Café Aleluia

Coluna de Márcio Calixto

Café Aleluia – Ilustração: ArteCult/DALL.e

 

CAFÉ ALELUIA

 

Marcou-me muito uma imagem protagonizada pelo meu pai no momento em que soube da morte de seu pai, “Fernando, tá sabendo quem morreu? , Não, Seu avô, Avô Ray?, Não seu avô, o seu avô, meu pai, morreu, o enterro será amanhã, quer ir?”. Enquanto fazia a barba, em um misto de desdém e silenciosa fúria, ele me convidou para o enterro de seu pai.

Não conheci meu avô paterno. Nem por foto. Soube que ele havia se separado de minha avó quando meu pai tinha apenas 5 anos. Seguiu-se daí um abandono clássico, de todas as ausências. No resultado, passei a ter duas avós paternas, Nancy, a mãe, e Rosa, a tia que virou mãe. Esta que foi minha madrinha. Eu, o primeiro filho dele fui a ela entregue. Mais do que justo. “Não quer ir no enterro?”. Parecia-me uma convocação. Eu era jovem. Ainda fazia faculdade nessa época. Minha mãe me acenou também um pedido. Ela ficaria com meus outros dois irmãos, menores, em idade escolar. Eu poderia dividir a direção com o velho. O enterro seria em Paraíba do Sul, onde chegamos no dia seguinte. Fomos direto à casa da prima Rita. Revi primos, alguns já com filhos. Reclamaram do meu ganho de peso, meu cabelo desgrenhado. Papai já apresentava sua calvície. Não consegui dividir a direção. O velho parecia ter pressa em chegar. Viemos em constância. O Corsinha atendia ao desejo absorto de estrada. Não colocamos música. Viemos e pronto.

O enterro seria no início da tarde. Para dar tempo de alguns chegarem. Soube ali qual era o nome do meu avô, aqui resguardado pelo próprio enterro em si. Aceito o desejo de total morte que vejo nos olhos de meu pai. Almoçamos todos. Algumas breves risadas. Se tem uma característica de nossa família é o desejo de fazer piada em todos as situações. Ali não seria diferente. Não as exponho, eu mais estava de plateia ao meu velho.

No cemitério, encontrei avós. Meu pai primeiro abraça a Tia Rosa, que muito rezava, pedindo pela ida tranquila do pai de meu pai. Em seguida, Tio Aluisio, seu irmão e primo, também a abraça. Eles balbuciam algo sobre quando ele também perdeu seu pai, o velho Aluísio, um tio meu que se tornou folclore na família. Meu pai não esboça lágrimas. Tia Rosa chorava por todos nós. Vó Nancy se aproxima. Eu a abraço, ela em seu cheiro de cigarro, voz avolumada pela metalização do pigarro, também chora. Meu pai a acolhe. Era hora de seguir ao caixão.

Pessoas profundamente desconhecidas lá estavam. O velho parecia resoluto. Olhava o próprio pai adornado em flores e acompanhado de alguns parentes carpidores. Meu pai não se parecia com meu avô, apesar da calvície. Meu avô apresentava uma face arredondada, bochechas volumosas. A barba estava bem feita. As flores eram mais. Exalavam um cheiro doce, como se desejassem diminuir ou amalgamar aquelas decrepitudes. Papai cruza os braços. Observa seu velho. Como gostaria de saber o que se passa em sua mente. Tia Rosa se aproximou, o abraça, “Perdoe-o, ele nunca soube o que fazia”.

Não demorou muito, o padre da cidade chega. Algumas palavras burocráticas à encomenda embalam o sentimento dos sensíveis. Havia alguns sim. Pesquei nesse processo, uma história ou outra, alguma felicidade ou benfeitoria do velho do meu velho, que mais parecia mastigar dentes. Tampou-se o caixão. A vida volta a seus volveres sutis.

Papai não hesita, decide logo voltar ao Rio. “liga pra sua mãe, avisa.” Foi o que fiz. Ela sugere que fiquemos, que eu dirija de volta. Não o consegui. Papai tinha muitas pressas. No entanto, em frente do cemitério, havia um boteco.

Um bom café sempre teve um espaço singular em nossa família. Atravessamos a rua, um senhor bem carcomido nos atende. Serviu-nos em um copo americano, na dose certa. Naquela época, meu apego ao álcool já se anunciava. Pensei em pedir um traçado, mas se eu for dirigir, seria melhor não. Foi o que aconteceu. Não dirigi. Meu pai voltou no mesmo pé que veio. Porém, o café era religioso. Sentamos ao balcão. Papai rodava o copo, bebia devagar. Colocou pouco açúcar. Vez em quando ele olhava para o cemitério. Os parentes ainda se despediam. Termino meu copo. Peço outro. Papai ainda rodava o primeiro. O senhor que nos atendeu colocou um santinho em nossa frente. Era um papel que apresentava a propaganda do local, Bar e Restaurante Aleluia, e uma imagem de Nossa Senhora.

Papai pegou o santinho, colocou-o no bolso e bebeu o copo em uma talagada. Deixou uma nota de dez debaixo do copo e levantou. Uma última olhada no cemitério. Virou para mim e foi categórico.

Bem, agora? Impossível!

 

MÁRCIO CALIXTO
Professor e Escritor

Márcio Calixto. Foto: Divulgação.



Coluna de Márcio Calixto

 

 

Author

Professor e escritor. Lançou em 2013 seu primeiro romance, A Árvore que Chora Milagres, pela editora Multifoco. Participou do grupo literário Bagatelas, responsável por uma revolução na internet na primeira década do século XXI, e das oficinas literárias de Antônio Torres na UERJ, com quem aprendeu a arte de “rabiscar papel”. Criou junto com amigos da faculdade o Trema Literatura e atualmente comanda o blog Pictorescos. Tem como prática cotidiana escrever uma página e ler dez. Pai de dois filhos, convicto morador do Rio de Janeiro, do bairro de Engenho de Dentro. Um típico suburbano. Mas em seu subúrbio encontrou o Rock e o Heavy Metal. Foi primeiro do desenho e agora é das palavras, com as quais gosta de pintar histórias.