“Eu sou um sujeito muito compulsivo para escrever. Nunca sei o que quero realmente revelar, de narrativa. Nunca sei onde vai dar a narrativa, como é que vai terminar. Estudo muito pouco a onda narrativa, os personagens. Porque sou um autor de linguagem. O que me puxa é a linguagem, não qualquer contexto de conteúdo. Sou um escritor de linguagem. Nesse sentido que disse que seria um escritor como um jazzista improvisa. Sou um improvisador no que escrevo. Olha que escrevo romance! Talvez, o improvisador seja mais ligado, digamos, a um poeta ou a um contista. Mas eu sou assim no romance, a cada vez que sento para dar continuidade ao romance, naquele conflito do próprio instante que as coisas se dão. Não quero saber de ontem, nem de amanhã. Mas do que está se passando em mim e aquele espaço em branco que devo preencher.”
(João Gilberto Noll, em entrevista)
Todos fomos pegos de surpresa com a morte de João Gilberto Noll esta semana. Ficamos órfãos inadvertidamente, como se abandonados em uma floresta escura de infecundas percepções. Tudo arde. Claro, sabemos que poucos serão os escritores que terão uma longevidade como a de Barbosa Lima Sobrinho, que chegou aos 103 anos, ou como a de Roberto Marinho, também quase um centenário. No entanto, 70 anos é muito pouco, principalmente para um escritor com tamanha lista de fãs e de escrita tão sinérgica e sensual. Ele era único.
Li seu A Céu Aberto há muito tempo. Tinha pouco mais de 20 anos, faculdade de Letras, foi lá que o conheci. Soube de um programa de Escritor Visitante, mas na UERJ do Rio, eu estava na de São Gonçalo, a famosa FFP. Aquele livro fora um soco, aquela sinestesia malemolente de várias sexualidades, entremeios e dúvidas. Aquele garoto que era não estava apto a lê-lo em sua maestria. Mas o li, fui até o final. Entendi-me naquele personagem perdido em si mesmo, que tanto se lia e parecia não se compreender. Era um tudo e ao mesmo tempo um nada. Inconstância.
Essa pluralidade é que se cadencia em sua obra. Como ele próprio afirma, seu desejo era a linguagem, esse artífice plural e inconstante. E para tal, era mestre. Descobrimos a morte do autor pelas redes sociais. Uma afirmação de seu irmão, logo pela manhã, trouxe para todos o golpe. Eu, que vivera o golpe da perda de um aluno de maneira tão bestial e sacana, ceifando um talento em construção, vi esse que era uma referência tornar-se história triste em uma manhã que parecia ser comum. Noll será sempre incomum. Um ícone de desleveza.
Dou-me à liberdade de colocar aqui dois testemunhos de pessoas que tiveram a intimidade do convívio com ele. Não farei desta coluna hoje um testemunho à literatura que nos é tão cotidiana, mas ao autor que era tão vivo, vivaz e fundamental. Percebam:
“Sem chão. Nuvem nublada. João Gilberto Noll se foi. Morreu. Lembro-me de nós nos anos 90, comendo salgadinhos de carne seca com requeijão no bar da Cris, das oficinas literárias da Uerj, de nossa turma de escritores aprendizes que mais regurgitava fora de sala.
Lembro-me de linguagem, de poesia na prosa, de aberturas que me desmontavam como a de “O Quieto Animal da Esquina” e o solilóquio do Lorde em “A Céu Aberto”.
Se me tornei professor de escrita criativa foi muito por conta de tuas oficinas, caro amigo. Aprendi contigo. Desaprendi conosco. Obrigado por tudo, pelas dicas e por me desencaminhar.
Hoje, a literatura brasileira não é mínima, nem múltipla e nem comum. A literatura se esvai como em teus romances.
Hoje o dia está sem enredo, sem linguagem.”
(Flávio Corrêa de Mello – poeta e ensaísta) – fonte: https://www.facebook.com/flavio.correademello
“GANHAMOS NOLL”
Perdemos Noll. Acordei nesta quarta com mensagens me contando, Rodrigo Casarin do UOL me pedindo um depoimento. Ele foi encontrado morto em sua casa noite passada – sem maiores detalhes.
Ele era o maior de todos. Vivi a obra dele. Conheci da melhor maneira, acho, quando me mudava para Porto Alegre, em 2000, lendo “Rastros do Verão”, novela sua de 1986, encontrando a cidade muito como o personagem do livro. Andava pelas ruas com meu namorado da época, procurando os cenários descritos no livro, o prédio amarelo de três andares na Rua Riachuelo…
Anos depois percebi que eu estava chegando a algum lugar quando dividi a primeira mesa com ele. Nos conhecemos num jantar em São Paulo, na casa da agente dele, Marisa Moura, em 2005. Não pude deixar de me assumir como fã, contei que “Meu Amigo” era meu conto favorito de todos. Ele me olhou com aquele olhar perdido e disse: “Sabe quem nem me lembrava desse conto? Mas você falando agora, acho que é o meu também…”
(Santiago Nazarian, romancista)
O restante do texto encontra-se aqui:
http://santiagonazarian.blogspot.com.br/2017/03/joao-gilberto-noll-1946-2017-perdemos.html?spref=fb