Lembro-me da minha primeira aula de Estudo do Texto, uma das matérias do núcleo básico da minha faculdade, em que o professor nos provocou a partir da leitura de “Primeiras Estórias”, de Guimarães Rosa. Na época, ainda adolescente, nunca tinha lido nenhum autor tão difícil.
Atravessar o texto, a linguagem peculiar do autor e, ainda, conseguir identificar todos os possíveis significados daquela narrativa foi uma tarefa que me exigiu uma maturidade que ainda não tinha, não só como ser humano mas também como leitora. Afinal, Guimarães está entre os autores do meu rol particular de “pensadores profundos”.
Da dificuldade de corresponder à expectativa do professor, que me cobrou mais do que uma mera compreensão de texto mas também a interpretação e a observação dos recursos com que fora escrito, pulei direito para o deleite das descobertas individuais de cada colega (cada leitor, uma leitura) e, mais encantadoras, as do meu próprio professor.
Sempre gostara de ler. Não foi à toa que cursei uma faculdade de Letras. Mas, naquelas aulas, pela primeira vez, entendi que a leitura é um exercício muito profundo e, por isso, muito transformador. Quando entendemos, então, a obviedade de que não existe uma só leitura sobre um mesmo texto (seja ele prosa, pintura ou canção), ainda que sejamos nós mesmos a lê-lo numa segunda vez, mais transformador é ainda.
Num desses “banners” veiculados em rede social, há uma frase em que se diz que, no atual momento, falta amor mas falta também interpretação de texto. Não sei quem é o autor da frase que viralizou. Mas ela, na sua simplicidade, possui um conteúdo muito verdadeiro.
Assusta-me, a cada dia, a dificuldade de diálogo nessas plataformas, em que as posições se polarizam cada vez mais. Mas assusta-me ainda mais que isso parta das leituras diagonais, superficiais, que as pessoas, de uma forma geral, fazem das notícias, dos livros, dos filmes, dos fatos que ocorrem no mundo que as rodeia. Pior: toda uma geração de leitores está se acostumando a fazê-las e a opinar sem ter elementos suficientes para sustentar sua opinião.
Se observarmos com atenção, até a forma como as notícias são publicadas é pensada para um leitor que não avança mais do que três parágrafos na sua leitura. Temos cada vez mais leitores e, paradoxalmente, lê-se cada vez mais fragmentadamente. Assim como temos cada vez mais acesso a informações e, paradoxalmente, menos capacidade de absorvê-las, seja porque sua divulgação é excessiva, seja porque nosso tempo é escasso.
Some-se a isso o fato de que a publicidade e a própria imprensa, se a serviço de interesses econômicos, fazem parecer verdade aquilo que é incerto, questionável ou, até mesmo, falso. Considere-se, ainda, o poder que essas ferramentas têm na construção da ideia acerca do que é real no mundo. Soa, então, cada vez mais urgente, a necessidade de investir-se na formação de leitores reais, seja através do incentivo à leitura (não só jornalística mas artística, literária), seja favorecendo discussões que relativizem o conteúdo lido e promova o mergulho nas ideias que o texto provoca em si próprio e no outro.
Só se aprende a ler, lendo. E ler não é só decodificar palavras, é debruçar-se sobre o texto. É tentar criar intertextualidades: o texto e a vida; o texto e aquele filme que vi; o texto e aquele outro livro. Ainda que essas relações se estabeleçam em oposição, como “esse texto diz o contrário do que dizia aquele outro”. É conversando sobre o que se leu e vendo o que o seu interlocutor “pescou” e você não viu. Ou até discordando dele e oferecendo sua experiência de leitura, aceitando que ele discorde dela.
Para isso é preciso aprender a enxergar entrelinhas, sarcasmos, citações. Mergulhar numa segunda intenção, se lá houver uma. Contentar-se com a escrita despretensiosa, se despretensiosa ela for. Não é preciso desmontar formas nem fazer nenhum trabalho teórico-literário, como lá na aula que citei no início. Basta abrir a mente para as ideias e deixar que elas se associem a novas. Prosseguir com o hábito de ler que o olhar perspicaz se aguça naturamente, sem que se tenha a intenção de aguçá-lo; que a mente se enriquece e melhora sua relação com os signos a sua volta, sem que você tenha sido treinado para isso. A prática vai trazendo a expertise. E, se o assunto interessar-lhe, pense em ler mais, um outro lado, aquele que pensa diferente, que diverge, para reafirmar suas certezas ou aceitar o enfraquecimento de suas “verdades absolutas”. Seja suficientemente vulnerável para permitir-se entender o que lhe diz o outro. Só assim você aprenderá a ser verdadeiramente crítico.
Estamos nos tornando leitores cada vez mais superficiais, eu disse. E uma característica colaborativa forte para isso é o fato de que estamos nos fechando em pequenos guetos intelectuais – nas redes sociais ou na roda de amigos. Estamos com cerimônia de divergir e provocar discussões. Estamos discutindo só com nossos pares. Fortalecendo a polarização e empobrecendo nosso entendimento sobre as coisas e sobre o mundo em si. Ainda que involuntariamente, mergulhando numa zona de conforto.
Quanto mais fechamos a mente às diferentes perspectivas e quanto mais lemos de forma superficial os autores mais fáceis, as notícias mais curtas, mais colaboramos para o fortalecimento das afirmativas que se tornam verdades não porque são idôneas mas porque possuem mais força midiática. Menos questionamos os valores que nos são vendidos ou os fatos reais das notícias que nos são veiculadas. Mais aceitamos como real um mundo fabricado e menos o construímos de fato.
Se você não gosta ou não está pronto para um autor, leia outro, um seu favorito, e preste atenção na visão que ele lhe oferece sobre a vida e pense em como ela pode modificar a sua ou aqueça seu coração se ela encontrar eco nos seus próprios pensamentos. Preste atenção na beleza, nas palavras que ele escolheu para contar sua história ou vender sua tese. Abra a mente para a riqueza de todo o texto e, acredite, você vai passar a preferir os mais ricos – em conteúdo, em beleza ou em imaginação, dependendo do que estiver procurando como leitor.
Aprender a ler é aprender a enxergar. É empoderar-se. É fazer ressaltarem-se as nuances do mundo que nos cerca. Às vezes, isso nos traz dor; noutras, prazer. Mas, de todo jeito, é o que mais nos permite estabelecer, de forma verdadeira, nossas relações com o mundo. É o que nos faz sentir a Verdade – se não a absoluta (que não acredito que exista), ao menos aquela que nos alimenta, intimamente, a alma.
ANA GOSLING