Último dia 13 deste mês, um dia após a premiação de Antônio Torres na Academia Carioca de Letras, fui a um sarau aqui no Méier.
Desde que voltei ao Rio, algo há um pouco mais de um ano, passei a acompanhar com entusiasmo a cena carioca de literatura. Por morar na Região dos Lagos, via a sua evolução pelas redes sociais. Com um certo tom de querência, de vontade de lá estar, mas desanimado pelas distâncias e não periodicidade destes eventos, vi muitos surgirem e desaparecerem. Uma pena.
Mas não é que o vou relatar hoje.
Em pleno restaurante Rei do Bacalhau na Dias da Cruz, vi algo que me surpreendeu. Um restaurante cheio de poetas desinibidos, declamando, cantando e expondo sua arte sem o mínimo pudor de contradição. Eles liam, declamavam, alguns de cor, efusivamente os seus textos. Posso falar claramente em 70 pessoas espalhadas pelo restaurante. Eu cheguei timidamente, já pensando em escrever esse texto, tinha um olhar de jornalista cultural, alguém mais preocupado em catalogar a situação e trazê-la à mostra para nós que tanto amamos literatura.
Ledo engano meu. Ali se vivia literatura.
Capitaneados pelo crítico literário, poeta e professor da UERJ, Marcelo Mourão, vi algo que me deixou realizado. Há tempos sinto que algo desta magnitude, com tamanho despojamento e ritmo tem de acontecer para a literatura. Muitos que hoje estão no metiê criticam os grupos que se formam e se balizam, congratulando entre si prêmios literários e críticas que mais servem à propaganda do que crítica propriamente dita. Ali se encontravam artistas a serviço da arte.
Poesias das mais variadas experiências, em seus vários timbres e tons me foram expostas. Pena não tê-las escrito, anotado, para que aqui eu as expusesse.
Porém, tive acesso a dois livros.
O primeiro, Máquina Mundi, do próprio Mourão. Ele, que me reconheceu um estranho naquele universo, – penso que minha expressão de embasbacado estivesse tão clara – veio à minha mesa – jantávamos eu e minha esposa – e ali conversamos. O projeto SARAU POETA SAIA DA GAVETA acontece desde 1993 nesta mesma região. Papo agradável, sem muitos excessos, me mostrou uma literatura daqueles que vivem a literatura sem as concretezas que muitos buscam.
De seu livro, destaco um poema, como uma degustação do que encontrei.
“À DERIVA
faz vinte ano que não sei
mais o que é amar alguém.
E dez que não me apaixono
será que o tempo-oceano
que naufraga céus e sonhos
foi me afogando também?”
(Marcelo Mourão, Máquina Mundi, página 52)
O segundo livro, que ilustra até o título deste texto, tornou-se a simbiose deste encontro. Da poetisa Regina César. Sentada à mesa ao lado, degustava seus aperitivos com singularidade e sinceridade. Fiz questão de comprar seu livro, por toda história de vida que possui e de como aquele livro lhe representava toda a liberdade com que sonhara. Poesia viva. Afetos reais.
Destaco um poema, só para demonstrar a grandeza de tudo que encontrei.
“Clareza
A clareza chegou até a minha mesa
e encontrando-me sentada, descansada,
avançou sobre a minha cabeça,
sacudiu-a e mostrou-me
que o tempo não pousa
nem repousa.
Ele somente passa…
Percebendo-me ali, parada,
torturou meus pensamentos
e desandou a exigir-me a resposta:
o que fazer com a consciência
deste tempo que não volta?”
(Regina Cezar, Baseado em afetos reais, página 31)
Despeço de 2016 com a sensação deste encontro.
Para os que querem começar 2017 com essa literatura viva e pulsante, já logo digo que outro evento organizado por Mourão irá acontecer no Espaço Multifoco, no Centro do Rio, dia 12/01.
Aconselho a aparecerem.
E que 2017 seja um ano mais do que belo.
Literário.
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