Talento “tipo exportação”: Como o racismo e a falta de oportunidades empurraram bailarinas negras brasileiras para o exterior

 

* Por Velaine Poço

 

O Brasil, país que se orgulha de sua diversidade e que abriga a maior população negra fora da África, carrega um paradoxo cruel em seus palcos mais nobres: a ausência de corpos negros no ballet clássico. Enquanto o samba e a cultura popular celebram a negritude, as sapatilhas de ponta e os tutus dos grandes teatros historicamente rejeitaram essa mesma pele. Para muitos bailarinos negros, especialmente as mulheres, o único caminho para a profissionalização e o reconhecimento não foi a persistência em solo nacional, mas o aeroporto.

A trajetória dessas artistas revela um padrão de “exportação de talentos” forçada não apenas pela busca de melhores salários, mas pela necessidade básica de serem vistas como bailarinas — e não como corpos estranhos em um corpo de baile uniforme.

 

A bailarina e as “duas meias-calças”

Um dos casos é o de Simone Guedes. Formada em Brasília, ela integrou o corpo de baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (TMRJ) na segunda metade da década de 1980. Apesar de ser uma profissional contratada, Simone enfrentava uma barreira invisível, mas sólida: o racismo institucional que a impedia de ser escalada para os elencos principais.

Simone conta que, muitas vezes, só ensaiava os grandes repertórios como substituta. Quando finalmente conseguia uma oportunidade de pisar no palco junto ao corpo de baile, a exigência estética da companhia tentava “apagar” sua identidade: ela era instruída a usar duas meias-calças cor-de-rosa sobrepostas, em uma tentativa de clarear suas pernas para que não “destoassem” das demais bailarinas brancas.

Foi o cansaço dessa invisibilidade que a levou a desabafar sobre o problema com a direção e, eventualmente, a aceitar um convite de Arthur Mitchell para integrar o Dance Theatre of Harlem (DTH), em Nova York. Nos Estados Unidos, Simone dançou por 11 anos, construindo uma carreira que o Brasil lhe privava, antes de retornar ao país como fisioterapeuta.

 

Nova York como refúgio

O Dance Theatre of Harlem tornou-se, de fato, um porto seguro para talentos brasileiros. Além de Simone, a companhia acolheu Bethânia Gomes, filha da ativista Beatriz Nascimento, que se tornou a primeira bailarina negra brasileira a alcançar o posto mais alto em uma companhia internacional de grande porte: o de Primeira Bailarina. E foi em uma de suas vindas ao Brasil que Bethânia conheceu a carioca Ingrid Silva e a incentivou a trilhar esse mesmo caminho.

Oriunda do projeto social “Dançando para não Dançar”, na Mangueira, Ingrid encontrou nos Estados Unidos o espaço que seu país de origem lhe restringia. Aos 17 anos, a aluna da Escola de Dança Maria Olenewa fez estágio no Grupo Corpo e na Cia Deborah Colker, mas a carreira no ballet clássico ainda parecia ser um sonho distante.

Por estímulo de seus professores e de Bethânia Gomes, já vislumbrando a falta de oportunidade consistente em companhias nacionais, fez audição para o DTH e de lá não saiu mais. Hoje, aos 37 anos, além de ser Primeira Bailarina da companhia, também se tornou um poderoso nome brasileiro mundo afora. Ingrid é uma estrela global e ativista, famosa por pintar suas sapatilhas no tom de sua pele muito antes de as grandes marcas passarem a fabricá-las. Sua narrativa virou uma autobiografia, e suas pontas, uma peça do National Museum of African American History and Culture, em Washington, D.C..

 

Partners em busca de dignidade

O êxodo não se restringe às moças e aos Estados Unidos. A Alemanha tem sido outro destino frequente, especialmente para talentos revelados em escolas, projetos sociais e em grandes companhias brasileiras. Bailarinos como Cássio Luiz de Oliveira e William Pedro deixaram o Brasil para brilhar em companhias de prestígio europeias, como o Béjart Ballet Lausanne, na Suíça. Cássio trocou a segurança do serviço público no TMRJ por uma carreira bem-sucedida no estrangeiro; o jovem William Pedro, com todo
o êxito nos grandes festivais, também seguiu para a Béjart. Ambos residem até hoje no velho continente.

Outro caso de triunfo foi Bruno Rocha, que aos 16 anos ingressou no TMRJ e, em dois anos, alçou o papel principal do ballet “Giselle”, sendo par de nada mais, nada menos, que Ana Botafogo. O “príncipe negro”, como foi intitulado pela matéria do jornal O Globo, em 2003, foi o primeiro bailarino retinto a ter o posto de protagonista na casa. Passados alguns anos, Bruno também preferiu as condições de trabalho
europeias.

 

O mito da democracia racial nos palcos

A história desses bailarinos expõe a fragilidade do mito da democracia racial brasileira. Instituições como o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, financiadas com dinheiro público, perpetuaram por décadas normas excludentes que forçaram seus maiores talentos negros a buscar aplausos em outras línguas.

O racismo estrutural operou não apenas para segregar, mas para exportar talentos, provando que o obstáculo nunca foi a aptidão técnica, mas a cor da pele. A diferença entre as oportunidades dadas aos gêneros é que, para as mulheres, a barreira estética do ‘cisne branco’ sempre foi mais intransponível; enquanto a necessidade e a exigência de haver partners masculinos para dançar com as meninas, de certa forma, auxiliava os rapazes a serem mais bem recebidos em papéis de destaque nos palcos.

Atualmente, com o movimento da consciência negra e sua luta por igualdade de condições, o TMRJ, como a mais antiga companhia clássica do Brasil, tem revisitado suas coxias e seus critérios de seleção com um olhar antirracista. Esta inclusão, que perpetua a capacidade técnica e artística como requisitos primordiais, é uma reparação histórica que busca a justiça social, para que possamos ver nossas ‘Auroras’, ‘Giselles’ e ‘Odettes’ negras brilharem aqui — e não apenas nos palcos estrangeiros.

*Velaine Poço é jornalista, professora, bailarina e especialista em ensino da dança clássica pelo Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

 

 

JU PRESTES

@ju_prestes /  @moveinartexpress

 

 

 

 

 

 

 

 

Author

Jornalista, bailarina clássica e dançarina de salão. Apaixonada por cultura em geral, especialmente dança e musicais.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *