitam deixar de lado os assuntos literários e afins e ousar por caminhos que não domino, apenas intuo.
“Charitas”, a palavra latina que originou “caridade”, em princípio, significava “ternura, estima, afeição”. Mas, soltas no mundo, as palavras continuam construindo novos significados porque a língua é um fenômeno vivo, atuante, que transforma e sofre transformações. Então, com o tempo, virou “caridade”, ou seja “benevolência”, “piedade”, “benefício que se concede por amor a Deus ou ao próximo”. Quando olhamos para a essência das palavras – tanto a natureza morfológica quanto a intenção semântica – descobrimos significados profundos que se constroem sobre raízes muito especiais. A palavra “caridade” pode suscitar apenas a lembrança de “fazer o bem” mas sua origem nos mostra que, não por acaso, seu uso religioso encontra ressonância em discursos como o Sermão da Montanha. “Fazer o bem sem olhar a quem”, diz o ditado assim como dizem os escritos citados acima: “não saiba sua mão esquerda o que faz a sua direita”. A raiz morfológica abraça a religiosa – não basta fazer o bem; é preciso que seu gesto seja de amor.
Não à toa, diversas religiões se sustentam sobre o conceito de “caridade”. Por exemplo, é o 3º pilar do islamismo (são cinco ao todo). Para o budismo, um dos seis caminhos para alcançar-se a iluminação. “Dar e dar”, não esperar nada em troca. Para o hinduísmo, a caridade prestada em vidas anteriores antecede sua alma em nova encarnação. Para as religiões cristãs, a caridade está no centro do último mandamento de Jesus, oferecido em substituição a todos os mandamentos anteriores: “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. É do amor pelo outro que nasce a empatia, o gesto de ajuda, a relação fraterna, o espírito de colaboração.
Não sou a pessoa certa para assuntos religiosos mas “caridade”, mesmo como princípio ético, está, como se vê, essencialmente ligado ao sentimento religioso. Mesmo se a quem chamo de Deus você chama de consciência, se você é um sujeito ético, seus conceitos passam pelo sentimento de que a vida em sociedade exige a prática da caridade como elemento necessário.
Penso nisso tudo quando me lembro o momento mundial atual, que sinaliza caminhos cada vez mais polarizados.
Em conversa, um primo querido me escreveu pelo WhatsApp sobre eventos ocorridos nesta semana:
“Não dependemos de energia, transporte etc. Dependemos uns dos outros. É a lição que o mundo tenta nos dar todos os dias. É essa dependência disfarçada por trás do dinheiro que temos que compreender. É a mensagem simples e mais importante de Deus, justamente porque está por trás de tudo. Amai-vos uns aos outros. A partir daí tudo funcionará…”.
Leio a mensagem tão certeira dele, tão simples e, ao mesmo tempo, tão abrangente, e ela me inspira a escrever este texto e me faz lembrar de um vídeo antigo da campanha “Cidadania contra a Miséria”.
Na peça publicitária, Tom Jobim conta a história de um homem que não sabia a diferença entre o céu e o inferno. Então é levado a visitar os dois lugares e descobre que eles são praticamente iguais. Sentados diante de uma mesa farta, há homens que não conseguem alimentar-se sozinhos porque possuem os cotovelos virados para fora. A sutil diferença está no fato de que, no inferno, os homens eram infelizes porque ficavam com fome; no céu, eram felizes porque uns alimentavam os outros. Essa imagem marcante e bela é a essência de tudo que, talvez, precisemos para entender como vivermos em paz e harmonia, não só num plano espiritual, mas aqui e agora, na terra, em sociedade, como elementos do mundo a que pertencemos.
Caridade não é só esmola. Esmola pode ser uma das formas de fazer-se caridade. Caridade é um conceito enorme, abrangente, que envolve amor, respeito, empatia, compromisso com o outro. Mesmo se você é autossuficiente, um dia precisará do olhar amoroso de alguém. Mesmo se você se furta a envolver-se nos problemas alheios, um dia há de precisar oferecer colo e carinho diante da dor de alguém que ama. Não há como passar pela existência sem precisarmos uns dos outros, sem fazer parte de um contexto maior, seja ele social, político ou pessoal.
No primeiro dia em que entrei na igreja de que falei, havia um senhor conversando com uma jovem. Ele lhe dizia: “eu nunca soube ser caridoso como ela é; ela sempre ajudou as pessoas.” Não sei quem ele era nem sobre quem falava, mas fiquei pensando que, talvez, ele não soubesse o que é ser caridoso. Porque, talvez, para ele, ser caridoso fosse fazer grandes gestos, doações, sei lá. Naquele instante, pensei nos meus últimos dias e lembrei-me de todos os pequenos gestos que várias pessoas me ofereceram, algumas desconhecidas, por puro carinho e que se traduziram em pura caridade porque me trouxeram conforto. A essa altura, acredito mesmo que a caridade seja um gesto natural e simples, baseado, como meu primo disse lá em cima, apenas na ideia de que tudo funcionará se apenas observarmos a mensagem simples de amar-nos uns aos outros.
Presenças, mensagens, emoticons, compreensão, sorrisos, abraços, entusiasmo, esperança…Estar presente na vida do outro é uma forma de amor, mas também de caridade. Porque, no fundo, em qualquer infortúnio, estamos sempre muito sós. Toda experiência de dor ocorre no nosso interior, de forma própria e isolada, mesmo quando estamos cercados de pessoas. Então todo gesto que nos ofereça abrigo é gigante e traz conforto, desde um prato de comida ou uma esmola para aplacar a fome até um olhar carinhoso que nos mostre que somos notados/amados.
Por fim, uma última lembrança gostosa, de uma antiga canção de Barbra Streisand: “People”. Somos pessoas que precisam de pessoas, diz ela. Pessoas que, muitas vezes, como crianças, escondem sua carência interior. Mas se entendemos que precisamos dos outros, somos os mais sortudos no mundo porque já descobrimos como sermos inteiros, como eliminarmos o que é ruim, como, por exemplo, a fome e a sede. Essencialmente, é isto aí: dependemos uns dos outros e quem entende isso está um passo à frente dos demais.