Duas notáveis da literatura brasileira: Rachel de Queiroz e Nélida Piñon.
Destacam-se por conseguirem efetivamente entrar em um universo que antes era tipicamente masculino: a Academia Brasileira de Letras. Neste mundo, em que os moldes masculinos parecem erigir suas vertentes e formas, elas duas se firmam como um avanço, não só pela literatura que produziram, mas por fincarem a efígie feminina em locais onde antes parecia não lhes haver espaço.
Esta coluna já prestou seu espaço a outro grande nome feminino da literatura brasileira: Lygia Fagundes Telles. Neste momento, não me prestarei a supostas aproximações de suas características de escrita. Lygia encanta por sua firmeza e controle psicológico. Rachel de Queiroz surpreende desde sempre, primeiro por sua juventude em época de publicação de seu primeiro romance. Ela tinha 19 anos quando da primeira edição do livro. O Quinze, sua Magnus opus, é atemporal. Atavismo e intemperança limam a obra e seus personagens. Por fim, foi a primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras. À época, o fardão feminino fora criado, especialmente para sua entrada.
Como esta coluna primordialmente se presta às leituras, às percepções tão íntimas da palavra, vale a pena destacar uma parte do discurso de posse desta elementar escritora. Diga-se de passagem, é um dos mais belos discursos de posse, com uma sensibilidade a toda prova.
Aqui o segue:
“No oitão branco, batido de luar, da velha casa de fazenda, devagarinho vai-se abrindo uma janela, a que dá para o pequeno jardim fechado, onde há cravos, bogaris e uma laranjeira. A menina-moça, mais menina do que moça, debruça-se ao peitoril e procura a lua com os olhos. Logo a descobre, tão clara, daria para ler uma carta!
A menina assesta na lua, diretamente no disco da lua, os seus olhos que já são míopes. Suspira, mas é um suspiro diferente, satisfeito, consolado; a menina ainda não está na idade dos suspiros propriamente ditos, está na idade das imaginações e dos sonhos. E, de olhos fitos na lua, silenciosamente, mal movendo os lábios, vai murmurando para si uma reza, uma encantação – um poema? Um poema que é reza e encantação. Vai murmurando como se rezasse para a lua, e na verdade está rezando para a lua:
…
Astro dos loucos, sol da demência
Vara, noctâmbula aparição!
Quantos, bebendo-te a refulgência
Quantos por isso, sol da demência,
Lua dos loucos, loucos estão!
Já reconhecestes na encantação rezada pela moça o poema inesquecível. E na adolescente que se tenta fazer bruxa daquele culto lunar, permiti que vos apresente a velha senhora de hoje tentando desvendar os seu laços antigos com o poema e com o altíssimo poeta.
…E assim fitando-a noites inteiras
Seu disco argênteo n’alma imprimi…
………………………………………………….
Passei fitando-a noites inteiras,
Fitei-a tanto que enlouqueci!
E a menina fitava a lua, fitava, esperando o transe, o rapto, o santo. Encandeava-se de lua, fechava os olhos, sentia sob as pálpebras o disco branco
…seu disco argênteo n’alma imprimi…(…)
O largo manto do meu luar…
Ficava assim até que cantasse o galo da meia-noite – os galos cantam cedo em noites de lua cheia – e então cerrava lentamente a janela e voltava à sua rede branca de varandas de renda, onde dormia e sonhava, os olhos brancos de lua, redizendo o poema até dormir com ele.
Foi essa a minha primeira e mais grave intoxicação poética. Tive outras depois, mais amenas, já vacinada pela leitura e pela experiência que aumentava.”
Junto de Rachel, destaca-se neste espaço antes tão masculino que era a ABL Nélida Piñon. Tornou-se sua primeira presidenta. Dona de uma obra extensa e valiosa, trouxe uma visão intimista, sensual e malemolente. Quando me debrucei sobre A Doce Canção de Caetana, senti esse intimismo em uma narrativa contundente e loquaz.
Destaco um breve trecho de seu discurso de posse, ao qual já recorri em pouco de minhas diversões internéticas.
Eis que segue a diversão:
Desde a infância, o mundo pareceu-me encantatório e perturbador. De início, colhi-o no regaço da casa e da própria fantasia. Depois, a realidade me veio por meio dos escritores e ainda de ilustres anônimos, todos criaturas de despudorado alento, que me fizeram crer nos mais intrincados enredos. E que, por falarem, uns e outros, a língua dos homens, haviam presenciado a vida passar. Tanto os escritores quanto esses rapsodos tinham a vantagem de se esfumar, tão cedo se lhes esgotava o ciclo narrativo. Logo, em seus lugares, vinham outros, com igual mérito para escrever e contar. De forma que essas histórias, oriundas de bocas famintas e maliciosas, pudessem reproduzir-se sem interrupções.
Aprendi, então, que, para tal registro não se perder nas noites clandestinas, devíamos – tripulantes desta caravela – exceder-nos no próprio ofício de narrar. Sem reclamar, contudo, verdades ou certezas, uma vez que as palavras procediam comumente do forno da mentira. E mister fazia-se roubar nacos da existência vizinha, de pecado mais fornido que o nosso.
Não, a realidade não era o que eu via ou o que se deixava tocar. Seu arcabouço, muito além do previsto, tinha como substância a nossa história conjugada a outras tantas histórias produzidas ao mesmo tempo por todos os vizinhos do mundo.
Mas foi na Língua Portuguesa que encontrei pouso e graça. Sobre ela debruçada cada manhã, ungida pelo seu exigente desafio, professei-lhe sempre intransigente amor. No livro A Força do Destino, de 1978, ao invectivar Leonora e Álvaro, personagens recalcitrantes, a acatarem o modelo narrativo que lhes propunha, assim lhes falei sobre esta Língua:
Unicamente por minhas mãos ingressariam ambos na Língua Portuguesa, que é – como expliquei a Álvaro – um feudo forte e lírico ao mesmo tempo. Um barco que até hoje singra generoso o Atlântico, ora consolando Portugal, ora perturbando o Brasil. E porque esta Língua tem vocação marítima, entende bem os impropérios do vento, mais que qualquer outra se deixa levar pelos sentimentos. Os ais e os prantos a seduzem tanto, que esta Língua busca as estradas de ferro para medir de perto a intensidade das mágoas que só ganharão corpo e expressão através de seus recursos. E porque ela se orgulha do que é humano, esta Língua Portuguesa, de rosto e sexo ardentes, é capaz de saber, apenas pelo apito do trem, se quarta-feira é dia de usarem-na os amantes quando se querem perder para sempre. E, como está em todas as partes, é privilégio seu provar a saliva de qualquer beijo, sentir-lhe a densidade do sal. Pois quanto mais salgado o beijo, mais as desesperadas palavras do seu patrimônio ganharão saída pelos poros, os olhos arregalados.”
Importante salientar que leio novas vozes femininas neste universo de tantas letras. Suponho mais cedo ou mais tarde escrever sobre uma que tenho particular identidade com seu universo de escrita, tão saliente e delicada, tão fina e elegante. Digo aqui, cenas para os próximos capítulos. Apenas me resguardo a terminar de ler a porcelana que nos proporcionou.
Até a próxima.