Quando li o livro A Palavra que Resta do autor Stênio Gardel, fiquei em êxtase, completamente boquiaberta diante da leitura que é leve e diferente e, pasmem, ao mesmo tempo, densa. Enquanto meus olhos liam, meu coração se perdeu em batimentos, em frequências muito longe do habitual, e um samba se instalou nesse meu músculo involuntário.
Quem me apresentou a obra foi o nordestino, figurinista premiadíssimo e cenógrafo Wanderley Gomes. Acompanhei de perto sua criação; Wanderley soube captar a linguagem imagética que o livro traz ao leitor e, com toda a cultura nordestina em suas veias, transportou-a para o palco: a cruz, o rio, a sala de aula e muitos outros espaços que a leitura e o teatro nos convidam a explorar.
Fui convidada para assistir a um dos ensaios e adorei participar desse processo, dessa construção que, por conta da grandeza artística do diretor e elenco, já me parecia pronta.
Fundada em 1992, a Cia de Atores de Laura é uma das mais premiadas companhias do teatro brasileiro, com 19 prêmios. Em junho de 2009, passou a ser constituída por atores reunidos numa cooperativa junto ao diretor Daniel Herz. O princípio que rege o grupo é pensar e realizar o ator como força principal do jogo cênico. Pela companhia, já passaram nomes como Ângelo Paes Leme, Maria Ribeiro e Ana Markun. Desde o ano de criação do coletivo, seus artistas e espetáculos ganharam diversos prêmios, incluindo dois Shell, e se apresentaram no exterior, em locais como França e Argentina.
Esta crítica foi escrita muito antes da estreia do espetáculo, pois foi no ensaio, com pés descalços e malhas, que vi a força e capacidade de execução teatral deste elenco.
Gostaria de falar sobre o diretor desse espetáculo. Tive a oportunidade de conhecer Daniel enquanto trabalhava, longe do palco, e fiquei muito admirada com a capacidade de escuta que ele carrega, acompanhando cada artista em suas criações. Quando Charles Fricks apresentou um de seus personagens, eu o parabenizei, e a resposta foi imediata: “Eu e Dani ainda estamos fazendo experimentos.”
Após o ensaio, Daniel quis ouvir a todos os que estavam conhecendo seu novo trabalho. Eram alunos, críticos e até mesmo pessoas experientes no cenário teatral. Interessante foi como ele dava explicações sobre o porquê de não estarem ensaiando com parte do figurino, tudo de forma muito leve, gentil e profissional.
Daniel, ao ler o livro de Stênio, resolveu trazer para o palco a história de Raimundo, um homem que esconde sua sexualidade por décadas para sobreviver numa sociedade heteronormativa. A peça é uma adaptação do romance homônimo de Stênio Gardel, que venceu o National Book Awards na categoria de literatura traduzida.
Será que Daniel tem a dimensão do tanto que ele traz para a sociedade? A taxa de analfabetismo no Brasil se aproxima de 7%, assim como estão registradas 257 mortes violentas de pessoas LGBTQIA+ em 2023, mantendo o país como o mais homotransfóbico do mundo. Parabenizo a iniciativa do diretor e do Instituto Vale Cultural por abraçarem essa ideia.
Percebi muito dessa companhia, que este ano completa 32 anos. Após o ensaio, todos se uniram para guardar os objetos de cena, dos mais pesados aos mais leves. Havia ali mãos que, além de potentes artisticamente, demonstravam muita maturidade, compreendendo que não podemos contar com tanta mão de obra atualmente. Foi uma verdadeira aula! Sem contar a projeção de voz, sem medo – artista de verdade e sem vaidade.
Sinopse
O potente romance de estreia de Gardel percorre os conflitos familiares do protagonista, Raimundo Gaudêncio de Freitas, e as relações que ele estabelece após fugir de casa e cair na estrada, bem como as catarses e ressignificações impostas pelo destino.
Quando eles entram no palco, todos atuam como Raimundo. Percebi a astúcia de Daniel Herz nos jogos cênicos desenfreados em mais de 90 minutos de duração. Todos são todos no drama, mas com delicadeza, sem interrupções, sem julgamento entre eles; tudo foi bem-vindo. Mais uma vez, a maturidade parece ser marca registrada dos Atores de Laura. Em uma comemoração à Casa de Cultura Laura Alvim, lembro-me de que disseram existir uma placa no Nordeste para que, em caso de necessidade, os nordestinos a procurassem no Rio de Janeiro, e por coincidência até mesmo a literatura de lá veio ao encontro dos artistas que carregam o nome dela. Laura está mais viva que nunca!
“No palco pode tudo. Tudo é possível para a imaginação”, disse Aderbal Freire Filho ao Sesc.
E quem foi Aderbal? Um dos maiores teatrólogos do Brasil. Quem é do teatro sabe bem de quem falo, portanto, penso que não preciso de um homossexual para encenar um homossexual, muito menos de um hétero para encenar um hétero; não preciso de uma mulher para encenar uma mulher e assim segue. Imagine Valeria Barcellos não poder atuar, trazer sua performance tão viva e bendita ao palco por essas chatices dos dias de hoje? Valéria foi tudo, assim como as demais atrizes, e deu certo!
Digo mais, acho isso um tiro no pé, porque o que precisamos é de trabalho, não de discussões que não nos levam a nada. Já temos leis que nos permitem trazer uma ficha técnica diversa e inclusiva, o que apoio muito, muito mesmo, pois todos precisam trabalhar. Essas leis auxiliam e têm trazido oportunidades para muitos. No espetáculo Bonitinha, mas Ordinária, o diretor Bruce Gomlevsky trouxe uma mãe negra e um filho branco. É sobre isso, é sobre todos poderem trabalhar e fazer do teatro um espaço de possibilidades sempre!
Uma montagem forte, que bebe na realidade de muitas famílias, afinal falamos de preconceito, de machismo e de tudo que permeia a sociedade brasileira. Parece que não entendem ou não querem entender a natureza do ser humano.
Charles Fricks e Valeria Barcellos parecem concordantes com suas fisionomias e expressões corporais perfeitas, com tons de voz bem colocados, ambos merecem toda minha admiração. Falando em Valéria, ela traz doses homeopáticas de comicidade, tudo bem equilibrado; ela simplesmente conquista a plateia. Sem contar sua voz – penso que poderia cantar mais, isso sim.
Paulo Hamilton trouxe um diferencial que foi um sotaque desconfiado, ou posso dizer tímido. Adorei, pois não foi forçado. O artista, durante o ensaio, não me apresentou a potência que vi no palco; saí extasiada com seu trabalho.
Já Leandro Castilho traz a essa densa história juventude, parece ser o mais novo do espetáculo, o que oferece um frescor, uma sensação de brisa leve, a essa história turbulenta. Sem contar a música autoral dele, que caiu muito bem.
Verônica Reis apresenta cenas inesquecíveis, como a de uma mulher costurando, com percussão corporal que ficará em minha memória. Com um manto nas costas, ela atua com verdade, beleza e domínio.
Gostei muito de Ana Paula Secco interpretando Teresinha, uma personagem que Raimundo encontra na escola. Simpática demais, oxente! Ela deveria fazer um monólogo com essa personagem, pois é uma construção cativante.
O espetáculo é ótimo, sensual, com artistas potentes, abordando um tema necessário, e da maneira certa: com beleza e inteligência, sem gritos ou berros. É um falar com o corpo e com a alma.
A iluminação de Aurélio foi perfeita, como sempre. Adorei a conexão do cenário com a iluminação.
Dois jovens se apaixonam. Quando o pai de Raimundo (um dos rapazes) descobre, submete o jovem a uma série de agressões dolorosas demais, com um motivo surpreendente. O pai enxerga o amor do filho como uma praga. Raimundo recebe uma carta de Cícero, seu amor, mas, sem saber ler, deixa o sertão a convite da mãe, carregando consigo aquele papel. Ele chega à cidade e aprende a ler para descobrir o que está escrito naquela carta. Creiam, tudo poderia ser diferente se o analfabetismo e o preconceito não existissem. Os desdobramentos dessa história são inacreditavelmente inteligentes.
Assistam!
Vale mencionar que o espetáculo está no Centro Cultural Correios, um lugar especial, belíssimo, construído para sediar a escola da companhia de navegação Lloyd Brasileiro, o edifício foi inaugurado em 1922. A projetada escola, entretanto, não chegou a ser instalada, tendo o imóvel sido utilizado, por mais de cinco décadas, para o funcionamento de unidades administrativas e operacionais da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos.
Bernardo Arribada, chegou de São Paulo para dar a mão a esse espaço de arquitetura eclética.
Ficha Técnica:
- Texto original: Stênio Gardel
- Adaptação e direção: Daniel Herz
- Com: Ana Paula Secco, Charles Fricks, Leandro Castilho, Paulo Hamilton, Valéria Barcellos e Verônica Reis
- Cenário e figurinos: Wanderley Gomes
- Iluminação: Aurélio de Simoni
- Trilha sonora: Leandro Castilho
- Programação visual: Luciano Cian
- Direção de Produção: CultConsult Produções e Escudero Produções
- Produção executiva: Clarah Borges
- Realização: Cia Atores de Laura
- Assessoria de imprensa: Barata Comunicação e Dobbs Scarpa
SERVIÇO
A PALAVRA QUE RESTA
- ONDE: Teatro Correios Léa Garcia (Rua Visconde de Itaboraí, 20, Centro)
- QUANDO: Até 2/11, de quinta a sábado (19h)
- QUANTO: Ingressos entre R$ 15 e R$ 80
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