Cadeirada de frases de efeito
— Por absoluta preguiça de quem viveu muito, Josias foi dar um murro de desabafo e interrupção e não sentiu nenhuma culpa por ter matado Soares, o chato, após este ter dito mais uma frase de efeito infernal. Remorso, talvez, mas não culpa. Passar dos 50 anos o deu o não poder de aniquilar falsas palavras e a vida, essa ordinária, surpreende cada vez menos.
— Em terceira pessoa?
— Crimes são mais fáceis se confessados assim.
— Mas você é Josias. Consegue verbalizar isso?
— Ou sou Soares, não é? Já morto por impaciência.
— Você está soltando metáforas ou realmente cometeu um crime?
— Pode também ser um trecho de livro pedante.
— Por que você gosta de jogos de palavras ao invés de ser honesto com quem tenta te escutar?
— Vai ver que é porque ir reto, sei lá, por que ir reto se posso fazer umas curvas boas?
— Tudo bem. Me fale mais das curvas, da impaciência, das frases de efeito infernais e do Soares.
— Você é advogada ou psicóloga?
— Fica a seu critério. A história muda se eu for uma ou outra?
— Não. Só o tom de voz muda mesmo. Mas vamos lá. Tudo começou na plataforma B da estação Maracanã, conhece?
— Corta!
A diretora espalmou a mão direita pro alto. Pediu que o diretor de fotografia, o operador de som e mais duas pessoas saíssem do estúdio. A conversa era com os dois atores.
— Esse filme tá ficando uma merda.
Catarina de Vargas e Leonel Brito, atores de carreira sólida no teatro, ouviam como se fosse mais um desaforo gratuito de uma diretora tóxica. Mas não era.
— Não é culpa de vocês. O roteiro é que está uma merda. Eu também, tô dirigindo que nem uma merda. Não dá pra deixar desse jeito, assim – mexeu os braços e o tronco em pêndulo – meio água com açúcar sem ter doçura. Sabe o resultado disso? Filme de fundo de gaveta.
Leonel procurava salvação nos olhares de Catarina, em vão. Olha a loucura disso, ele pensava.
— Mas nem existe mais gaveta pra filme. É tudo na internet. Pior que fundo de gaveta ou última prateleira é esse troço de sumir no imaginário. Quem vai acreditar num personagem que matou alguém por acidente por achar alguém chato sendo que esse personagem é irritantemente chato? Olha o jeito dele falar. E era pra ser uma cena de investigação. A personagem feminina tá flertando com o cara chato. Sabe o que é inverossímil? Ninguém flerta com gente chata. Eu tô irritada, preciso de um respiro.
— Desculpa, Flora. Não sei nem o que dizer, comentou Catarina com concordância silenciosa de Leonel.
Enquanto a diretora respirava com olhar no chão, ninguém da equipe retornou ao local. Leonel comentou baixo pra que ela tivesse calma e que tudo na vida tem solução, só não tem solução pra morte, e riu constrangido. Flora vestiu vermelho na pele, queimou as mãos levantando em milésimos de segundo a cadeira de madeira acertando o ator na nuca, inesperada, tempestuosa, seguida de um sorriso sereno e um abraço apertado em Catarina, subitamente cúmplice da insanidade. Ao ouvido, Flora respirou palavras de conforto.
— Frases de efeito são um inferno. Voltamos em 15 minutos.