Quantas vezes você já ouviu ou disse a frase: “o livro é muito melhor do que o filme”, ou o comentário: “partes fundamentais do livro não estão no filme”. Pois é, se o filme for “literalmente” como o livro, certamente será um filme ruim. São linguagens muito diferentes.
Literatura e cinema andam juntos desde que Georges Méliès deu dignidade artística à invenção dos irmãos Lumière. Mesmo que o filme não venha de um texto publicado, sua origem tem, como base, a ideia escrita e roteirizada.
Nos anos 1960\1970, nosso controverso maior cineasta, Glauber Rocha, cunhou a frase: “Cinema se faz com uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”, para dizer que o filme era uma arte livre, não precisava das estruturas literárias. Mas ele próprio sempre fez seus roteiros, alguns bem elaborados.
A transposição conhecida como adaptação, inclusive com Oscar para o tal roteiro adaptado, a meu ver, ficaria melhor se fosse chamada de transformação, ou texto transformado para cinema. É fácil perceber, por exemplo, a dificuldade de adaptar, em imagens, os pensamentos de personagens, a maioria, complexos. Sem levar em conta que, com o texto, a imaginação do leitor entra em sintonia com a do autor, completa a do escritor. No filme, vemos o que o diretor quer que vejamos, as personagens têm a aparência que o realizador escolheu. Isso sempre nos causa frustrações.
Outro importante detalhe é que, se alguns livros fossem levados ao pé da letra, o filme teria cinco ou seis horas. Alguns cineastas, como alemão Rainer Werner Fassbinder, até fizeram isso. Hoje, só em seriados.
Na real, do livro ao filme, o texto passa por duas transformações. Primeiro para o roteiro e, em seguida, para a imagem. No último caso, por uma série de, aí sim, adaptações, nem sempre ao gosto do diretor.
Para exemplificar, mostro aqui um pequeno detalhe do desafio a que me impus na realização de um curta-metragem. A ideia foi transformar o conto “Com o andar de Robert Taylor”, de Roberto Drummond, em um filme com o mesmo título. Tive como parceiro o roteirista Alfredo Oróz. No conto, o personagem Afonso é apresentado no primeiro parágrafo:
“Sigam este homem que está andando no anoitecer desta sexta-feira de julho no Brasil; ele tem cinquenta e nove anos, quarenta dos quais vividos nas prisões brasileiras, na vida clandestina e no exílio, e, se vocês o observarem bem, vão notar que parece mais velho do que é. Talvez seja porque hoje, enquanto caminha por uma rua de B…, a bela B… em que, nos piores dias da ditadura do general Médici, viveu com o codinome de Afonso…”
Já o roteiro o apresenta da seguinte maneira:
“Sequência 2 – Táxi – Dia
Faz calor, o rosto do homem (AFONSO) está suando, ele saca um lenço, enquanto olha para fora, a cidade que não vemos.
O táxi pára e ele pergunta ao motorista, que também não vemos.
AFONSO
Não é caro? É um bom hotel?
MOTORISTA (OFF)
É limpinho e decente sem ser caro.
Sequência 3 – Recepção hotel – Dia
É um hotel modesto, típico de viajantes de comércio do interior. AFONSO preenche a ficha, enquanto o RECEPCIONISTA, um simpático interiorano, olha de perto o que ele escreve, sem disfarçar.
RECEPCIONISTA (ADMIRADO)
O senhor parece estrangeiro.”
No filme, foram necessárias três sequências para apresentar o Afonso, o que havia se passado com ele e onde estava no momento. Você pode ser assistí-lo neste link:
Como eu disse, são gêneros artísticos diferentes, que exigem uma linguagem, artifícios e truques diversos para comunicar o mesmo conteúdo. Pense nisso na próxima vez que for assistir a um filme transformado de um livro…
Notinhas
1 – O conto está no livro “Quando fui morto em Cuba”.
2 – O filme foi premiado em vários festivais, nacionais e internacionais, como melhor filme, direção, ator e fotografia.