BRASÍLIA, DE BRAÇOS ABERTOS PARA OS CARIOCAS
Luis Turiba*
O transcendental céu de Brasília estava azul piscina e cristalino. Parecia até querer piscar os olhinhos para os humanos, especialmente quando, ao cair da tarde, se transformava lá no fim do Eixão Monumental, em um vermelho-batom ávido por beijar homens engravatados e mulheres executivas que circulam pela Esplanada e os shoppings; além das pessoas simples, comuns, morenas quase negras e apressadas em idas e vindas pelas escadarias rolantes que não mais rolam como antigamente acontecia na Rodoviária do Plano Piloto, formigueiro de gentes do Centro-Oeste brasileiro.
O pôr-do-sol brasiliense tem um quê de sensualidade, principalmente se for visto da Casa de Chá da Esplanada dos Ministérios, entre os Palácio do Planalto e a sede do STF, nas costas do Congresso, onde fica a Praça dos Três Poderes e sua clássica estátua da Justiça, que um dia o poeta Xico Chaves fez uma performance dando-lhe visão especial.
Ao cair da tarde, poucas ou nenhuma nuvem no céu de 360 graus. O chão seco, a grama esturricada, oxigênio rarefeito. Já são mais de 130 dias que as terras do Planalto Central não sabem o que é uma gota de chuva na sua superfície. Plena seca, seca braba, secas castigam-te. A partir desta semana, o cerrado em torno do Plano Piloto e das cidades satélites, pegarão fogo e os incêndios já ameaçam a capital da modernidade arquitetônica.
Mas chegamos à Capital felizes, – a poeta e designer Rose Araújo e eu -, com antecedência de uma semana para a audiência que rolou na Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, no último dia 21, sobre o processo que entrei há 12 anos contra o Estado brasileiro por perseguições, maus tratos, impedimento de prosseguir os estudos, prisão e torturas, na luta da minha geração – aquela de 68 –, contra a ditadura militar.
Por sinal, nem eu sabia que eu era tão perigoso assim. Durante 17 anos, fui vigiado e observado pelo SNI. Quanta perda de tempo…
Mas fomos recebidos de braços abertos pela cidade arquitetada por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, tendo JK na presidência da República. Também fomos saudados por seus(suas) maravilhosas (osos) poetas, seus artistas ávidos de acompanhar este processo tão importânte para a democracia brasileira e também para a permanente troca de experiências poéticas com o que estamos produzindo no Rio de Janeiro.
Ficamos hospedados na 110 Sul, residência do poeta e jornalista-revisor José Roberto Silva, uma quadra que fica a uns 500 metros do famoso Bar Beirute, sede de encontros boêmios, lançamentos poéticos e conversas culturais e musicais da Capital.
Desta vez, somente no Beira Sul realizamos cinco encontros poéticos. Rose levou seu livro “Quando Vida, Poesia”, publicado aqui no Rio, e trocou por livros de poetas brasilienses – intercâmbio intenso. Aliás, esse foi o primeiro caminho que Rose aprendeu no DF: como chegar ao Beirute, caminhando a pé pelos jardins desenhados por Burle Max na 110 Sul. Isso, ela aprendeu rapidinho.
Na primeira noite, a convite do nosso anfitrião Zé Roberto, fomos a uma festa embalada por banda local – o professor-designer Nache Las Casas na guitarra e no vocal. Sorte nossa, pois era aniversário da Teresa Rolemberg, irmã do ex-governador Rodrigo Rolemberg. Ali, reencontrei “meia” Brasília da época em que vivi na cidade, de 1978 até 2010, trabalhando na imprensa local e nacional. “Terezão”, para os íntimos, foi uma das “ministéricas” da performance coletiva que fizeram, em 1979, e chamamos de “Progressália”. Aquilo foi incrível.
Muito emocionante este “reentré” em Brasília ao som de “Punk da Periferia” e “Lá em Londres”, ambas rock de Gilberto o Gil, no embalo daqueles roqueiros tipicamente brasilienses.
No dia seguinte, além de iniciarmos uma pesquisa nos arquivos do Jornal de Brasília, sob o carinho dos jornalistas Lindauro Gomes e Suzano Almeida, localizando matérias que escrevi durante a viagem do presidente eleito Tancredo Neves à Europa, Estados Unidos e países da América Latina; México, Peru e Argentina, onde visitei o escritor Jorge Luís Borges e fiz uma breve entrevista com “el bruxo”. Assim como estivemos também, ali ao lado, com o meu colega editor Severino Francisco, do Correio Braziliense, em longo e agradável bate papo entre histórias e memórias.
À noite, nossa primeira reunião com o “poetariado” no Beirute. Além de príncipe Nicolas Behr e Noélia Ribeiro, lá estavam o poeta-professor Marcos Fabricio e sua parceira produtora Edivânia. Também o poeta-contista André Giusti, que é um dos finalistas do Prêmio Oceanos; e o contista mineiro Rodrigo Leste. Ganhamos de Nonô seu último livro “Pequeno Antologia Pessoal”, que traz poemas de seus livros “Atarantadas”, “Escalafobética”, “Espevitada”, e os “Piripaques Inéditos”; e o novo livro do Nick, poemas brasilienses para estudantes secundaristas da cidade-musa.
Como o Beira Sul foi palco de tantos encontros, a conversa com o escritor e jornalista Maurício Melo Júnior, que há anos faz o melhor programa de entrevistas literárias da TV brasileira, também foi lá. Maurício está escrevendo um novo romance, com uma complexa árvore genealógica que envolve escritores fundamentais, como por exemplo Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa.
Mas no dia do julgamento do processo da Anistia, juntou-se a este grupo mais alguns poetas como a Bic Prado e o Fabrício Morele, além dos meus filhos Manu e Thiago e amigos antigos e fiéis como o arquiteto Fabricio Pedroza. Éramos um grupo de, se não me engano, 12 pessoas na Comissão da Anistia. Todos vibraram, torceram, se emocionaram e choraram de emoção com a leitura do meu poema “Tortura”. Um momento digno desta Brasília iluminada e luminosa.
Em todos os momentos das nossas andanças pela Capital, incluindo uma lindíssima tarde na Catedral, obra maior do arquiteto Oscar Niemeyer, por sua beleza interna, externa e espiritual, onde é possível parar e refletir com os anjos suspensos, arte de Alfredo Ceschiatti nos vitrais de Marienne Peretti; sempre contamos com o apoio logístico, inteligente, de bom-humor, do poeta-anfitrião José Roberto, um dos mais importantes inventores desta arte de linguagem e comunicação..
Aliás, o Zé Roberto está prestes a publicar seu oitavo livro, um belíssimo almanaque poético interpretativo de uma Brasília mística e mítica, vista por dentro nos pequenos detalhes, a partir de seus jardins, pracinhas internas, passarelas e caminhos floridos entre árvores poderosas e história.
Este seu novo livro, a ser publicado ainda nesta histórica seca deste 2024; tem uma parceria com o pintor colorista Carlos Bracher, que emprestou alguns de seus quadros para embelezar ainda mais os delírios poéticos do bardo da 110 Sul. Será uma obra inesquecível para uma das mais bem boladas capitais do planeta, obra da parceria entre Oscar e Lúcio Costa, com seus eternos ipês roxos e amarelos, seus descaminhos por gramas queimadas.
De mãos dadas nos despedimos da Capital: bye bye Brasília, até a próxima. Que me importa se a Capital não tem esquinas, se o Centrão domina um Congresso tradicional e conservador, com políticos mais voltados para os recursos do que os cursos dos nossos rios, das matas e da natureza. Como escreveu Paulo Leminski, depois que o levamos – Nicolas Behr, Ivan Presença e eu – para um passeio na Vila Planalto, a menos de dois quilômetros do Palácio do Planalto. Ele pediu um pedaço de papel e escreveu a caneta:
“Em Brasília, admirei/ o pequeno restaurante oculto/ criminoso por estar fora da quadra permitida
Sim Brasília/ admirei o tempo/ que já cobre de anos tuas impecáveis matemáticas
Sim Brasília/ o erro sim/ não a lei/ muito me admiraste/ muito te admirei”. P.L., 84
IMAGENS DA VIAGEM (Fotos da poeta Rose Araujo)
LUIS TURIBA
*Luís Turiba é jornalista aposentado, poeta com 3 livros editados pela 7 Letras do RJ, e outros 8 livros no campo da poesia independente e/ou marginal.É editor da revista anual de invenções poéticas Bric a Brac, criada em Brasília, em 1985. A Bric a Brac 8, última edição, saiu em 2022, uma celebração ao centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 e ainda pode ser encontrada nas melhores livrarias de Ramos.
NOTA DO EDITOR:
HISTÓRICO
No início de 2013, portanto há 11 anos, atendendo a sugestões de amigos, companheiros de luta, parentes e advogados, Luis Turiba montou um processo com auxílio de especialistas em Direitos Humanos, e entrou com um processo no então Ministério da Justiça. O objetivo era ser reconhecido como “um lutador pela Democracia” e ao mesmo tempo, cobrar do Estado Brasileiro uma indenização pelo que todos sofreram com repressões, perseguições e torturas. Foram expulsos de escolas e faculdade, perseguidos direta e indiretamente pelo serviço da repressão e perderam inúmeras chances de desenvolvimento profissional. Por isso, tinham direito a reparações e reconhecimentos.
Neste período, centenas de processos foram julgados e muitas indenizações e reparações já foram pagas. A Justiça começou a ser feita. Mas durante os anos do governo negacionista, todos os processos foram engavetados sob a alegação que “estavam em diligências” e praticamente nenhum foi julgado. E os que foram, tiveram o carimbo de “indeferidos”.
No último dia 21 de Agosto, foi enfim julgado o processo (leia em “Foram enfim acertadas as contas com a Ditadura Militar”), concedendo a Turiba o parecer final favorável, acrescido de um pedido de desculpas do Estado Brasileiro.
Eis o poema lido por Luis Turiba durante o julgamento na Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania:
TORTURA
(de Luis Turiba)
Levanta-se o véu e rasga-se a túnica
Os corvos ainda bicam o que restou de ti
Uma dor cicuta que espiral perdura
….tortura…O teu silêncio cobrado em preço físico
O teu algoz agora também teu karma
Tua voz teu suspiro e teu fantasmaQuem içou o dia e eternizou o cinza
Um Deus raivoso fez habitat às sombras
Tiras o capuz e o que vês? Abismos…Jagunços a conspirar em cadafalsos
_ Ora Senhor! Não se trata bandidos a bombons!
_ Meus Deus! Meu Deus! Será que vou calabar?Nunca serás mais o que antes eras
Se o corpo resistiu, o espírito tem chagas
Marcado como gado a ilusão tritura
…..tortura…….
Para ler mais sobre o período em que Luis Turiba esteve preso pela Ditadura, veja em no seu texto de estreia, Poética da Memorabilia , em Acertar as Contas com a Ditadura e em Foram enfim acertadas as contas com a ditadura militar)
Raphael Gomide. Editor-geral do ArteCult.
Turiba, meu irmão, a sua vitória é a vitória da liberdade e da Democracia, que pode demorar mas não falha. O seu depoimento é de arrepiar e emocionar qualquer um com o mínimo de dignidade empática. Vc veio pra somar aqui, no PORTAL, e, com certeza, toda semana nos alegraremos e aprenderemos muito com vc, meu irmão. Parabéns por tudo. Grande abraço fraterno
Dias preciosos, repletos em histórias, memórias e afetos…a mais pura alquimia: evoé, foi lindo…
✍️❤️