
Coluna de Márcio Calixto

Arte digital: Chris Herrmann
Tenho uma aluna no município que constantemente me chama de desumilde. Ela não é a única a usar o vocábulo, mas é a que me direciona tal termo. Como professor de Língua Portuguesa que sou, óbvio que fui ao dicionário, queria saber se o vocábulo realmente existia. Pois bem, ele existe.
Larissa é seu nome. Ela tem o costume de dormir nas aulas. Quando a acordo, ela solta a sua rabugice e me declama o termo: “professor, o senhor é muito desumilde”. Lembrei de um amigo de tempos, Arnaldo, também professor de Língua Portuguesa, que me levou a uma reflexão após eu expor não me ver como uma pessoa humilde:
“Calixto, você é uma pessoa humilde sim, você não é tomado pelo seu ego.”
À época eu era um jovem professor. No entanto, não era mesmo um camarada que se propunha a um exercício de superioridade.
Concordei, mas não dialoguei sobre o fato. Quando conheci Arnaldo, ele era um homem muito religioso, pastor mesmo. Eu caminhava em meu ateísmo. Foi com a leitura que meu ateísmo veio a se sedimentar. Hoje, tão lautamente conhecido de meus alunos mais religiosos – apesar de não saberem de meu retorno lento e gradual à fé – eles me combatem. Se contrapõem mesmo.
Torno-me o desumilde por não ser como eles. Por expor conhecimento, não gostar de futebol, por ser ateísta (?), por querer transformá-los em pensadores, em leitores, em não atender a demandas deles, sou o desumilde. Retruco, chamo Larissa também de desumilde, algo que ela recebe com risada e alguma reprovação. Ser desumilde é algo negativo.
Qual seria, no final das contas, o verdadeiro sinônimo de desumilde? Apenas colocar o prefixo é um exercício gostoso de negação de humildade, resgato a obra de Suassuna e seu famoso gato que descome dinheiro, no Auto da Compadecida. O que seria descomer se não expor aquilo que come? O prefixo, ao mesmo tempo que eufemiza a ação tão fundamental e grotesca, ainda fornece um valioso tom de humor que dá gracejo à obra. O que pensar de desumilde? O Dicionário Priberam coloca o termo “brilhante” como antônimo de humilde. Será que posso preencher meu ego com brilhantismo? Longe. Longe.
No entanto, desumilde tem uma sonoridade gostosa. Parece uma evolução social do humilde, aquele que pratica a humildade, parelho à humilhação. Para muito humilde tem a ver com pobreza, com pouco acesso a recursos financeiros. Como professor concursado, a humildade me é um mister profissional, sua decadência moral transforma a profissão em um exercício constante de humildade – e também humilhação. Nesse ponto, discordo de Larissa. É impossível ser desumilde.
Porém, minha profissão é base a todas as outras que tanto logram de status social. Sou professor há pouco mais de 25 anos. Dou aula em escolas particulares desde o início de minha carreira. Com o tempo, migrei para as públicas, no fundamental e no médio. Passaram por mim médicos, militares, atores, profissionais que hoje atuam com profunda ética, tornaram-se ótimos seres humanos, exemplares. Por eles, realmente, sou muito desumilde. De poucos tive retorno. A vida os distanciou de mim. Sei de alguns pelas Redes Sociais. Olhá-los em seu sucesso é olhar para uma janela aberta para futuros. Faço questão de estar sentado, olhando para elas, vendo-os seguindo em suas vidas. É muito motivo para ser desumilde.
Penso no prefixo De-. O humilde que não é mais humilde, mas que mantém o radical tem um quê de perceber sua origem e dele não negociar. Há beleza no vocábulo no final das contas. Penso em aceitar com carinho quando Larissa me declarar como desumilde em uma próxima aula. Serei o humilde com orgulho. Pode esperar.
MÁRCIO CALIXTO
Professor e Escritor

Márcio Calixto | Foto: Divulgação


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