A cantora Virginia Capibaribe nasceu no Recife, mas no seio de uma família musical cearense que vive hoje na capital, Fortaleza. Ela conta que sempre recebeu influência musical em casa, através da mãe, Norma, hoje com 75 anos, compositora e cantora que toca piano e acordeão.
Quando tinha 8 anos, viu a mãe tendo aulas de violão e se encantou. Com o ballet clássico, que pratica até hoje, aprimorou seu processo de musicalização.
Além dela e da mãe, um irmão guitarrista, Antonio de Pádua Pires, e um tio-avô, Afonso Aires, que foi um grande violonista, têm a música no sangue. O tio, inclusive, chegou a acompanhar a cantora Ademilde Fonseca nos anos 40 em shows e programas de rádio.
Tímida, dona de uma voz poderosa, Virgínia divide com este canal sua história, seu profundo conhecimento musical e seus sonhos para o futuro.
Como a música entrou na sua vida?
Minha mãe é musicista, então, desde cedo vivi neste universo. O ballet clássico, que pratico até hoje, contribuiu também para minha formação musical. Ainda no Colégio Santo Inácio, de Fortaleza, no início dos anos 80, pude conviver com músicos que conheci na época, amigos meus até hoje, e todos estavam começando suas carreiras musicais. Hoje, são grandes músicos consagrados na cidade cearense, como Cristiano Pinho, Edmundo Vitoriano e Marcos Maia.
Estudei Ciências Biológicas na UFC (Universidade Federal do Ceará), mas não me distanciei da música, e participei de formações musicais amadoras, como a banda Nenúfar e a Confraria do Canalhas, me apresentando em espaços como o Centro de Convenções da UNIFOR e o Teatro José de Alencar.
Fiz ainda backing vocal para a cantora Mona Gadelha, no show de lançamento do seu primeiro compacto, o “Emoções Perigosas”, no Teatro da Emcetur, em 1986. Mona despontava como cantora de Blues no Ceará, e chegou a participar do disco “Massafeira”, junto com o cantor Ednardo. Esse LP virou referência da música cearense em todo o Brasil.
Ainda que estudando em outra área, todos os caminhos me levavam, necessariamente, ao encontro da música. Nesse processo, decidi, como quem encontra um tesouro aos 20 anos, estudar Alemão nas Casas de Cultura Alemã, que pertenciam ao departamento de Letras da UFC. Após um ano estudando a língua de Freud, mudei-me para o Rio de Janeiro, em 1988, para dedicar-me integralmente ao estudo e à profissão da música. Neste processo como estudante e com orçamento reduzido, percorri diversas escolas de ensino público formal no Rio de Janeiro, como o Conservatório Villa-Lobos. Fiz o curso de Teoria e Percepção Musical na UNIRIO, enquanto me preparava para fazer a prova de habilidade específica dos cursos superiores de música existentes na capital carioca. Até que, após ser aprovada, no início dos anos 90, ingressei na Universidade de Música da UFRJ e prossegui com os estudos até me formar em Música, com habilitação em Canto, em 1995.
E quando você descobriu o canto?
No Rio, conheci, em 1989, a Professora de Canto Maria Helena Bezzi, de origem Italiana, que morava em um casarão em Laranjeiras do final do século XIX. E não foi difícil entender que ela – uma senhora sozinha e sem herdeiros, cercada por seus alunos, rodeada de gatos pela casa e de objetos em antigas cristaleiras com chinoises bibelots, seu piano Pleyel, que a auxiliava nas aulas, e alguns funcionários de cozinha e de jardim que conviviam naquele mágico portal do tempo, o enorme casarão – perpetuava em si mesma uma rica tradição de ensino de Canto, seguindo a sua própria história e memória que se ligava à escola Italiana para o canto lírico.
Naquele tempo, eu ainda muito jovem e sozinha na cidade maravilhosa, achei seguro permanecer naquele convívio, não só devido ao imenso conhecimento da técnica vocal e do preparo da arte do canto lírico que ela trazia, como também na relação com uma senhora que, como minha avó materna, possuía esta educação e trazia uma grande influência do século XIX e começo do XX, um período marcante para a história da Arte.
Após formada, continuei aprimorando os estudos de canto e fui aluna da cantora e professora de canto Carol MacDavit (hoje professora na UNIRIO). Em 2001, concluí a Licenciatura em Música ainda na UFRJ.
Junto com seu marido, músico, você já elaborou projetos que revelam uma profunda pesquisa em música, como o “Canções sem Fronteiras”. Como nasceu esse projeto?
Sou casada com Luiz Eduardo Monteiro há 11 anos, o conheço há mais de 15 anos. Nos conhecemos por meio da música e este universo faz parte das nossas vidas, temos muitos gostos em comum, sobretudo porque, além de músico, ele é colecionador de vinis das décadas de 60 e 70 e, no meio deles, estava um exemplar raro, que ainda não tinha sido lançado: eu mesma. (risos)
Quando nos demos conta, já bailávamos no mesmo sulco e nasceu uma relação de amor e de música conjunta. Então, inúmeros projetos, vontades de trabalhar juntos com o canto e o violão foram surgindo.
Um deles foi um ciclo de canções com temas infanto-juvenis que criamos para nossos sobrinhos, Sarah, Gabriel e Léo. “Sarah Moça”, por exemplo, é uma composição em quatro movimentos, que compusemos juntos e fizemos uma gravação caseira para dar de presente de aniversário. Além das composições, escrevo poemas, e já os dediquei a outros sobrinhos, como o Paulinho e o João.
O “Canções Sem Fronteiras” é um projeto pessoal antigo que, aos poucos, foi sendo alimentado até estrear em 2010, e ele é tão atual em mim que continua a fazer parte do meu encontro artístico com o universo das canções. Quando me formei, em 1995, senti que acumulava então muitos dotes, técnica e conhecimento do universo do canto lírico, passando por todos os períodos da história da música. Participei de corais de música antiga, sacra e gregoriana, me apresentei com grupos de música antiga dos séculos XVII e XVIII, realizei recitais com peças de autores franceses como J. B. Lully, Gabriel Faurè, Claude Debussy.
Estudei autores impressionistas, muitos já conhecidos e apresentados por minha mãe, como Johannes Brahms. Em 1996, montei um Duo de Canto e violão e me apresentei no Festival de Inverno em Ouro Preto (MG), apresentando-me na Igreja de São Francisco de Assis com o repertório de Canções espanholas do século XIX e canções inglesas contemporâneas. Essa apresentação foi o embrião para realizar, mais tarde, o projeto “Canções Sem Fronteiras”, ampliando o repertório de canções que transitasse com muita liberdade entre os universos erudito e popular das canções.
Virgínia canta “Cancion”, de Manuel de Falla, no Show Canções Sem Fronteiras
Como a sua especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil impacta na pesquisa musical?
Estudar as principais correntes europeias sobre a história da arte ocidental neste curso me possibilitou uma expansão dos meus conhecimentos e dos sentidos da percepção humana. Além da minha formação musical, o conhecimento sobre o desenvolvimento nas artes plásticas e arquitetônicas, o sentido da percepção visual na evolução das formas plásticas no mundo das artes até o período contemporâneo me permitiu preencher alguns campos dos novos sentidos perceptivos no meu processo de sensibilização artística. Permitiu-me vivenciar e reunir algumas sensações e técnicas orientadas, como o embate com as obras de arte e o campo da escrita, produção textual, como tradução dessa rica experiência.
O curso de História da Arte e Arquitetura no Brasil oferecido pela PUC-Rio é de excelente nível, com professores altamente qualificados como Masao Kamita, Ronaldo Brito, Leila Danziger, Antônio Edmilson e Dalton Raphael e, sob a orientação deles, pude ampliar meu campo de visão, tanto para valorizar as artes e sua produção no Brasil como para o meu contínuo desenvolvimento artístico, sobretudo através das linguagens contemporâneas na busca e sincronização dos sentidos da percepção humana nos diversos experimentos que podem atuar na formação em arte visual, musical, sensorial.
Recentemente, você apresentou o show “Billie Melody”, com canções do repertório de Billie Holiday e do compositor carioca Luiz Melodia. Como teve a ideia de unir esses dois artistas, de épocas tão distintas?
O “Billie Melody” surgiu quando me dediquei a escutar o repertório inteiro da cantora de Jazz Billie Holiday, que sempre me chamou a atenção pelas suas inflexões sonoras vocais, pelos seus excepcionais improvisos melódicos. Certamente, um canto que trago comigo como referência no gênero musical do jazz e do Blues… Ela me ensinou a improvisar. Para cantar bem é preciso parar e saber ouvir bem. Este processo não ocorre facilmente e não é para a imitação de um canto, mas para buscá-lo em referência, perceber as sutilezas das escalas, as riquezas fluidas de seus variados “chórus” melódicos e as improvisações sobre as escalas – ricos temas em cima das ousadas harmonias do jazz dos anos 30. Billie Holiday tem uma melancolia, uma dor de saudade, a saudade que singra os oceanos toda vez que a ouço e me leva ao meu lugar de origem, a saudade da música da minha adolescência em Fortaleza.
Talvez seja uma ousada comparação levar a canção “Sentimental & Melancholy” ao sentimento do “Fado”, por assim dizer, aos portugueses. Porém, mesmo o fado ainda não seria assim tão melancólico para uma cantora como Amália Rodrigues quanto o eterno Blues é para Billie Holiday.
No meu trabalho, não queria uma apresentação que fosse cantada toda em inglês É uma delícia cantar em outros idiomas, principalmente quando estudamos e nos damos conta da aproximação das reais sensações de outras culturas dentro dessa habilidade, mas o inglês não é minha língua-mãe e, sendo o show feito no Brasil e ainda no Rio de Janeiro, tudo isso me levou a pensar em inserir no repertório um autor que combinasse com a “melancolia” da Billie Holliday.
Eu já havia pensado nele, mas vendo uma entrevista na qual ele disse ter “uma melancolia mais positiva” pelo próprio “negro gato” do Estácio, não pôde haver outro autor que não fosse o compositor carioca Luiz Melodia para que em mim pudesse compor a dupla de autores que traduziram o show “Billie Melody”.
A improvisação melódica e musicalidade do Lord do Estácio o aproximam de maneira sensível e somam à beleza das canções da grande “Lady Sings The Blues”! No ano de 2015, foi celebrado o centenário de nascimento da Billie Holiday, e foi uma coincidência feliz, pois o show ficou pronto e foi apresentado duas vezes no Godofredo Rio Bar, no Humaitá, tornando-se uma homenagem, a guardar o lírico “God Bless The Child” em mim para sempre.
Fale sobre o “Ateliê da Voz”, essa metodologia de ensino de canto que você criou…
O Ateliê da Voz foi sendo desenvolvido ao longo de minhas atividades como professora de canto por mais de 18 anos. O método trabalha a voz como um tecido sonoro vocal, daí a associação com o Ateliê, que precisa da matéria-prima para compor, tecer a obra. O local onde a manta sonora da voz se apresenta para ser tecida e que, além de trabalhar os fundamentos técnicos do ensino do canto, precisa de seus elementos básicos como corpo, postura, respiração, emissão vocal. Procura trazer à consciência os elementos da percepção da arte de cantar, as nuances vocais, o timbre, o colorido dos sons, os elementos textuais, como dicção e articulação das palavras, porque o cantor lida muito com as palavras, cuja clareza é importantíssima para a correta emissão e alcance das notas melódicas, extraindo seus sons harmônicos precisos e naturais.
Cantar, para mim, é um direito do ser humano. Se há o desejo deste aprendizado, não há nada que impeça a imersão no processo de desenvolvimento técnico vocal para melhorar a fala, a dicção e o canto no ser humano.
Todo ser humano tem o direito de conhecer seu registro e educar sua voz, melhorar sua respiração, cuidando, assim, de sua autoestima e levando esse aprendizado consigo como forma auxiliar de seu processo de desenvolvimento artístico e humano e educação geral.
Você nasceu em Pernambuco, mas viveu grande parte da sua vida no Ceará. E podemos perceber que essas raízes nordestinas são muito presentes no seu trabalho…
Vou todo ano a Fortaleza, tenho família e grandes amizades, verdadeiros “Tesouros da Juventude”, como já cantava Beto Guedes. Inclusive, a influência do “Clube da Esquina” faz parte da minha formação popular musical brasileira, assim como Vinícius de Moraes, Tom Jobim e todo o cancioneiro Cearense, a poesia de Belchior, Fagner, Calé Alencar, Ednardo, Fausto Nilo. Todos esses autores e músicos me são muito próximos e os tenho como herança musical, por amizade pessoal e por memória dos tempos que lá vivi. Minha mãe me apresentou às valsas vienenses de Strauss, assim como me mostrou as Guarânias Paraguaias, tocadas ao violão como uma referência do cancioneiro latino-americano e do centro-oeste brasileiro, e ouvíamos muito o lindo canto de Gal Costa.
Já com meus amigos músicos cearenses, como o grande guitarrista Cristiano Pinho, o baixista Edmundo Vitoriano e o violonista Marcos Maia, ouvimos muito Led Zepelin, o rock progressivo de John Anderson do YES, Pink Floyd, The Beatles, os Stones e Janis Joplin. Foi exatamente essa qualidade musical, essa gama de influências que me fez reunir a minha diversa formação musical.
Morando no Rio há mais de 20 anos, você, no entanto, nunca se afastou dessa parte nordestina da sua vida. Como consegue?
Jamais poderia me afastar, são minhas raízes, por elas também parei aqui. Não posso perder o saber apreciar a música que ensinou a ouvir, a saborear os pratos típicos, a mais deliciosa peixada com pirão, o camarão, o baião de dois, a tapioca com café no fim de tarde. Tudo isso faz parte da minha criação, minha memória, além das histórias de Trancoso que minha avó contava e que, recentemente, associei ao Maracatu do Ceará, pela questão de sua memória oral.
A maneira como as histórias infantis são contadas e recontadas pelos seus contadores, cada um a seu tempo e isso se mistura à própria história da formação do povo brasileiro e sua cultura. Minha mãe e avó materna têm olhos muito azuis, daqueles tipos holandeses, apontando essa ascendência em minha família, além da indígena. Sou brasileira, sou mistura boa. Do Rio eu bebi do samba, daquilo que pude conhecer enquanto fui chegando. Quando morei em Santa Teresa, vi nascer o restaurante “Sobrenatural”, lá pude prestigiar a presença do conhecido parceiro de Cartola, Carlos Cachaça, e onde também se apresentavam a cantora Beth Carvalho, Galote, mestre Zé Keti, entre outros bambas do samba carioca. Enfim, não podia deixar de conhecer esse cenário que a cidade berço do samba e símbolo do Brasil me apresentava.
Virginia interpreta outra canção: “Cidadela, composta por seu irmão, Antonio de Pádua Pires
Quais são seus planos para este ano?
Por enquanto, penso em remontar o “Canções Sem Fronteiras”, um trabalho que aprecio e de alta qualidade musical, tanto em seu conceito e idealização quanto em sua exibição, apresentado por músicos com excelente preparo musical e que ajudam a traduzir este espetáculo musical que transita com muita liberdade entre o erudito e o popular.
Posso incluir agora as Canções da Billie Holiday, por exemplo, e ainda outras de novas culturas que conheci ao vivo, como algumas músicas do Leste Europeu, incluindo clássicos como o próprio Lied Alemão. Tem ainda o Loas do Maracatu do Ceará, em uma referência africana à música brasileira, perfazendo um universo musical sem fronteiras para pesquisa e descobertas.
Penso também em retomar os estudos com um possível mestrado em Música, meu interesse segue o desenvolvimento artístico. Pretendo continuar ministrando aulas de canto que despertam para o desenvolvimento vocal na música como uma via de encontro de muitas possibilidades e descobertas sobre si mesmo, sobre a sensibilização do ser humano no processo artístico, sobre a música universal que traduza a comunicação, o amor e a paz.
Contato de Virgínia Capibaribe: ateliedavoz@outlook.com
Vídeo: CUIABÁ – Tetê Espindola
https://www.youtube.com/watch?v=9tXPH-xNAEo