Talvez se eu pedisse a você para pensar num ato de bravura, imagens de grandes feitos viriam a sua mente. Um jovem empunhando uma bandeira branca na frente de tanques de guerra em movimento. Homens enfrentando a escuridão e o frio para chegar a um destino perigoso.
Decisões que podem mudar o curso da humanidade, expostas diante do inimigo. “Davis” diante de “Golias”. Atravessar florestas e desertos. Naufrágios em oceanos. Lutar na guerra.
Coragem é coisa para Hollywood. Tema de filme para Oscar. Narrativas de homens diferenciados com histórias únicas que inspiram outros homens. Bem, para mim, é mais simples: coragem é a qualidade básica para (sobre)viver nesse mundo. É o essencial para nos movimentar. Poucos são os grandes homens que se vêem diante de grandes decisões e de grandes feitos. Mas, no dia a dia, todos precisam se superar e vencer seus medos para poder ser mais, sonhar mais, amar mais, ser mais amado.
Quando penso em coragem, a primeira referência literária de que me lembro é “I-Juca Pirama”, o famoso poema indianista de Gonçalves Dias. É um épico, a história de um índio tupi feito prisioneiro pelos timbiras. Enquanto correm os rituais para sua canabalização, ele suplica por sua liberdade para que possa continuar a cuidar do pai, idoso e cego. É, então, solto pelo chefe timbira, que vê na sua súplica uma evidência de fraqueza – um autêntico guerreiro morreria em luta. Ao reencontrar-se com seu pai, o velho acaba descobrindo que ele estivera em combate e fora solto pela tribo. Sem querer ser o motivo da desonra do filho, ele o leva de volta à tribo e lá descobre que o índio havia chorado diante da morte, sendo renegado. O pai se sente humilhado, pragueja contra a vida do filho, censura sua postura covarde, culpa-o por envergonhar a raça dos tupis. Então, para ser grande aos olhos do pai, o índio se enche de coragem e luta contra toda a tribo timbira. Acaba morrendo em combate, como herói. Sua história é contada através de gerações na tribo tupi. O poema é belíssimo, tem dez cantos e versos de métricas diversas. É considerado a obra-prima da carreira do poeta e um dos maiores poemas da Língua Portuguesa.
Minha mãe o sabia inteiro de cor. Vida afora, ela o declamava, de vez em quando, à mesa do almoço, à beira da cama de dormir, até mesmo no quarto do hospital. Minha mãe gostava daqueles realces da bravura de um herói romântico e, muito mesmo, das métricas do poema. Degustava-o, estrofe a estrofe. No fim de sua vida, era eu quem lia o poema a sua cabeceira e, às vezes, ela me surpreendia, declamando longos trechos intactos na sua memória.
“Não chores, meu filho;
Não chores, que a vida
É luta renhida:
Viver é lutar.
A vida é combate,
Que os fracos abate,
Que os fortes, os bravos
Só pode exaltar.”(trecho da Canção do Tamoio, um dos dez cantos de I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias)
Eu e ela falávamos da importância da coragem como elemento da construção do personagem principal. Da bravura que, essencialmente, tinha que se associar à imagem daquele índio. Para meu olhar contemporâneo, ela já existia desde o pedido de libertação. Em nome do amor pelo pai, um guerreiro abrira mão de morrer honrado. Para mim, há muito drama aí. É preciso coragem para isso, não? Para amar nesse nível de entrega, sabendo que sua tribo interpretaria seu gesto como covardia? Mas, para os românticos, da forma como se construíam essas narrativas, a coragem estava no combate, no enfrentamento dramático do problema, na morte. Honra, coragem, força, sacrifício definem um herói, empurram-no para uma jornada própria de superação e conquista. Na verdade, é isso que faz com que ele se distinga dos homens comuns.
Lembro do poema, de minha mãe e suas lutas pessoais. Das minhas também. Poucos participam de uma guerra real na vida. Todos, entretanto, temos muitas batalhas. Às vezes, apenas íntimas, pessoais, nem por isso menos difíceis. Todos precisamos de coragem para atravessar nossa existência, mesmo que não sejamos líderes nem guerreiros de nações; ainda que sejamos o mais comum entre os homens comuns.
Uma criança vestida de índio numa dança de escola pode estar com medo de ser canabalizada, batalhando contra o medo do ridículo. Mesmo sem timbiras para enfrentar, pode tremer diante da platéia porque, para ela, cada um dos seus movimentos é luta em nome de sua honra.
Lembro de um ensaio fotográfico que vi, certa vez: crianças com câncer se vestiram como seus super heróis favoritos. Estavam lá, com suas limitações, com sua fantasia mais bonita, de força e de saúde, alargando seus sorrisos diante da câmera. Há uma certa dose de inocência aí, claro. Mas quanto não há de coragem em sonhar diante de sua existência fragilizada? Em expor suas marcas e curativos para a câmera? Em abandonar, por horas, a luta diária pela sobrevivência para dar espaço para alegria?
Tenho pensado em como o dia a dia nos exige sempre pequenos gestos de coragem. Ser frágil diante do objeto do nosso amor, sem saber se o sentimento será recíproco, se a aliança será duradoura. Iniciar um dia de trabalho, apesar da dor de uma perda, de uma relação rompida ou de um diagnóstico preocupante. Ter que partir, deixando para trás um pedaço de sua história. Encontrar motivação para sonhar, mesmo sem ter, ainda, tempo, dinheiro ou estudo para a realização do sonho. Manter-se firme, apesar das adversidades. Cultivar amigos e amores, apesar das desilusões. Responder à vida como se deve, para tudo fluir: seguindo, fazendo, construindo, rolando a bola para a frente.
Há um trecho de “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, que, para mim, define melhor o sentimento de coragem:
“O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito – por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia.”
(Guimarães Rosa, in “Grande Sertão: Veredas”)
O livro citado é o romance mais conhecido do autor. Numa definição rasa, narra a história do jagunço Riobaldo, sua relação com Diadorim, e a descrição dos eventos da vida embaralhada com o processo de autoconhecimento do personagem principal. Há quem o considere um grande poema, porque, embora sua estrutura seja de prosa, sua narrativa é poética. É um dos livros mais bonitos e profundos da nossa literatura, na minha opinião. Guimarães Rosa, além de ser um dos maiores escritores da Língua Portuguesa, é considerado por muitos um grande pensador e, por isso, a leitura de sua obra ultrapassa os interesses exclusivamente literários e suscita, por vezes, debates no campo da filosofia ou da psicologia. Sua definição de coragem fala mais ao meu coração, é mais contemporânea e palpável para todos nós, homens comuns. A coragem é inerente a quem vive. A vida nos embrulha em tramas que nos levam da tristeza à alegria, do prazer à dor, e vice-versa. Viver é aprender a ser alegre, apesar das situações de vida.
Somos todos guerreiros. Nossa tribo tem um lugar no mundo, onde outras tribos coabitam. Mas a luta é, primeiro, íntima, individual. Diária. No fluxo dos acontecimentos. Diz o autor em outro trecho do mesmo livro:
“A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada. O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. Viver é muito perigoso; e não é não. Nem sei explicar estas coisas. Um sentir é o do sentente, mas outro é do sentidor.”
(Guimarães Rosa, in “Grande Sertão: Veredas”)
O controle que nos escapa. A vida que é de todos, panela que todo mundo mexe, cumbuca que todos põem a mão. Mesmo o que nos acontece diretamente. Não podemos controlar senão a nossa atitude diante da vida. Ter coragem. Dar continuidade pelo caminho em que o fluxo se desviou. Modificar-se. Correr perigo. Encontrar abrigo. Viver é intenso, é sorte lançada, é descontrole que tentamos domar. Viver é coisa para os bravos.
E Literatura, amigos, é esse pulsar de beleza e de idéias. Cria lembranças amorosas à beira da cama ou à mesa de almoço. É combustível para entendermos o que somos e sentimos, o que queremos num mundo cada vez mais exigente. Permite epifanias. E nos ensina: podemos resistir à correnteza e fazer fluir. Podemos, todos, escrever outros finais. Porque nossa essência é feita de coragem.
“Fui aprendendo a achar graça no desassossego. Aprendi a medir a noite em meus dedos. Achei que qualquer hora eu podia ter coragem.”
(Guimarães Rosa, in “Grande Sertão: Veredas”)
ANA GOSLING