“A vida é a hesitação entre uma exclamação
E uma interrogação.
Na dúvida, há um ponto final”.
(Bernardo Soares)
Havia um Oráculo, na Grécia antiga, por volta do século VIII a.C., na cidade de Delfos, dedicado ao deus Apolo. A divindade do arco – tanto da flecha que fere, quanto da lira musical. E sobre isso já adianto um pouco do que iremos falar neste artigo de hoje: a flecha avança; a lira musical requer uma pausa para a escuta. Parece antagônico, mas há uma possível interpretação de entendimento.
Neste Santuário, em suas paredes, os Sete Sábios deixaram algumas inscrições com orientações ético-morais. Uma delas, muito conhecida por nós, indivíduos da contemporaneidade é o “conhece-te a ti mesmo”. Um imperativo sem exclamação. Como era próprio do grego antigo, a língua falada à época de Sócrates, não havia ponto de exclamação em sua gramática. A frase-conselho do Oráculo é um enunciado fundamental para a filosofia – sobretudo para Heráclito de Éfesos (séc. VI a.C.) e Sócrates (V a.C.). É o entendimento socrático essencial, transmitido através dos diálogos de seu mais famoso discípulo, Platão, para que tenhamos uma vida feliz e autêntica. São marcas intrínsecas às nossas vidas e por isso também precisamos nos voltar com muito zelo e atenção para elas. Autenticidade é a qualidade do que é legítimo e genuíno. E a felicidade, é um tema tão ancestral quanto a própria história do homem, como nos fala a professora italiana Fermani:
“A onipresença do desejo de felicidade, que caracteriza todo ser humano, deve constituir o ponto de partida e, ao mesmo tempo, o horizonte imprescindível de toda reflexão sobre a felicidade. Todo homem deseja a felicidade, independentemente do significado que se atribua a esse termo e da estratégia que se utilize para a sua obtenção, mesmo que se acredite que a felicidade não existe, ou não seja alcançável pelo homem”. (p. 22-3).
O ensinamento dos Sete Sábios para a posteridade precisa ser frequentemente revisitado por cada um de nós que vivemos em um mundo tão conflituoso e tão acelerado. Muito diferente da Delfos do século VIII a.C. A filosofia de Sócrates, que viveu na época de ouro da antiguidade clássica grega (nasce em 469 e morre em 399 a.C.), está tão viva e intensa quanto em sua época. Permanece ali: no muro firme e inexpugnável do pensamento filosófico. O “conhece-te a ti mesmo” é um conselho indicativo e não uma ordem imperativa. É uma orientação dos Sete Sábios para conter desvios éticos e morais, mas sobretudo, para uma moderação em atos e palavras. E qual era o principal desvio a ser contido e evitado? Para os gregos e principalmente para Apolo era a Ύβρις (híbris): a desmedida, a ira, o orgulho, o excesso, o destempero.
Para os Sábios, uma vida feliz e serena, longe dos excessos e das desmedidas. E para isso, o uso do λόγος (lógos) é o permanente exercício para o afastamento dessa híbris. Somos assim como uma represa de afetos bons e ruins. E esta represa, contida, precisa de contínua vigília: para não estourar – pelo excesso – nem secar – pela falta. É o uso do pensamento e do autoconhecimento, como nos ensina Sócrates, para não ocorrer este desmoronamento. Este é um dos saberes divinos de Sócrates, segundo o mito do Oráculo de Delfos, que ele nos deixou: a ininterrupta ação de reflexão e questionamento. Este é também o principal papel da Filosofia: remover o véu do engano que insiste em turvar nossa percepção da realidade. Foi a pergunta inaugural da filosofia, feita por Tales de Mileto: τί εστίν; (tí estín;) – o que é isto? É justamente quando surge nosso espanto diante de algo desconhecido. E levado por esta motivação de investigação do que não se sabe até então que surge o filosofar.
Nos dias de hoje, somos constantemente impelidos e empurrados a termos e darmos respostas para tudo. O ritmo ultra acelerado das redes sociais e do mundo virtual engendrou ‘especialistas’ em todo tipo de assunto e área do conhecimento. As pessoas do senso comum simplesmente ‘disparam’ (olha a flecha que pode ferir) suas opiniões, seus comentários e pontos de vista nem sempre corretos, e justos e apropriados. Lançam suas frases irrefletidas que muitas vezes podem ferir e abrir lacunas irreparáveis.
Na atual estrutura gramatical da nossa língua temos a pontuação e a regra de uso de cada uma. Uma vírgula é uma pausa breve. Um ponto e vírgula, uma pausa maior. Uma exclamação é uma representação de espanto, alegria ou uma ordem. Uma interrogação significa dúvida ou questão. E um ponto encerra uma frase ou um parágrafo. Em essência, a linguagem é a representação do pensamento. E nos expressamos – ou deveríamos – através da linguagem. Obviamente há uma diferença estrutural entre a língua culta e a língua falada no dia a dia. Mas o terreno onde se frutifica é um só: o pensamento. É de onde retiramos nosso ‘cardápio’ vocabular e estruturamos nossas ideias. E para além de cada indivíduo que pensa e fala há um outro indivíduo (interlocutor) que também raciocina e articula. Entre o emissor e o receptor há a mensagem (conteúdo) e o meio, por onde se propaga a mensagem, e finalmente o ruído – uma eventual distorção e mau entendimento da mensagem.
Esses são os cinco elementos básicos da teoria da comunicação, sobre o que não cabe aqui avançarmos. Mas sim uma reflexão, como é próprio da Filosofia, sobre como estamos nos articulando com os outros membros desta pólis atual. E para isso, pergunto: o que é um ponto? Usamos de fato este ponto? E as nossas interrogações? Precisamos mesmo ser tão imperativos e faltar tão alto (!)? Cogitemos sobre. Porque a analogia com o uso da pontuação é totalmente propositada: precisamos parar e fazer uma pausa e pensar. Não apenas entre frases escritas e faladas, mas sobretudo no nosso pensamento e em nossas atitudes. O ponto é um convite para a respiração, para a escuta (verdadeira), para a autorreflexão – é abrir a porta para o universo do autoconhecimento.
É um exercício – e como toda prática – exige autodisciplina. Um voltar-se para si. Um conter-se racional – como nos ensina Sócrates. E nos acelerados dias atuais o ponto se mostra também como poderoso antídoto para nosso equilíbrio mental. E quem sabe, uma terapia eficiente que se propõe a nos conduzir a uma vida feliz e autêntica. O uso do ponto escrito, falado e pensado para uma vida menos apressada e menos precipitada. Um ponto para evitar mágoas e atos desnecessários. Ou como nos diz o filósofo estoico Marco Aurélio, que recebeu forte influência da filosofia socrática, em suas Meditações: “se não for certo, não faça; se não for verdade, não diga”.
Para encerrar a reflexão deste artigo, em sintonia com a analogia da pontuação, temos a παρεσία (parresía) socrática: o exercício da fala franca e da sinceridade, que inspirou as escolas do período do helenismo. Para o mestre de Platão, nenhum diálogo deveria se iniciar sem a franqueza e a sinceridade consigo, principalmente, e depois com seu interlocutor.
Mas é importante aqui não nos precipitarmos a interpretar a parresía como um disparar (olha a flecha novamente aí…) verborrágico de impropérios. Não é isso o ensinamento socrático da parresía. Lembremos do ponto, da pausa que falamos há pouco. Primeiro uma autorreflexão (o que estou pensando/querendo fazer). E uma pausa. Depois um autoquestionamento (será que devo dizer/fazer isto?). E uma nova pausa. Parece tolice, mas é uma proposta para que nós – sujeitos da performance acelerada da contemporaneidade – tentemos viver uma vida de fato autêntica e feliz. Evitando mágoas e ferimentos a um semelhante, que muitas vezes são irreversíveis. E se ao final do dia, cada um de nós pudermos fazer uma breve pausa, de ponto e vírgula, e nos sentirmos bem, já terá valido à pena.
E para acrescentar, deixo aqui versos da belíssima canção Simples desejo, interpretada pela cantora Luciana Melo, que nos embala suavemente a uma pausa e uma contemplação ao que nos cerca – que é tanto e é muito:
“Pra viver e pra ver
Não é preciso muito
Atenção, a lição
Está em cada gesto
‘Tá no mar, ‘tá no ar
No brilho dos seus olhos
Eu não quero tudo de uma vez
Eu só tenho um simples desejoHoje eu só quero que o dia termine bem
Hoje eu só quero que o dia termine muito bem
Hoje eu só quero que o dia termine bem
Hoje eu só quero que o dia termine muito bem”
ZAL
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- FERMANI, Arianna. A vida feliz humana: diálogos com Platão e Aristóteles. Tradução Renato Ambrósio. São Paulo: Paulus, 2015.
- FOUCAULT, M. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
- GHIRALDELLI, Jr., Paulo. 10 lições sobre Sócrates. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.
- PLATÃO. Apologia de Sócrates. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 3ª ed. Belém, PA: ed.ufpa, 2015.
- PLATÃO. Fédon. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 3ª ed. Belém, PA: ed.ufpa, 2011.