PALCO ABERTO COM ABOIO – UMA POÉTICA FLAMENCA ALÉM DE ESTEREÓTIPOS

Espetáculo Aboio – (En)Clave Cia de Dança

No início do mês de outubro, o público carioca pode adentrar no universo do Flamenco com o espetáculo Aboio da (En)Clave Cia. de Dança. Para o espectador que tem a referência estereotipada dessa dança, a obra impacta pela forma diferenciada que expõe essa linguagem na cena, tornando o flamenco o fio condutor de um discurso poético que desconstrói e desdobra os símbolos conhecidos desse contexto. Estando as bailaoras Ariana de Britto, Julie Coelho e Maíra Pedroso em constante diálogo com os músicos – percussão: Alejo, cante: Diego Zarcón, guitarra flamenca: Luciano Camara, cante e trombone: Ciça Salles e baixo: Bruno Vitale -, promovem um deleite rítmico que passa pela musicalidade flamenca e brasileira.

AC ENTREVISTA : JULIE COELHO

Nós do ArteCult tivemos o privilégio de ter um breve bate papo sobre a construção criativa e os horizontes da dança flamenca com a bailaora Julie Coelho após o espetáculo, um palco aberto exclusivo para nossos leitores!

 

AC (ArteCult – Rafaeli Mattos) : Como se deu o processo criativo de Aboio?

JC  (Julie Coelho): Tudo começou partindo do ponto de vista que somos três bailarinas de Flamenco, mas que somos brasileiras. Pensando como falar e dançar o flamenco a partir da nossa própria cultura, a ideia do espetáculo surgiu da escolha de músicas brasileiras, com que nos identificávamos e de que gostávamos. Desta forma, nos identificamos muito com a música inicial do espetáculo, “Aboio Avoado”, gravada pelo Lenine.  Essa música criou um fio condutor: primeiro entre nós, pois passamos a conhecer mais sobre o aboio. Fomos pesquisar sobre esse canto dos vaqueiros nordestinos, que foi trazido pelos Mouros através dos portugueses da Ilha da Madeira, as raízes se encontraram, pois o aboio é de origem Moura assim como o Flamenco. O aboio se encontra também com os cantos do Moazinho, um canto árabe que faz o chamado dos fiéis, sendo esta uma das culturas que influenciaram o surgimento do flamenco.

Assim, encontramos pontes entre o semiárido do sertão brasileiro e o semiárido espanhol, fizemos esse enlace, pois assim como o flamenco é uma cultura que vem da terra, do chão e é feito pelo povo que vive e depende da terra, o aboio também tem essa relação com a terra, do povo do sertão, os vaqueiros na condução da boiada. A nossa narrativa poética foi criada a partir disso, de guiar e proteger a boiada e a dança foi-se construindo nisso e falando de territórios. Quais são as fronteiras entre a cultura brasileira e o flamenco, entre a cultura espanhola e a brasileira? E essas fronteiras estão aí para quê? Começamos a nos questionar, estão aí para serem ultrapassadas, para serem barreiras? Fomos brincando com esses territórios e essas fronteiras e o aboio nos guiando.

 

AC : No espetáculo fica evidente a proposta de desconstrução da dança flamenca. Como isso foi abordado na construção cênica?

JC : A desconstrução é uma palavra que tivemos em mente, pois a questão latente era: quem sou eu dançando flamenco sem o figurino tradicional, sem aquela flor na cabeça, sem a peineta, despida de tudo isso, o que sobra da minha dança? A partir daí começou nossa pesquisa. O fato de começarmos dançando descalças, com o figurino mais clean vem desse corpo que está começando a acordar, se movimentar, esse gesto espontâneo que faz esse corpo dançar até cada uma construir seu corpo flamenco, seus movimento e gestos fazendo essa construção. Tivemos o Tony Rodrigues que nos auxiliou com a parte do contemporâneo, e foi esse o percurso.

 

AC : Conte-nos sobre a trajetória do grupo.

JC :  O grupo é formado por três bailarinas que não são do Rio, mas se conheceram no Rio. Sou Curitibana, comecei o Flamenco com a Mire Galeano, que é uma paraguaia radicada no Brasil. Então comecei meus estudos em Curitiba e dei continuidade em São Paulo. Nós três fazemos todos os cursos internacionais que chegam ao Brasil com maestros espanhóis, Carmita Legona, Manoel Linhã, Jesus Carmona, Rafaela Carrasco, entre outros. Muitas vezes conseguimos ir à Espanha fazer cursos também. A Maira é de Campinas, começou a trajetória dela lá com a Mari do grupo Soniquete. Depois passou uma temporada em Paris, onde teve uma escola e montou um espetáculo, e depois veio para o Rio. E a Ariana é de São Paulo, onde começou seu percurso. Nos conhecemos aqui no Rio fazendo cursos e surgiu a vontade de ter um grupo, que já vem de anos. Em 2015 iniciamos esse projeto, um processo que durou um ano e meio.

 

AC : Fale um pouco sobre as perspectivas criativas da linguagem da dança Flamenca.

JC : O flamenco tem uma questão muito estereotipada, dessa dança feita para turista ver quando vai à Espanha: vestido de bola, peineta e flor na cabeça e sapateado. Só que o Flamenco é uma dança muito rica, que mexe muito com os sentimentos internos. Cada dança, cada ritmo, que chamamos de palo, nasceu em uma cultura através dos gitanos, dos ciganos, e cada dança tem um sentido, uma construção, a partir do lugar de onde veio e da cultura que foi criada. E o cante, como chamamos o canto no flamenco, sua letra conta essas histórias, o sentimento que ele transmite também. Dessa forma ele muda: tem as alegrias, que contam histórias alegres, geralmente de cidades portuárias; tem o tarantos, que é uma coisa mais de chão, de terra, dos mineiros, vem das profundezas; da solear, traz o sentimento de soletude, da solidão, um sentimento muito forte.

Tudo isso trabalhamos enquanto dança, experienciamos, vivenciamos, então é uma dança bastante profunda. Temos a pesquisa de como se apropriar desse sentimento, pois não é uma interpretação simplesmente, mas é vivenciar isso no corpo e poder expressar. É uma vivência muito profunda, pois exige todo um trabalho corporal. Vai muito além do flamenco não somente o estereotipado, mas do flamenco folclórico, que como cultura folclórica é muito rico, mas ele vai além, ele tem uma linguagem da dança mesmo, que muita gente desconhece.

QUE TAL AGORA CURTIR UM POUCO DO ESPETÁCULO?

Neste pequeno Teaser percebe-se a força do Flamenco e a inovação deste show!

Artigo e Entrevista de Rafaeli Mattos para o Portal ArteCult

Author

Mestre em Artes Visuais, com ênfase em dança – UFRJ (2013), Especialista em Estudos Contemporâneos em Dança –UFBA/FAV 2007 e Bacharel em Dança, Intérprete e Coreógrafa, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – 2006/1. Possui formação em jazz, ballet, ballet moderno – Horton, dança contemporânea, sapateado e canto popular. Qualificada Profissional da Dança, artista-dançarina sapateadora e Instrutora de Dança, seguimento sapateado, pelo SPDRJ, atua como professora de sapateado, jazz e balé desde 2007 em diversos espaços de dança do Rio de Janeiro. Integrou a Cia de Dança Contemporânea Helenita Sá Hearp – 2004/1 a 2005/1, Cia Étnica de Dança e Teatro – 2007 a 2008, Projeto Ateliê Coreográfico do Centro Laban RJ – 2008 a 2009, Projeto de residência internacional da coreógrafa Erica Essner (Erica Essner Performance CoOp) no Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro 2007 e do grupo A.C.Ho com a performance Q _ _ _ _ _ , realizada no eventro Transperformance em 2011. Como cantora atuou na Cia Nós da Dança no espetáculo Bossanossa – 2009. Foi coreógrafa residente no Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro de julho de 2005 a julho de 2006, onde realizou seu primeiro trabalho autoral Chora Corpo Choro, composto pelos solos Rádio e Violão Mudo e pelo quarteto Choro na Feira. Seu segundo solo autoral Ah vai andas?! participou, em junho de 2012, em work in progress do evento Novíssimos da Ocupação Dança pra Cacilda. Em 2015 integrou o corpo de jurados dos festivais de dança Barra Dance e Barra Dance Kids. Sua oficina de Sapateado para Terceira Idade foi contemplada nos anos de 2014 e 2015 nos editais Viva a Cultura e Viva o Talento da secretaria de Cultura do RJ. Hoje atua como professora de balé e sapateado na ONG Projeto Dançarte.

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