Tomo a decisão momentânea de ampliar o conceito dessa coluna para algo além da literatura. Porém, sempre afirmo que a literatura está em todas as formas de arte, inclusive naquelas em que a palavra não está exposta; esta, com certeza, esteve na primeira concepção do que seria aquela arte, ou como pintura, ou como escultura, ou como fotografia.
Algumas dessas levam uma legenda, uma ampliação do que ali se vê. Ali há a palavra, logo, há literatura.
Mas quero falar sobre Black Mirror.
Destaco em especial o terceiro episódio da primeira temporada. As relações humanas mais comuns faliram em razão do avanço tecnológico. Os aparelhos agora estão inseridos, não são adornos expostos, são internos. Essa invasão ampliou a capacidade do corpo, da memória, da ação, mas ao mesmo tempo fez ruir as relações de confiança, de companheirismo, de individualidade. Com tudo à mostra, registrado e com a possibilidade de ser visitado constantemente e exaustivamente analisado, não há mais a chance à mentira. Reféns da própria tecnologia, o que há de mais humano ruiu.
É uma obra de ficção científica. Ela se define pela ideia de uma sociedade que está a minutos da nossa. Perfeita definição. Se hoje, tão aficcionados nos aparelhinhos que mais servem a propósitos dos outros do que a nossos propósitos – expor-se a um outro, midiatizar nossa existência e mimetizar-nos ao ibope dos números, tudo pelo outro, pela plateia – mais cedo ou mais tarde estaremos vivendo a realidade que a obra propõe.
No entanto, como leitor que já fui de Admirável Mundo Novo, 1984, Laranja Mecânica, e que viu filmes de ficção científica com o afinco de fã que se vestiria como aqueles personagens, esta série traveste nossos sonhos em medo. Ela se adorna com nossas máscaras mais absurdas e as transforma numa caricatura pessimista de nossas possibilidades tecnológicas. Claro que ela extrapola, vai além do sonho real e possível um dia – como a de um céu escolhido por moribundos em San Junipero, na terceira temporada (importante parêntese, não estaria eu sendo ingênuo ao supor que isso nunca será possível?).
Em todo o instante que assisti à série, eu me vi chateado por não tê-la escrito. A liberdade em conceber a história, em saltá-la com tamanho gosto de doses especiais de crítica e observação me fizeram rever e imaginar uma aula. Professor que sou, eu já a fiz, com uma de minhas turmas de primeiro ano de uma escola de Macaé. Eles que me propuseram ver, com eles, em sala – final de ano, alunos querem tranquilidade – aceitei a oferta e vimos o primeiro episódio. Um primeiro-ministro inglês que fez sexo com um porco para salvar a princesa. Ali, mídia e opinião pública se misturaram de forma grotesca em torno da exposição e do heroísmo.
O segundo episódio, uma distopia escravocrata, uma metáfora para nós, brasileiros, que teremos de trabalhar mais para conquistar a liberdade da aposentadoria? Pode ser. Mas aí veio o terceiro. Eles também não haviam assistidos em suas casas. Por não terem gostado do segundo episódio– 15 milhões – eles descartaram a série. Eu continuei, insisti para o terceiro. Pancada. O roteirista daquele episódio foi feliz e preciso. A direção idem. Os atores são singulares, foram também precisos em suas atuações. Não irei seguir-me expondo o episódio, pois sugiro que o assista. Entretanto, a liberdade que observei – como entusiasta que sou – me fez refletir sobre o texto, a escrita e como não devemos nos prender a arquétipos, a suposições de união de palavras que podem ou não agradar.
Falo isso até em causa própria. Meu primeiro livro publicado tem um pouco disso, desse misto de liberdade e excesso – um acerto e um erro meu, espero que o tempo me perdoa ou me abrace. Em contraponto ao que agora escrevo há uma mudança, uma distinção. Ao momento, dedicando-me à escrita do segundo romance (segundo, porque julgo que ele será o segundo a ser terminado, há obviamente outros em concepção, mas que se deram uma pausa, ou eles deram uma pausa de mim), vejo como essa preocupação com a linguagem tem de ser inerente ao autor, à obra, mas que a liberdade deve ser a chave mestra ou a asa mestra da escrita.
Não encontraríamos uma série como Black Mirror em canais comuns de televisão. A textura da obra incomoda, não é para todos, não atende mesmo ao gosto coletivo já adestrado pela indústria cinematográfica. BM critica, incomoda, transtorna. Ela panca.
Liberdade na escrita tem de ter um pouco disso, ou isso tudo, não se ater a máscaras. É o que o autor quis sempre. Tudo. E se quiser pancar, tem de ter esse cacife, essa banca.
Texto bom é lido.
Texto fantástico panca.
O acaso da liberdade é que o transborda de coragem.