Amante da escrita, sempre gostei de explorar novos recursos para o texto. Há pouco tempo, resolvi conhecer e tentar a escrita de textos dramatúrgicos e me vi, como aluna iniciante, diante do embaraço que é contar-se uma história através de diálogos. Experiência difícil, em que pouco pode sugerir-se em relação à construção em cena das ações, das leituras humanas do diretor, dos atores, do cenógrafo. A história brota do puro texto, livre por natureza; do trançado das palavras ditas pelas personagens, bem como dos seus silêncios. Os ambientes, que seriam descritos numa prosa literária, são minimalisticamente apontados numa peça teatral, abrindo espaço para o trabalho e a imaginação de quem vai, de verdade, construí-los em cena.
Mais rico de descrições, o roteiro cinematográfico aponta aos seus realizadores os detalhes físicos e imagéticos da história a ser filmada. É preciso pensar-se todo o universo em torno da história. Não só as palavras que a contarão, mas as cenas, as imagens, os ângulos da câmera, os ambientes etc. O cinema é feito a partir de uma rica junção desses detalhes que compõem, literalmente, quadros de uma grande história.
Daí que não pude deixar de valorizar o quanto o roteirista e o diretor (corroteirista, por sinal) de “Culpa” foram competentes ao realizar o filme, uma emocionante narrativa de suspense em que há poucos efeitos cinematográficos “em cena”. A maioria das imagens dessa história está na cabeça do espectador: os diferentes ambientes, se há ou não sangue ou se há ou não luz neles, se há ou não uma novidade atrás da porta que se abre e que não vemos.
O filme se passa numa central de emergência de atendimento policial. Seu protagonista é um policial que recebe a ligação de uma mulher sequestrada e, a partir de então, passa a lidar com os desdobramentos dessa ocorrência. Paralelamente, um pouco do que acontece na vida do protagonista nos é contada, através dos diálogos que ele trava com as pessoas com que lida por telefone.
O filme se passa na central de emergência, eu disse? O filme se passa lá e na casa da mulher sequestrada e no carro que a transporta e na estrada que percorrem as viaturas policiais e por aí vai. O filme se desdobra em ambientes que não visitamos, não vemos, apenas supomos pelos sons na ligação do atendente e pela nossa bagagem pessoal. Com os medos que possuímos, estamos dentro do carro em que a mulher é transportada, estamos na casa em que seus filhos ficaram sozinhos, estamos caminhando por diversos cenários que não nos são mostrados mas que, nem por isso, deixaram de ser construídos na nossa mente.
Se eu contasse a vocês que o filme é a narrativa de uma mulher sequestrada num carro, que liga para a central de emergência da polícia, precisando de ajuda do marido que a fez de refém e que a obrigou a deixar em casa, sozinhos, seus filhos, em quase nada o filme pareceria diferente de qualquer outro clichê narrativo de histórias policiais. Mas o grande barato de “Culpa” é que nos envolvemos com esses personagens sem sequer saber que aparência têm, que situação os levou ao impasse que vivem ou como são os lugares em que transitam. E, no entanto, eles nos impactam, são absolutamente reais, nossa mente lhes dá forma, corpo, expressões faciais, movimentos, somente ouvindo-os pelo telefone ou imaginando-os em situações similares às que conhecemos em nossas vidas pessoais ou de espectadores mesmo.
Poderia ser monótono ou cansativo mas não é. Na verdade, é exatamente o contrário: o filme se desenvolve de forma emocionante e bem dinâmica. Estamos claustrofóbicos como o protagonista quando as situações principais chegam ao clímax, estamos penalizados como ele diante da fragilidade humana. Ouvimos, como ele, as respirações, as vozes, os sons dos automóveis na estrada, os ruídos das ligações, e embarcamos nas mesmas descobertas que ele faz sobre as pessoas com que lida e sobre si próprio, entendendo o título do filme e o paralelo que se cria entre os personagens a partir do sentimento “culpa”.
Como elemento humano dramático, temos as vozes das ligações, alternando entonações de acordo com a emoção que os personagens estejam experimentando. Temos também as expressões do ator Jakob Cedergren que dá vida, brilhantemente, ao personagem principal. Vemos muito pouco seu corpo – ele está quase todo o tempo sentado à mesa de telefone. Mas o que demonstra seu rosto e o closet em suas mãos (digitando ou tensionadas) são suficientemente expressivos de toda a variação emocional por que passa.
A linguagem cinematográfica é explorada, lógico. Os sons, a iluminação, os closets. Mas de forma propositalmente tímida, fechando-nos, como ao protagonista, naquele mesmo ambiente. Assim, o que se destacou para mim, pensando nos caminhos da escrita, foi a maneira como se tecem os diálogos dessa história, todos relevantes. Através deles se evidenciam os laços superficiais ou íntimos do protagonista com seus interlocutores. É deles que brotam as partes obscuras da vida e as angústias pessoais dos personagens. É através das palavras que o policial, confinado a uma mesa de telefone, desenvolve uma estratégia para participar ativamente da solução da trama.
Soma-se a isso a inteligente utilização dos sons ambientes que nos chegam pelas ligações telefônicas e, junto com a música de fundo, intensificam o suspense do filme.
É muito bom. É emocionante. A trama possui reviravoltas e um final surpreendente. Você não sente o tempo passar. Mas respira cansado, no fim, porque acabou a angústia. E, acima de tudo, é, essencialmente, um grande roteiro. Imperdível.
O filme ganhou o prêmio do público no Festival de Sundance e esteve na lista dos possíveis candidatos ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2019, não permanecendo na listagem final.
[Nota da autora: Lembro-me de que, adolescente, assisti a um filme que ficou na minha memória como um dos momentos em que mais senti medo. A cena inicial é fantástica: um diálogo entre uma babysitter que está cuidando de duas crianças e um homem que tem seu carro enguiçado. Eles conversam através da porta da casa onde ela está trabalhando. Ele quer usar o telefone para pedir ajuda, ela se nega a abrir a porta. Não vemos o homem mas o que perigo que podemos supor que ele traria à casa é aterrorizante. Chama-se “Um estranho em minha porta (“When a stranger calls back”), a versão de 1993. Outro momento em que trabalhar com a sugestão e o diálogo atingem em cheio a imaginação para intensificar o suspense.]
ANA GOSLING
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