Como iludir com meias verdades

 

O poder dos interesses pessoais é amplamente exagerado em comparação à invasão gradual das ideias.
 John Maynard Keynes (1883-1946), economista britânico

 

Como iludir com meias verdades

 

A frase em epígrafe é muito significativa quanto à forma de pensar de uns e outros, quanto aos argumentos esgrimidos, muitas vezes, tenham a ideologia que tiverem. Na sexta feira, dia 03 de janeiro, na página A3, do jornal Folha de S. Paulo, pude ler um exemplo concreto do que acabei de escrever. Todos têm direito às suas opiniões, mas não aos seus próprios fatos, ainda que estes últimos possam vir a se, não raro, interpretações subjetivas ou de grupos sociais específicos.

Uma coisa é expormos números e discuti-los à luz de nossa ideologia; outra é usarmos alguns números e não outros, para suportar nossa ideologia e/ou nossos argumentos. Claro que não dá para, sempre, usarmos todos os números, entretanto, ao menos mostrar ciência de que há outras percepções e interpretações de realidade é desejável.

O artigo a que há pouco me referi, intitulado “Lula não tem sucessor para 2026”, foi escrito por Izabela Patriota, Doutora em Direito Constitucional pela USP; diretora de relações internacionais do Lola Brasil (movimento de mulheres liberais) e colaboradora no Young Voices (organização de corais de vozes infantis no Reino Unido). Analisemos três de suas passagens.

Primeira passagem. “Lula enfrenta o desafio de preparar um sucessor. Ambas escolhas anteriores foram desastrosas: Dilma Rousseff levou o Brasil a uma crise econômica histórica que culminou em seu impeachment, enquanto Fernando Haddad, que o substituiu em 2018, fracassou em conquistar o eleitorado. Hoje, como ministro da Fazenda, Haddad carrega parte da responsabilidade pelo fiasco econômico do governo”.

O desastre do governo Dilma e da candidatura Haddad são, por alguns aspectos, menos uma análise objetiva e mais uma percepção subjetiva. Para não cansar o(a) leitor(a), Dilma foi reconhecidamente sabotada pelo Congresso Nacional, com as ditas “pautas bombas” e mesmo que seu governo não tivesse sido maravilhoso, caso houvesse chegado ao termo institucional, talvez não fosse o interpretativo desastre aventado pela liberal Patriota. Adicionalmente, vale ressaltar que muitos que apoiaram o impedimento da primeira mulher eleita no Brasil, já de algum tempo, admitiram que o motivo de seu apeamento da presidência, as tais “pedaladas”, simplesmente não houve ou não seriam fruto para a destituição.

Já Fernando Haddad pegou a candidatura de um partido destroçado, em parte sim, por erros graves cometidos, em parte por uma campanha impiedosa de vários setores sociais, e com o então candidato Lula que, em 2019, depois de 583 dias preso, foi, não apenas inocentado, conseguiu muito mais, teve sua presunção de inocência sido restituída pelo STF, que é uma condição cidadã prévia a qualquer condenação, já que foi reconhecido ter sido preso sem provas de culpabilidade (quem desejar, pegue a sentença do juiz nada parcial que o julgou, leia e procure alguma prova irrefutável nela escrita) e se saiu muito bem.

Por outro lado, Patriota afirma que Haddad carrega responsabilidade por um suposto fiasco econômico do governo Lula. Bem, ela deu sua opinião, mas não apresentou algo que pudéssemos interpretar como prova a sustenta o dito. Analisemos, então, alguns números da economia brasileira sob o governo Lula. São dados oficiais, reconhecidos e disponíveis para a consulta e para a interpretação de qualquer cidadão. Cada um que tire suas próprias conclusões.

1 – O crescimento do PIB em 2023 foi de 3.2% e em 2024, estima-se ter sido de 3.5%; basta comparar estas, com a taxa média de crescimento do país entre 2015 e 2022, que foi de 0.4% (ou seja, não só apenas do governo Bolsonaro, mas também do governo Temer).

2 – O governo Bolsonaro deixou um rombo fiscal de pouco mais de R$800 bilhões, descumprindo o tão estimado, pelo “Deus Mercado” e seus porta vozes, “Teto de Gastos”. Em todos os 4 anos em que ficou na Presidência, Bolsonaro nunca cumpriu a lei do teto e não foi apenas por conta da pandemia, mas por opções administrativas, como não pagar os devidos precatórios (deu o a famoso “calote”) pouco antes da eleição, para tentar se reeleger, valores esses que foram honrados pelo governo Lula, que o “mercado” diz que é gastador.

3 – Cobra-se o tempo inteiro do governo Lula, corte de gastos, porém, medidas propostas, como o fim do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos, o Perse (programa instituído na pandemia), a Desoneração da Folha de Pagamentos e o corte dos supersalários do serviço público, que foram mantidos pelo Congresso Nacional e não pelo governo, que propôs cortá-los. Setores privilegiados, como os do Judiciário e os Militares não querem cumprir com sua parte no corte de gastos, mas a imprensa foca no Executivo e no governo Lula, apenas. Se as medidas tivessem proposta por Haddad tivessem sido aprovadas, o governo Lula teria tido, em 2024, superávit e não déficit, mesmo com gastos realmente elevados como o maior do orçamento público da União, o de pagamentos de juros (uns R$800 bilhões por ano) e o previdenciário e de assistência social, a segunda maior rubrica do orçamento da União.

4 – A taxa de desemprego, de 6.1%, foi a menor da série histórica; a taxa de pobreza caiu para mínima histórica, 27.4%, e a taxa de miséria absoluta, mesmo que ainda seja vista, nas grandes cidades, especialmente, infelizmente, (ainda há muita população de rua), caiu para a mínima histórica de 4.4%. Além disso, a massa de rendimento real da população atingiu novo recorde em 2024, chegando a R$ 332.7 bilhões, o que dá, aproximadamente, algo como R$ 3.285,00 per capita (por pessoa). Programas como o Bolsa Família foram essenciais para essa melhora.

5 – O crescimento da indústria, em 2024, foi de 3.6%, o maior dos últimos 10 anos; a taxa de crescimento do emprego de alta tecnologia foi de 5% e o emprego na área industrial foi de 75%, sendo 55% entre os mais jovens, com a retomada de políticas públicas como o “Primeiro Emprego”.

6 – A taxa de investimento do setor público, que já foi de 25% como proporção do PIB, não ultrapassou 18% em 2024, mas apresentou crescimento em relação a todos os anos dos governos Temer e Bolsonaro.

7 – No biênio 2023-2024, o Brasil se tornou o 2° maior receptor de investimentos estrangeiros diretos do mundo, só perdendo para os Estados Unidos, ao passo que o investimento em infraestrutura pelo poder público, mesmo muito menor do que a necessidade dos brasileiros, saiu de R$188 bilhões em 2022, para R$260 bilhões em 2024.

8 – O BNDES aumentou o volume de desembolso para o setor privado de R$98 bilhões em 2022, para R$148 bilhões em 2024; o crédito para a indústria, especificamente, cresceu 262% em 2024; com isso, no ranking mundial de produção industrial, o Brasil avançou 30 posições, saltando de 70° para 40°.

9 – As linhas branca e marrom de eletrodomésticos registraram o maior crescimento da produção e vendas nos últimos 10 anos, 25%,  enquanto programas como o “Luz para todos” e “Cisterna para Todos”, além do conhecido “Minha casa, minha vida”, também foram retomados.

Produtos da “Linha Branca” (menos energia gasta)

 

Conjunto habitacional do Programa Governamental “Minha casa, minha vida”

 

10 – Com o Mover, programa da Nova Indústria Brasil (NIB), o setor automotivo bateu recorde nas vendas, com crescimento de 15% em 2024; já a produção de carros cresceu 11%, a maior taxa dos últimos 10 anos. Isso, do ponto de vista ambiental, não é bom, mas aqui falo de economia (embora, na prática, não devemos dissociar economia de ecologia/meio ambiente).

11 – O setor de máquinas e equipamentos puxou o crescimento industrial para 8.3% em 2024. Já o setor de bens de consumo duráveis cresceu, no mesmo período, 9.8%.

12 – Depois de mais de 40 anos, foi aprovada a Reforma Tributária, que, estima-se, estimulará investimentos e exportações do setor privado, especialmente. Está se prevendo que a reforma poderá gerar um crescimento adicional da economia de 12% a 20% em 15 anos. Hoje, esses 12% representariam R$ 1.2 trilhão a mais no PIB de 2022.

13 – A Amazônia teve, em 2024, a menor taxa de desmatamento em 9 anos, 30.6%; no Pantanal, a queda foi de 77.2% e de 48.4% no Cerrado.

Vista de drone do Rio Chandless e floresta amazônica – Parque Estadual Chandless Local: Manoel Urbano – Acre. Data: 06/2024 . Autor: Andre Dib

Então não há “barbeiragens” econômicas no governo Lula? Sim, há, como, por exemplo, o fato de que tal como em outros governos, ainda se gasta muito, porém, com desperdício, com algumas prioridades questionáveis, como os sucessivos subsídios para a indústria automobilística, e tais fatos elevam, sem dúvida, o endividamento público, causando possibilidades de problemas fiscais, mas os números acima mostram que, apesar disso, no geral, a economia brasileira está muito longe do caos que pregam.

Segunda passagem. “O Real, que estava em recuperação quando Lula assumiu em 2023, enfrenta agora um desempenho pior do que o peso argentino sob o governo de Javier Milei, que mal completou um ano. A ‘motosserra’ de Milei, com cortes de gastos e reformas rápidas, colocou a Argentina em um caminho de ajuste econômico. Enquanto isso, o governo Lula segue patinando, incapaz de apresentar resultados concretos”.

Não sei de onde nem como Patriota retirou a conclusão de que Lula assumiu com o Real em recuperação, depois dos desmandos do governo de Bolsonaro e da imensa dívida por ele deixada, rombo nas contas públicas amplamente tolerado pelo “mercado”, que agora cobra, insistente e implacavelmentee, cortes de gastos sociais e oferta, com esta demanda, “chicotadas” no lombo da população. Creio que tais medidas e a defesa do que acham que seja uma economia liberal (para eles, os donos do poder), talvez sejam mais um desejo de defender o governo anterior do inelegível, do que a crença em uma economia de mercado legítima… mas estou apenas interpretando, agora. Sigamos.

Patriota afirma que o governo de Javier Milei, o Bolsonaro argentino, por assim dizer, que se aconselha com seu cachorrinho morto, está com desempenho administrativo melhor do que o de Lula. Ela fala sobre o corte de gastos de Milei que, supostamente, estaria colocando a Argentina nos trilhos do bom desempenho econômico e social, enquanto o governo Lula seguiria “patinando, incapaz de apresentar resultados concretos”. Bem, além de fazer remissão aos dados oficiais acima, que mostram se há ou não resultados econômicos (cada um que faça seu julgamento), vejamos o que nos trouxe, também na Folha de S. Paulo, o jornalista Ruy Castro, em sua coluna de 06 de janeiro de 2025.

Castro nos apresentou um diagnóstico do jornalista John Lee Anderson, em artigo que este último publicou na revista norte americana The New Yorker.

A cidade tem bairros com áreas luxuosas e gente muito rica, mas também possui mais de 2.000 favelas ou comunidades, onde moram alguns milhões de pessoas que vivem em casas improvisadas, com tijolo aparente, muitas das quais, alugadas por “donos do lugar”. As ruas são estreitas e sem calçamentos; os correios não entram nestes lugares e serviços como luz, água e gás, dentre outros, são fornecidos por “gatos”. A polícia, também não entra (para patrulhar e proteger o cidadão, deduzo) e, quando o faz, é com o pé na porta, de modo indiscriminado e muitos inocentes morrem nessas operações; ela também não consegue reprimir a disputa de território entre traficantes ou milicianos – ou até mesmo, pela própria polícia. Os jovens deste lugar, sem maiores perspectivas de vida, sem escolas e com saúde precária e sem empregos, acabam indo para o crime organizado, como o tráfico; ou condenam-se a trabalhar como motoboys, como atendentes de padaria etc., no mais das vezes, sem carneira assinada, o que lhes retira direitos, como acesso à assistência social e aposentadoria. Essas pessoas usam parte dos serviços públicos, mas não pagam impostos (acrescento, por serem “invisíveis” ao poder público e à sociedade, onerando os cidadãos e o Estado).

Castro se perguntou e nos perguntou. Estaria Anderson se referindo ao Rio de Janeiro? Ou a São Paulo? Sim, poderia estar, responde Castro, mas a descrição, segundo o brasileiro, é da cidade de Buenos Aires, da Argentina do Presidente Milei. Sabe… o mesmo que está, segundo muitos, como Patriota, dando jeito na Argentina e que deveria ser, pelo visto, para esse pessoal, modelo para o governo Lula. Então tá.

Terceira passagem. “Bolsonaro não deve ser descartado, mesmo inelegível. (…) Seu retorno, por mais improvável que pareça, não pode ser ignorado”.

Bolsonaro está inelegível (como, espero, fiquem todos os que, comprovadamente, o apoiaram nos atos antidemocráticos) por apenas um, dentre outros processos, mais graves, inclusive. Então, afirmações como essas, desprovidas de maiores provas jurídicas ou, ao menos, razões argumentativas, mais expressam o desejo de quem as profere do que uma argumentação baseada em dados e/ou fatos da realidade (inclusive, negando a lei que foi aplicada no caso). Por esta razão, sigamos, sem maiores comentários.

Fecharei esta análise com um trecho da coluna do jornalista Hélio Schwartsman, escrita no mesmo dia e na mesma página do artigo de Patriota.

O Datafolha, mais uma vez, flagrou essa predisposição. De acordo com o instituto, 67% dos brasileiros acreditam que a inflação vai aumentar em 2025 e 41% apostam na alta do desemprego. Não obstante, 60% julgam que sua situação pessoal será melhor em 2025 do que foi em 2024”.

O que esta passagem significa, especialmente se confrontada com as afirmações anteriores, de Patriota? O que se torna relevante pensar, não do ponto de vista de uma elite que aceitou tão passivamente os desmandos do fascismo tupiniquim, mas sob a perspectiva da população em geral? Entendo, ainda que muito longe do ideal, que o Brasil, em termos de economia, voltou a um caminho, friso, dentro do nosso contexto histórico, razoavelmente bom, com as medidas do governo Lula, muito ao contrário do que pregam Patriota, os “patriotas” e o mercado, mas isso não está se traduzindo em apoio maior ao governo federal. Como pode, por exemplo, 67% dos brasileiros acharem que a economia vai mal, enquanto 60% consideram que sua economia pessoal vai melhorar? O que se passa?

As mentiras contadas, especialmente desde o golpe parlamentar de 2016 em Dilma Rousseff e mais fortemente, entre 2018 e 2022 (e ainda hoje pululando por aí, infelizmente) e sim, claro, somado a erros do governo, como não propor uma reforma da previdência dos militares, para não melindrá-los, mas em propor cortes na área social e de erros na comunicação, além da questão do conservadorismo arraigado do brasileiro médio (em muitos casos, reacionarismo, mesmo, porque ser conservador, o que é respeitável, não é ser, necessariamente, ser um reacionário, o que é lamentável), em termos gerais, explicam, ao menos em parte, esta dissociação senso-cognitiva da população.

Em complemento à frase de Keynes, cito outra, do nosso grande escritor Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908): quem troca pães, volta para casa com um pão; quem troca ideias, volta para casa com duas ideais. Acrescento que, ao trocar ideias, podemos ver pontos de vista outros, que não tínhamos visto na nossa ideia original e, ainda assim, mantê-la, porém, aperfeiçoando-a. Este artigo vem como uma vontade afetuosa, na medida do possível, de trocar ideias e em não deixar que apenas algumas percepções tenham voz no debate social. A conclusão sobre quem está mais perto da verdade, é sua, querida leitora, prezado leitor.

Este é um desafio, mais do que do governo Lula, dos democratas e progressistas, sejam eles de esquerda, de centro ou de direita: como desfazer as meias verdades e mentiras completas da extrema direita e dos capitalistas neoliberais e retomar a dianteira do discurso, das “bandeiras” de luta social, das ações para melhorar a vida de todos nós e não apenas de uns poucos privilegiados? Como ganhar corações e mentes das pessoas, tenham elas a ideologia, a cor, a religião, o gênero etc. que tiverem? Como (re)construir este país de modo mais harmônico, sem ódio, mais tolerante, menos injusto? O que fazer? E a resposta, para ser eficaz, tem que ser coletiva; jamais individualista.

 

Carlos Fernando Galvão,
Geógrafo, Doutor em Ciências Sociais e Pós Doutor em Geografia Humana


cfgalvao@terra.com.br

@cfgalvao54

 

 

 

 

Author

Carlos Fernando Galvão é carioca, Bacharel e Licenciado em Geografia (UFF), Especialista em Gestão Escolar (UFJF), Mestre em Ciência da Informação (UFRJ/CNPq), Doutor em Ciências Sociais (UERJ) e Pós Doutor em Geografia Humana (UFF). Autor de mais de 160 artigos, entre textos científicos e jornalísticos, tendo escrito para periódicos como O Globo, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e Le Monde Diplomatique Brasil, também foi colaborador do Portal Acadêmico da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) entre 2015 e 2018. Atualmente, escreve com alguma regularidade no Portal ArteCult. É autor, igualmente, de 14 livros.

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