A língua portuguesa como elo de indentidade

8 - Tania Pires 2 Foto Horus

“As mulheres de Ibsen, ao contrário do que muitos pensam, não são heroínas (…) São humanas e verdadeiras, por isso são tão especiais.”  

 

Tania Pires é um ser inquieto. Atriz, produtora e divulgadora da cultura da língua portuguesa, ela atribui à família de artistas sua paixão pelo ofício.

Apesar de já tem um trabalho reconhecido com a obra do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, Tania está sempre em busca de novos desafios. Como o Festival Internacional de Teatro da Língua Portuguesa, criado por ela em 2008, e que vem ganhando maior destaque e importância a cada nova edição.

 

 

Como as artes cênicas entraram na sua vida?
Nasci em uma família que respirava arte. Minha mãe, ainda nova, se dedicou a novelas de rádio mas, como grande parte da sua geração, teve que deixar para trás uma profissão que a colocava à margem. Quando se casou, se dedicou ao lar e à criação dos filhos. Meu pai, carnavalesco nato e empresário, talvez para compensar suas paixões antagônicas, não media esforços pra incentivar os talentos e aptidões artísticas de suas filhas. Nesse universo, vi minha irmã mais velha desabrochar para o teatro. Dona de um talento único, acompanhei sua coragem de sair do Brasil para se especializar em artes cênicas nos EUA. Por ironia da vida, ela se afastou dos palcos. Restou a mim deixar aflorar meu talento como atriz. Aos 9 anos eu já frequentava o meio artístico e já era “ré confessa” do teatro.

Ao sair da escola, iniciei minha formação em artes cênicas na CAL – Casa de Artes de Laranjeiras, e fiz Faculdade de Comunicação. Durante o curso, tive oportunidade de ser trainee na área de marketing no mercado financeiro, profissão que eu buscava freneticamente conciliar com o trabalho de atriz em algumas companhias brasileiras de teatro. Universos opostos, mas que me formaram como gestora e como atriz.

 

Pois é, desde cedo, você também desenvolveu seu talento para a produção teatral. Por que se voltou para essa área?

Na cultura, para um artista desenvolver seu trabalho com autonomia, o domínio em produção é imprescindível. Desde estudante eu sinalizei minha aptidão para produção. Sempre me envolvia em grêmios, associações estudantis, UNE e UBES da vida, realizei diversos eventos culturais e esportivos. Produzi festivais de música, maratonas esportivas, feira de livros e  espetáculos teatrais que fizeram parte da minha infância e juventude.

A partir de um determinado momento, meu lado criativo e artístico me exigiu produzir meus próprios sonhos e projetos. Só assim eu poderia voar mais alto. Em 2002, abri minha produtora e me formei em Ciências Sociais em Política e Gestão Cultural. Desde então, essas duas profissões caminham juntas na minha vida.

DVD Vanessa da Mata - Foto: Leo Aversa

A Dama do Mar (fotos: Leo Aversa)

8 - Dama do Mar. Fotp Leo Aversa

 

Como convivem a  atriz e a produtora na sua rotina de trabalho?
Isso realmente é um ofício árduo. Principalmente para uma pessoa com meu grau de exigência. Desempenhar a profissão de atriz exige estudo contínuo, mergulho emocional, entrega física e muita preparação. Nunca cessa.

Quando entro em um processo de ensaio, preciso desconectar o botão do racional e deixar a intuição me lançar. Em resumo, preciso dar sempre uma pausa na produção. Acredito que hoje, devido à experiência, eu consiga harmonizar essas duas atribuições de forma organizada. Normalmente, vem o processo de criação de novos projetos artísticos, me dedico a torná-los viáveis, os coloco em ação e formo uma boa equipe para me respaldar. A confiança e a ausência de centralização são essenciais nesse processo. Até hoje essa receita deu certo, além de me propiciar deixar um legado de novos e bons gestores culturais para o nosso mercado.

 

Você também vem se destacando pelo trabalho com a obra de Henrik Ibsen. Pode falar um pouco sobre isso?

Com 17 anos, tive meu primeiro contato com esse universo da dramaturgia de Ibsen. Montei o conhecido texto “Casa de Bonecas”. Imagina o que é a personagem de “Nora” invadir uma menina nessa idade! Foi avassalador, um divisor de águas no meu autoconhecimento. Comecei a estudar toda sua obra pelas mãos do diretor e professor Renato Icarahy, um grande pesquisador da obra de Ibsen.

Assim que abri minha produtora, o primeiro espetáculo que montei e atuei foi o texto, inédito no Brasil, de Henrik Ibsen, “O Pequeno Eyolf”, em 2004. Com direção de Paulo de Moraes. Foi uma parceria que deu certo. O Paulo é um dos maiores encenadores brasileiros, tem um talento ímpar para a estética cênica e uma pegada audaciosa e contemporânea. Tudo que eu queria para quebrar um pouco o realismo da obra de Ibsen. Como o texto já era da sua fase simbolista, o Paulo nadou de braçada, o que nos levou, em 2006, a representar o Brasil no Ibsen Festival em Oslo, Noruega. Ficamos praticamente dois anos em cartaz viajando pelo Brasil com a peça.

Depois, em 2014, montei o texto de que mais gosto, “A Dama do Mar”, repetindo o convite ao Paulo de Moraes. A montagem nos valeu prêmios no Brasil e fomos convidados para participar do Festival de Teatro de Almada, Portugal, em 2015.

Ibsen Venusianas (foto: Leo Aversa)

Ibsen Venusianas (foto: Leo Aversa)

E seu mais recente trabalho, “Ibsen Venusianas”, como nasceu?

Eu queria de alguma forma materializar a minha experiência teatral de ministrar oficinas nos 8 países de língua portuguesa com dramaturgia de Ibsen. Pensei até em escrever um livro, o que ainda não descartei, mas é claro que isso se concretizou em um projeto teatral que, por reconhecimento, foi premiado pela Noruega para ser montado. Só pensei no Moacyr Góes como diretor, outro grande nome brasileiro com quem tive a oportunidade de trabalhar em 2003 e com quem muito aprendi sobre teatro.

Juntos, durante um ano, realizamos o projeto do espetáculo “Ibsen Venusianas”, que estreou no Rio de Janeiro no final de 2015. Ele teve a sensibilidade de perceber as experiências mais simples e expressivas dessa proposta de juntar as mulheres de Ibsen, as mulheres africanas e um pouco da mulher que sou. O resultado foi lindo! Ainda planejo viajar em 2016 com este espetáculo.

Ah, e não posso esquecer do festival que realizei no centenário de Ibsen em 2006 no Brasil. Foi um festival com peças, leituras, recitais e exposição no Rio de Janeiro e São Paulo.  Acredito que seja a obra de Ibsen que esteja destacando meu trabalho e não meu trabalho destacando a obra de Ibsen… (risos)

 

Por que as mulheres de Ibsen são tão especiais?

As mulheres de Ibsen, ao contrário do que muitos pensam, não são heroínas. Ibsen foi um homem que cresceu com forte influência do universo feminino no século XIX. Um homem à frente de sua geração. O que o tornou um filósofo brilhante nas questões femininas. Ele humanizou as qualidades, fraquezas e dificuldades mais delicadas que uma mulher poderia enfrentar em uma sociedade patriarcal e conservadora da sua época.

Entre suas mulheres, temos referências de mulheres que abriram mão de suas famílias em nome da liberdade, que dominavam seus homens pelo controle financeiro, que escravizavam seus homens pelo poder da sedução, mulheres incestuosas, mulheres dominadas psiquicamente por seus maridos, mulheres que se articulavam politicamente através de seus maridos, mulheres submissas e traídas, mulheres que rejeitaram seus filhos, mulheres que viveram uma vida inteira inspiradas e presas  a uma única paixão. Enfim… A vida como ela é…

As mulheres de Ibsen são humanas e verdadeiras, por isso são tão especiais.

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Espetáculo Filhos da Pátria, de Angola – FESTLIP 2015 (foto: Eduardo Magalhães)

 

E como surgiu a ideia do Festival Internacional de Teatro da Língua Portuguesa, o FESTLIP?

Aí está a magia da arte que é uma infinita conexão. Quando fui para o Ibsen Festival na Noruega, em 2006, tive a oportunidade de assistir diversas montagens internacionais de textos de Ibsen sem legenda em diversas línguas. Refleti sobre a questão da necessidade real ou não do entendimento da língua em um espetáculo. Claro que isso é importante, mas assistir a esses espetáculos livre do conceito linguístico é uma experiência sensitiva, transmitida através dos gestos, entonações e movimentos do trabalho do ator. Aprendi muito com isso.

Em seguida, no mesmo festival, tive contato com uma encenadora moçambicana que, no ano seguinte, me convidou para ir a Moçambique dar um seminário sobre Ibsen e  assistir uma montagem da Companhia teatral dela.

Claro… A língua portuguesa se estabeleceu magistralmente para mim no teatro moçambicano. Agora, a experiência passava por culturas absolutamente distintas, pois era a interpretação de um texto nórdico na língua portuguesa e na África.

Meu Deus, a língua portuguesa é um elo com uma força inexplicável! A partir daquele dia, minha mente e meu coração não pararam mais. Mergulhei em pesquisas sobre o teatro dos países que falam português. Viajei os oito países em quatro continentes, dando formação teatral com toda a dramaturgia de Ibsen. Após dois anos, nasceu o FESTLIP. Uma ideia resultante da criação artística e que tomou diversos caminhos.

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Peça Barbazul, da Galícia – FESTLIP2015 (foto: Francisco Costa)

 

A cada ano, o festival vem crescendo. Que resultados as sete edições do evento  trouxeram até agora para a cultura e para a nossa língua?

Quando o festival começou, em 2008, eu sabia que não seria fácil trazer para o Brasil linguagens artísticas tão distintas, em tempos diferentes e de origens diversas. O teatro brasileiro nasceu da influência do teatro ocidental trazido por Portugal e, depois da independência, e logo sofreu sofreu a influência da colaboração de encenadores europeus que vieram para o Brasil, como o polonês Ziembinski, e também de diversos artistas brasileiros que começaram a ir estudar na Inglaterra e na França e retornavam ao Brasil trazendo essas tendências do teatro ocidental. Como eu já conhecia a linguagem tão distinta do teatro da língua portuguesa: – pela experiência com o teatro africano, oriental e o ocidental -, já me dava conta do desafio.

Os três primeiros anos foram primordiais para trazer essa compreensão para o público brasileiro, pois o festival não deve ser visto com um olhar crítico ou competitivo, e sim sob uma forma artística de conhecermos, através da nossa língua e da nossa história, os variados costumes, origens e influências.

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Peça Adão e Eva, de Cabo Verde – FESTLIP 2015 (foto: Eduardo Magalhães)

 

Então, mais do que uma troca experiências e de culturas, o Festival é uma oportunidade de resgate histórico?

Sim, o festival resgataria a nossa história mais profunda, onde a realidade mostra que o nosso teatro também vai além do teatro ocidental, pois o teatro africano e o teatro oriental estão presentes na nossa formação cultural.

É de fato o resgate das nossas origens. Após o quarto ano, começamos a jogar como eu queria, o público percebeu que o tempo, a expressão, a linguagem e a performance desses países são absolutamente distintas. Todos temos em comum a influência portuguesa como colonizadora, mas temos tempos diferentes.

Estamos falando do Brasil que se tornou independente 1822, de Guiné-Bissau que se tornou independente em 1974, Timor Leste, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde, que conquistaram a independência em 1975, com influências culturais da Ásia, África, América do Sul e Europa. Dá para ter noção? Mundos diferentes conectados pela língua portuguesa, que precisam de um movimento artístico dessa natureza como o FESTLIP para cuidar, preservar e desenvolver a língua como um elo de identidade, reconhecimento, desenvolvimento, beleza e troca. E de uma tal maneira que não permita que a nossa língua se estabeleça como um instrumento de dominação. Essa é a missão da arte, do FESTLIP, dos artistas desses 8 países.

Espetáculo A Mesa, de Angola (foto: Rogério Resende)

Espetáculo A Mesa, de Angola – FESTLIP 2015 (foto: Rogério Resende)

Dentro desse contexto, torna-se indispensável anualmente o festival homenagear personalidades da cultura e da arte que estão absolutamente comprometidos com essa atuação. O Brasil como o maior país de falantes da língua, carrega uma grande responsabilidade em promover esse encontro e seus desdobramentos, que chamamos no festival de “ação e reação”.

O festival congrega pensadores, artistas de diversos segmentos como literatura, teatro, música, artes plásticas, culinária e moda. Promove o intercâmbio e a formação profissional entre esses países, e constrói uma teia de criação conjunta. Sim, acredito que estamos criando uma linguagem própria e peculiar do teatro e das artes da língua portuguesa mas, para isso, temos que nos conhecer profundamente, sem ornamentos ou parafernálias, e isso requer muito conhecimento, estudo e pesquisa. Hoje, o festival é um movimento reconhecido internacionalmente.  Espero que esse seja o legado do FESTLIP.

 

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Peça Misterman, de Portugal – FESTLIP 2015 (foto: Eduardo Magalhães)

E que surpresas o FESTLIP de 2016 deve trazer?

Esse ano, devido ao momento econômico e político brasileiro, estamos vivendo uma urgência de criatividade, conteúdo e eficiência. Sabemos que nessas horas nascem as grandes ideias e grandes transformações.

Vou dar em primeira mão a grande novidade desse ano… O FESTLIP será temático e todas as atividades do festival terão como tema a dramaturgia brasileira de Nelson Rodrigues.

Ninguém é mais “língua portuguesa” do que Nelson. Sua forma de escrever e seu cenário estão presentes social e politicamente de forma unânime nos 8 países. Imagina os caminhos que teremos para criar espetáculos de cada país com textos diferente de Nelson, mostra gourmet, show, seminários e oficinas bebendo em sua dramaturgia e em seus costumes!

Isso é levar o Brasil aos quatro continentes, é comungar com respeito a cultura brasileira com esses países irmãos e, assim, cada vez mais, vamos nos reconhecendo. E nos reencontrando.

 

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Espetáculo As Bondosas, de Angola – FESTLIP 2015 (foto : Renan Lima)

 

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Author

Jornalista, roteirista, mãe, poeta, editora, escrivinhadora, atriz. Mulher. Sou filha da PUC-Rio, formada em Comunicação Social com habilitação em jornalismo. Trabalhei em revistas sobre meio ambiente e educação. Fui parar na TV na produção do Globo Ecologia e logo estava participando da criação do Canal Futura, onde fiquei por mais de 7 anos. Trabalho na MultiRio, uma produtora de multimeios educativos da prefeitura do Rio de Janeiro, há 10 anos, atuando como roteirista e editora. Colaborei para os sites Opinião e Notícia e para o ArteCult escrevendo sobre Educação, Cultura, Cidadania, Meio Ambiente e fazendo várias entrevistas. Escrevi também para a Revista do Senac Educação Ambiental por cinco anos. Me formei em teatro pelas mãos de Bia Lessa. Fui dirigida por Alberto Renault e Roberto Bontempo. Conheci muita gente talentosa. Aprendi com muita gente boa. Fiz cursos livres de canto, de dança flamenca, de locução de rádio e de roteiro para TV e cinema. Sou uma leitora contumaz. E ótima ouvinte. Gosto de observar a vida e de dar pitaco em alguns assuntos os mais variados. Mãe de dois adolescentes, continuo aprendendo sobre a vida todos os dias. O humano me encanta. E me aterroriza também!