Apaixonei-me por Paulo Sorrentino quando assisti a seu filme “A Grande Beleza”. Na época, fiquei completamente encantada pelo filme, pelos cenários, pelos ângulos de filmagem e pelo carismático personagem principal que buscava a Beleza com seu olhar sensível, através da arte ou da observação cotidiana, assim como respostas para questões profundas que o inquietavam àquela altura da vida. Quando soube que ele escrevera e dirigira a série “O Jovem Papa” (The Young Pope), minha curiosidade em relação à série se acendeu.
Assisti, ininterruptamente, aos 10 episódios da 1ª Temporada da série que, em princípio, parece que será crítica em relação ao catolicismo ou que vai abordar os jogos políticos nos bastidores do Vaticano ou, ainda, que vai desconstruir, de forma geral, a imagem do líder espiritual mais popular no mundo.
Mas a série não é, especificamente, sobre nada disso. Se os interesses dos cardeais católicos nos bastidores da escolha de um papa ou na tentativa de controlá-lo aparecem, é mera ferramenta da narrativa para criar-se uma tensão na história e, por outro lado, acabam revelando uma sinceridade geral em relação à preocupação com a imagem e o papel da Igreja no mundo. Se alguns dogmas do catolicismo são descascados, há excelentes diálogos reflexivos entre membros da Igreja em defesa de uma posição mais generosa ou mais realista, ainda que menos doutrinária. Se o Papa Pio XIII é construído como um personagem narcisista, arrogante, fundamentalista, por outro lado, demonstra-se que seu comportamento não encontra amparo na Igreja que integra nem ressonância no nosso mundo real: não poderia haver um Papa mais diferente de Pio XIII, o personagem, do que o Papa Francisco, a figura pública real, humanitária e generosa, que lhe é contemporânea.
Contudo, a série causa impacto: entramos em contato, de forma crua, com o pensamento sexista, homofóbico e punitivo do Papa. O fato de ser jovem gera num grande equívoco de avaliação: ele nem é manipulável, como imaginara-se, por sua inexperiência, e nem é moderno; ao contrário, é retrógrado. Conforme os episódios avançam, percorremos os efeitos de sua postura dura e impositiva, assim como conhecemos as motivações e as angústias do personagem-central e aproximamo-nos de sua humanidade.
O percurso de Pio XIII é, para mim, a grande beleza da série. O menino abandonado pelos pais num orfanato religioso, criado por uma freira, alçado a Papa ainda com feridas abertas em relação à rejeição, ao abandono e à saudade da mãe, de quem lembra o cheiro mas de quem nunca obteve motivos ou respostas, que possui poderes paranormais, é o grande personagem que esconde sob as batas e os discursos do religioso que perdeu sua conexão com Deus (sim, o Papa não acredita em Deus).
Pio XIII se acha tão poderoso que assume posturas de um herege: compara-se a Deus, desafia-o em sua descrença, exalta sua própria beleza como superior a de Cristo e por aí vai. Não gostamos dele no início mas avançamos juntos nessa história e, muitas vezes, encostamos nossa humanidade na dele, nossas dúvidas de homem racional e moderno às dele, nossa insegurança diante dos mistérios, nossa curiosidade em relação àquele que consegue sentir o divino presente em sua vida quando somente repetimos os ritos e os ensinamentos sem tocar-lhes a verdade. No fim, entendemos Pio XIII, bem como todos aqueles personagens que o rondam. Se, na vida real, são figuras intocáveis em sua intimidade por serem representantes religiosos e estabelecerem conosco uma relação mais formal, na série, são extremamente humanos, jogam futebol e basquete, fazem exercícios físicos, embriagam-se, fumam, quebram votos, torcem apaixonadamente, adoecem de raiva e ciúme, traem mas cedem por amor, têm dúvidas, têm certezas que descobrem não serem absolutas, aprendem a controlar seus impulsos sexuais mas não os negam. E dessa humanidade imperfeita que se expõe, nascem os gestos, os sentimentos, as pequenas verdades que os aproximam do divino e encostam seus corações em Deus.
Posso falar horas sobre a série. Mas o espaço é curto e vou focar no que me cabe falar: a beleza do seu texto.
Certa vez, escrevi sobre o texto como expressão literária no teatro ( Veja AQUI ). No teatro, um bom texto se destaca muito fortemente porque a fala é, quase sempre, o recurso mais impactante de uma cena. Para a televisão e o cinema, o processo nem sempre é o mesmo, pois há muito mais ferramentas de que se pode dispor para contar uma história e para causar impressões no espectador (sons e silêncios, cores ou ausência delas, fotografia, músicas incidentais etc). Assim, nem sempre o texto tem o papel de impressionar tão profundamente e, em razão disso, nem sempre há tanto cuidado com o artesanato das palavras como nota-se que há na série de que estamos falando.
Os diálogos são muito bons. Observa-se que há cuidado com a escolha das palavras, com a maneira como se constroem as desarticulações da fala de um e de outro personagem. E, claro, o encaixe de uma fala bem construída com uma imagem ou com uma música que reforce a emoção trabalhada em nós. Há diálogos muito marcantes, como os do cardeal Gutierrez, através dos quais constrói-se uma relação de confiança que culmina num diálogo em que condiciona prestar assessoria ao Papa a ser aceito em suas verdades; como os de Dom Tommaso, que lhe conta as confissões ouvidas, enquanto, involuntariamente, desenrola muitos nós existenciais de Pio XIII; como os do Papa com seu escritor favorito nos jardins do Vaticano ou com o Primeiro Ministro da Itália, ótimo, em que ele impõe sua força política ao outro, sob o argumento de que Deus existe, figurativamente falando; como os do cardeal Michel, que, mesmo tendo perdido a eleição para o discípulo, permanece seu mentor espiritual, meio que à revelia, magoado mas interessado na subsistência, dentro da instituição, das ideias em que acredita. Há dois ótimos diálogos entre os dois: o primeiro, quando Michel conduz Pio XIII a enfrentar a verdade sobre sua falta de fé; o segundo, quando debatem sobre o aborto à luz de todos os filósofos católicos. Em outro núcleo, as primorosas falas de Voiello, o grande articulador do Vaticano, que, muitas vezes, trazem um tom de humor. O texto dramático conta com leves momentos de humor e de singela ingenuidade.
Se os diálogos são bons, os monólogos do Papa são ainda melhores, sejam os discursos (assustadores ou generosos), sejam as orações. Veja, por exemplo, o que diz ele à jovem a quem impuseram a função de seduzí-lo, para que se deflagrasse um escândalo que culminasse numa renúncia. Ele, que, até então, revelara-se arrogante aos outros, confessa sua fragilidade e sua covardia em lidar com as emoções humanas ao recusar a mulher que o atraía.
Esther, amo a Deus porque é doloroso amar seres humanos. Deus nunca me abandona e sempre me abandona. Mas Deus ou Sua ausência são sempre reconfortante e definitivos. Eu sou um padre. Renunciei aos meus semelhantes, homens e mulheres, porque não quero sofrer. Porque sou incapaz de suportar a dor de uma desilusão amorosa. Porque sou infeliz, como todo padre. Seria maravilhoso amá-la como você quer ser amada mas não é possível porque não sou um homem, sou um covarde. Sou um covarde, como todo padre.
Num dos episódios finais, há a leitura de uma carta de amor que o Papa escrevera à única namorada que teve. Lida perto do fim da temporada, num momento estratégico em que sua humanidade salta aos nossos olhos, suas palavras são, ao mesmo tempo, românticas e reveladoras de suas lesões emocionais e, também, da inevitável escolha pelo sacerdócio, que foi preparado para seguir:
O que é mais bonito, meu amor? Amor perdido ou amor encontrado? Não ria de mim, meu amor. Eu sei…sou estranho e ingênuo quanto se trata de amor e faço perguntas tiradas de uma música pop. Esta dúvida me oprime e me abala, meu amor: encontrar ou perder? Todas as pessoas em volta de mim sentem um anseio. Elas perderam ou encontraram? Não sei dizer. Um órfão não tem como saber. A um órfão falta o primeiro amor: o amor por sua mãe. Essa é a origem de sua esquisitice, de sua ingenuidade. Você me disse, naquela praia deserta da Califórnia, “você pode tocar minhas pernas”. Mas eu não as toquei. Isso, meu amor, é amor perdido. Por isso me pergunto, desde aquele dia, onde você esteve, onde está agora. E você, lampejo da minha juventude mal vivida, você perdeu ou encontrou? Eu não sei e nunca saberei. Não me lembro nem do seu nome, meu amor, e não tenho a resposta. Mas é assim que gosto de imaginar a resposta: no final, meu amor, não temos escolha – temos que encontrar!
O Papa eloquente, ácido, rigoroso, magistralmente construído pelo ator Jude Law (que foi, inclusive, indicado ao Globo de Ouro pelo papel), reza sozinho e em silêncio por um amigo morto. Uma cena linda, a que mais me emocionou, confesso. Muito simples, em que o personagem aparece sozinho, cercado de um azul intenso, no fundo de uma piscina (mas que poderia ser um céu), com os braços abertos. Ouve-se seu pensamento em oração:
Deus Todo-Poderoso, agora que tens nosso amado Dussolier em Teus braços, eu Te peço: lembra-lhe daquela tarde em que fugimos juntos do orfanato. Lembra-lhe do medo e da liberdade que sentimos naquela tarde chuvosa. E diz a ele que não há nada de errado. Liberdade e medo andam sempre juntos, como um casal de velhinhos, dispostos a morrer um pelo outro. Lembra-lhe da Irmã Mary com seus 20 anos de idade, cabelos loiros ao vento, banhados de sol, enquanto ela fazia cestas. Lembra-lhe daquela beleza indelével e arcaica que tanto nos comoveu em silêncio. Sei muito bem que nenhum de nós se esquecerá daquela imagem. Lembra-lhe, Deus Todo-Poderoso, de todas as nossas conversas intermináveis na madrugada, naquele enorme dormitório coletivo, sob as cobertas, quando cochichávamos sobre nosso único e inesgotável assunto de discussão: nosso futuro. Éramos crianças. E crianças pintam o futuro com cores que a realidade desconhece. Lembra-lhe de não lamentar os nossos sonhos desfeitos. Queríamos ter a vida do grande jogador de beisebol, do velho frentista da estrada do condado, do soldado heróico, do músico marginal de Nova York, do bombeiro, do marinho de alto-mar. Lembra-lhe de não chorar ao lembrar que, em vez disso, vivemos a simples e sombria vida de padre. Esta vida tão estranha, de preces e esperança que o Senhor, Deus Todo-Poderoso, exista de verdade e talvez pense em nós.
Sutil beleza a deste final: vive-se uma vida de preces e esperança de que Deus exista de verdade e talvez pense no Homem. O apelo de um homem ferido, rezando, saudoso, pelo amigo que partira. O Papa! Pedindo a Deus que alcançasse seu amigo onde sua humanidade não o permitia estar: no mesmo plano que Dussolier. Pedindo a Deus que consolasse o amigo com as lembranças que dividiram em vida. E, ao mesmo tempo, confessando que sua fé em Deus é, antes, uma esperança de que Ele exista de fato. Uma oração profunda e íntima. Ao mesmo tempo, uma mensagem numa garrafa lançada ao mar, que carrega a esperança de chegar às mãos que podem vir em ajuda, sem saber-se, contudo, se chegará. Belíssimo.
Há muito sobre o que falar sobre a série. Por exemplo, que é linda porque sua fotografia recebe trato de cinema, em tudo, nos detalhes, nas cores, nas imagens, na reconstrução dos cenários da Cidade do Vaticano que, por si só, é muito bonita, com suas obras de tarde, pisos de mármore e tetos trabalhados. Os figurinos são muito bonitos. O branco da roupa do Papa reluz, bem como os delicados e dourados detalhes de suas vestes. Os personagens falam três idiomas: inglês, italiano e espanhol. A trilha sonora se alterna entre um tom emocional e, algumas vezes, um cômico. O ator ora se alterna na luz, ora na escuridão, mas sempre se destacam sua beleza, suas feições, suas expressões, o azul do seu expressivo olhar. Há uma intenção em cada escolha de ângulo ou cor. Há muita cor. Imagens fortes como a de um sonho em que o Papa sai de uma pilha de bebês, simbolizando o homem que foi construído a partir do momento em que se viu órfão. As comparações sutis entre Cristo e Pio XIII, desde a abertura dos episódios, em que uma estrela acompanha seus passos, através dos quadros da parede, como a estrela de Belém guiou os homens até Jesus, ou quando ele desmaia no colo da personagem Esther, remetendo-nos, claramente, à imagem da Pietá. A onipresença do Pontífice, bem como seu poder paranormal ou sua mediunidade. As associações que o personagem faz entre a imagem de Maria e a de sua mãe. Há muitos elementos ricos em beleza e significados e, por isso mesmo, vale ressaltar que o texto é um deles.
Recomendo a série pelo primor com que foi feita e pelo interessante percurso do personagem principal. Mais especialmente, pela inteligência dos seus diálogos e pela beleza nas falas dos personagens. E também pelas interessantes provocações que suscita: como pode um homem ser santo e ser tão cheio de defeitos? Como pode um deus construído dentro de uma concepção religiosa qualquer, sobreviver à racionalidade e ao pensamento crítico do homem culto e moderno? Como o divino se revela ao homem? E a pergunta elaborada por um dos cardeais: nos dias de hoje, para que o Homem precisa de Deus?
Por fim, deixo um trecho do discurso que nosso personagem principal faz, numa cena de viagem à Africa. Nas palavras escolhidas pelo roteirista, talvez esteja o mapa para encontrarmos o nosso Paraíso:
Somos todos culpados de guerra e morte. Sempre. Da mesma forma, podemos ser culpados pela paz. Sempre. Peço-lhes de joelhos, estou disposto a morrer por vocês, se virarem culpados pela paz. Sempre digo às crianças que escrevem de todo o mundo: pense em todos as coisas de que você gosta. Isso é Deus! Crianças gostam de todo tipo de coisa mas nenhuma jamais escreveu que gosta da guerra. Agora, olhe a pessoa ao seu lado. Olhe-a com alegria no olhar e lembre-se do que disse Santo Agostinho: se você quiser ver Deus, tem como fazê-lo. Deus é amor. Eu, por outro lado, não falarei a vocês de Deus até que haja paz. Porque Deus é paz e paz é Deus. Deem-me paz e eu darei Deus a vocês.