OS ESPAÇOS DA ARTE E A ARTE DOS ESPAÇOS SOCIAIS:  um ponto de vista subjetivo para um espaço criado – Parte III

Os espaços da arte e a arte dos espaços sociais: um ponto de vista subjetivo para um espaço criado

Parte III

                                                                                                                                               A arte deve ser mentira verdadeira e não falsa verdade.
              Jean Rostand (1894-1977), filósofo e historiador

Capitalismo e Mercadoria

Ao final da segunda parte deste artigo, perguntamos como ligar capitalismo, à arte. Bem, Cazuza (1958-1990) cantava que “mentiras sinceras me interessam”. Alguns cínicos dizem que não existem mentiras, propriamente, mas interpretações pessoais dos fatos. Contudo, certamente, não é isso o que Cazuza cantava; ele se referia, talvez, em nossa interpretação, bem entendido, a falas humanas que, sem serem, necessária e/ou obrigatoriamente verdadeiras, na sua totalidade, seriam sinceramente ditas para que a situação/conversa ficasse agradável para todos os envolvidos. Quando dizemos, por exemplo, a uma pessoa que nos pergunta se o corte de cabelo ficou bom, se não temos intimidade com essa pessoa, provavelmente diremos que sim, que ficou bonito ou damos uma disfarçada, mas não dizemos que ficou feio, ainda que tenhamos achado isso. Estaremos sendo falsos? Talvez não, talvez estejamos sendo, apenas, educados e polidos, para que a relação humana se mantenha intacta. Mentira sincera. Admitamos: sem ela, não haveria civilização. Será a arte, uma mentira sincera? Em qual sentido? Como mercadoria, a arte é produzida e vendida. Antes de tentarmos um ensaio de resposta, vamos pensar um tanto sobre o conceito de mercadoria capitalista, o sistema econômico em que vivemos.

O capitalismo forjou ou, ao menos, acirrou, uma diferença brutal entre duas grandes classes sócio-econômicas, a dos proprietários e a dos não-proprietários. Para o sociólogo alemão Robert Kurz (1943-2012), no artigo “O declínio da classe média” (Folha de S. Paulo, Caderno Mais! – 19/09/04) o conceito tradicional de Marx sobre classes sociais ainda é importante, mas já não pode ser analisado de modo rígido (como, aliás, achamos que nunca poderia ter acontecido, a não ser em leituras por demais dogmatizadas). Nesse entendimento tradicional, é a classe operária quem produz a mais-valia ao ser explorada pela classe capitalista por meio da propriedade privada dos meios de produção. Não obstante, hoje, como antes, dizia Kurz, a nova pobreza não surge por conta da exploração na produção, mas pela exclusão da produção. Quem ainda está empregado na produção capitalista regular já figura entre os relativamente privilegiados (…). Inversamente, tampouco a ‘classe dos capitalistas’ pode ainda ser definida no velho sentido, segundo os parâmetros da clássica ‘propriedade privada dos meios de produção’. (…) O ‘capital’ não é um grupo de proprietários legais, mas o princípio comum que determina a vida e a ação de todos os membros da sociedade não só exteriormente como também em sua própria subjetividade.

Segundo César Benjamin (“Atualidade de Marx”, Caros Amigos, setembro de 2004), a sociedade industrial, tal como era organizada no século XIX, teria três características marcantes no entender de Marx: a) o aumento constante da quantidade de mercadorias, a tal ponto em que absolutamente tudo se transformaria em mercadoria; b) a ampliação da escala geográfica de atuação do capital e c) como as necessidades e os sonhos são infinitos, mas a capacidade de produção material não, haveria uma cada vez maior necessidade de produção de bens voltados para o que Benjamin chama de “fantasia”. Três fatores decorreriam desse tipo de sociedade, segundo a leitura do autor: a) uma revolução técnica incessante para “expandir o espaço e contrair o tempo da acumulação”; b) uma revolução cultural, para criar a base de desejo e consumo e c) na expressão usada por ele, a ocorrência de um “sistema-mundo”, para incluir o máximo de pessoas – mas, ressalvamos, sem que a acumulação capitalista seja ameaçada. Sobre as ideias expostas por Benjamin, gostaríamos de fazer algumas observações que julgamos importantes. Quando o autor expõe a concepção de Marx sobre a transformação geral de tudo em mercadoria, seria interessante acrescentarmos o fato de, ao vender sua força de trabalho, o próprio Homem se fez uma mercadoria, porque pode ser “comprada” por quem detém poder para tanto. E não é a arte, igualmente, tida, por muitos e em certo sentido, uma mercadoria? Seremos nós, seres humanos, um artefato, uma obra de arte que se vende?

À ampliação geográfica de atuação do capital corresponde um fenômeno típico dos anos 1990 para cá e, mesmo não tendo sido previsto por Marx, é uma consequência direta desse crescimento do capital: o surgimento de blocos econômicos, que estão por aí, no mundo, ainda que com menos força do que tiveram, há não tanto tempo assim. Para ganhar mercados, as empresas e os países vendem sua cultura para homogeneizar hábitos e valores e, portanto, homogeneizar o próprio consumo de mercadorias. Quer dizer, por mais que neguem, é ideologia pura. Para tanto, a mídia e a publicidade se encarregam de acirrar ou mesmo, criar, em alguns casos, nossos desejos por coisas que nem precisamos, mas compramos, mesmo assim, e é isso o que dá vazão aos sonhos infinitos. É o que podemos chamar de “antevalidação dos desejos”, ou seja, antecipamos, por intermédio de propaganda massiva, nas pessoas, desejos por algo que elas não precisam, na verdade, ou mesmo por coisas que, simplesmente, ainda não existem. Na economia, este processo de antevalidação pode ser chamado de “crédito”, que é o mecanismo, antigo, mas amplamente disseminado no capitalismo, que permite que pessoas, empresas e governos, comprem alguma coisa ou contratem um serviço, ainda que não haja dinheiro imediato para esta compra ou contratação.

Quando Benjamin expõe suas conclusões no artigo, alguns detalhes também são importantes. Não está correta a afirmação (se a mesma for compreendida de modo linear e baseada no senso comum) de que o espaço se expande; melhor seria dizer que nossa percepção de espaço tem-se modificado e, com isso, o uso que dele fazemos, também, numa ideia mais heideggeriana do que marxista, digamos assim; do mesmo modo, o tempo da acumulação pode, perfeitamente, ser modificado apenas em nossa percepção já que, como afirmava o psicólogo suiço Carl Gustav Jung (1875-1961), tempo é a percepção que temos dele. Tudo somado, somos levados a concordar (conforme menção anterior) com Kant que dizia serem tempo e espaço, categorias da Natureza, em si, e não categorias humanas, na relação nossa com a Natureza. Por fim, o sistema-mundo citado por Benjamin é uma realidade do estágio atual da mundialização e esse sistema constitui um espaço geográfico dividido no que o geógrafo brasileiro Rogério Haesbaert chamou de “Territórios-Rede”, onde as redes sociais de todos os tipos, como a informacional e a financeira, talvez as duas maiores, têm papel preponderante; os territórios estão cada vez mais prenhes de informação e conhecimento, bem como as mercadorias que por ele circulam, tal como afirmava outro geógrafo brasileiro, Milton Santos (1926-2001).

Benjamin lembra que, para o filósofo alemão Georg Wilhelm Freidrich Hegel (1770-1831), o novo só teria espaço para surgir quando o antigo atingisse a sua plenitude. Assim, afirmava Marx, a sociedade capitalista entraria em crise quando esse processo de abstração da acumulação chegasse a um limite extremo, tanto, que o capital não mais poderia ser o eixo de organização da vida social. Esse seria o momento de extenuação e de queda do capitalismo e, por conseguinte, de sua superação. Um dia, quem sabe, mas até o momento, infelizmente, irreal.

Trabalho e Alienação

Para Hegel, o Estado seria algo como uma entidade na qual estaria’ “encarnado” o que o filósofo chamou de “racional universal” da sociedade. Contudo, para Marx, essa era uma ideia falsa, uma vez que o importante seria superar o sistema capitalista e isso não seria possível por intermédio do Estado, uma instituição burguesa, por natureza. Superar o capitalismo, para Marx, seria superar, também, o Estado e seu aparato ideológico infraestrutural econômico, que tem seus fundamentos no sistema produtivo e nas relações de produção, por sobre o qual o sistema capitalista ergue sua superestrutura, constituída de fatores sociais como a política, a filosofia, a cultura, as ciências, as religiões e tudo isso desemboca no que Marx chamava de “consciência de classe”.

Em Marx, relembrando, o conceito classista passa pela exploração que a classe proprietária fazia (e faz) pesar sobre os excluídos da propriedade privada dos meios materiais de produção de mercadorias tangíveis. A mais-valia era (e é), justamente, essa exploração extraída da produção material do trabalho social que produzia (e produz) os objetos e que gerava (e gera) o que Marx chamou de “fetiche da mercadoria”; era uma “mais-valia material” ou, por assim dizer, uma “mais-valia real”. Contudo, isso, por si só, esta “mais-valia” não explica o momento atual de exploração das pessoas, afirmava Kurz. E não explica mesmo. Para Kurz, como dito anteriormente, a exploração não é mais realizada – ou melhor, devemos dizer que a exploração maior não é mais (somente) realizada – pela alienação dos incluídos, mas pela alienação realizada a partir dos excluídos do sistema de produção capitalista, que Marx chamava de “exército industrial de reserva”, enorme, crescente e não mais apenas industrial, como na época da Marx e Engels e mesmo na de Gramsci – trabalhadores informais, que trabalham em tempo parcial e mesmo subempregados, componentes do que estudiosos vêm chamando de Precariado (operários com cada vez menos direitos, civis e trabalhistas, tornados, por esta razão, precários), também compõem esse nada honroso “exército”.

A centralidade na atual fase capitalista, não está mais (pelo menos não apenas) no tradicional operário, sujeito maior da classe proletária despossuída dos meios de produção, mas nos fluxos de capital, controlado por grandes corporações, essas poderosas redes sociais capitalistas. Em outras palavras, a centralidade, de certo ponto e até certa medida, talvez esteja passando da superestrutura, para a infraestrutura ou, ao menos, podemos observar maior equilíbrio, digamos assim, entre essas duas categorias analíticas e realidades sociais.

Mercado e Arte

Retomando, rapidamente, as duas perguntas do primeiro parágrafo, sem a menor pretensão de esgotar o assunto ou dar alguma resposta que se proponha definitiva: será a arte, uma mentira sincera? Em qual sentido?

A frase em epígrafe, de Jean Rostand, ao contrário do que possa parecer, não indica, absolutamente, que a arte deva ser mentirosa, algo enganadora ou ilusória, senão que ela deve ser uma representação que, mesmo fictícia, é verossímil, senão na materialidade, ao menos na imagem que dela fazemos, trazendo-a até nós ao percebê-la e ao interpretá-la, fazendo-a compor-se, por certo amalgamento simbólico, como parte de nós mesmos. O que a arte não deve ser, nesta perspectiva, é um ente que, propondo-se verdadeiro, representa uma mentira assim reconhecida ou algo que nos soe tão artificial que acaba por nos dizer coisa alguma, o que não a leva a completar a composição há pouco mencionada. Evidente que esta concepção tem um quê de subjetividade. Isso é, contudo, arte.

Como visto na segunda parte deste artigo e como será complementado e aprofundado na quarta e última parte desta sequência reflexiva, a compatibilização entre arte e mercado pode ser direta, mas também pode ser (ou talvez devesse ser) um tanto incompatível, ao menos se estivermos a nos referir ao mercado capitalista.

 

Carlos Fernando Galvão,
Geógrafo, Doutor em Ciências Sociais e Pós Doutor em Geografia Humana
cfgalvao@terra.com.br

@galvao8148

 

 

 

 

 

Author

Carlos Fernando Galvão é carioca, Bacharel e Licenciado em Geografia (UFF), Especialista em Gestão Escolar (UFJF), Mestre em Ciência da Informação (UFRJ/CNPq), Doutor em Ciências Sociais (UERJ) e Pós Doutor em Geografia Humana (UFF). Autor de mais de 160 artigos, entre textos científicos e jornalísticos, tendo escrito para periódicos como O Globo, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e Le Monde Diplomatique Brasil, também foi colaborador do Portal Acadêmico da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) entre 2015 e 2018. Atualmente, escreve com alguma regularidade no Portal ArteCult. É autor, igualmente, de 14 livros.

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