A vida é breve. Por isso, deve ser vivida com intensidade. Nisso, acreditavam os clássicos. Nisso, ainda acreditamos. Mas, no meio do caminho, há a inquietação do homem. A poesia de Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa, resgata essa visão clássica de que a vida é o que acontece hoje. Mas reproduz também a aflição do homem moderno, em luta constante para aceitar que as coisas (e a vida) tenham fim.
Reza a lenda que Ricardo Reis, um dos famosos heterônimos de Pessoa, teria nascido após uma discussão sobre os exageros da arte moderna, que teria dado ao poeta a ideia de desenvolver um neoclassicismo como uma espécie de reação ao exagerado subjetivismo da arte da época. Teria sido seu projeto pessoal para, através da imitação dos clássicos e com uma preocupação com a forma, diferenciar sua poesia dos românticos indisciplinados pela emoção e descompromissados em construir versos com maestria, elegância e limpeza na linguagem.
Assim, Ricardo Reis, entre os heterônimos mais famosos, foi o que copiou dos clássicos a métrica, a rima, e, muitas vezes, a própria sintaxe dos versos latinos. Sua poesia está relacionada a um ‘horacismo”, porque se aproxima esteticamente dos mesmos temas do poeta clássico Horácio: valorização de uma vida simples, vivida sem excesso e com equilíbrio, pinceladas de epicurismo. Reis foi, então, um (neo)clássico em pleno Modernismo.
Mas, diferente de Horácio, que foca seu olhar no presente, onde a vida acontece intensamente, com amor e alegrias, e precisa ser vivida de forma despreocupada, sem atrelar-se à idéia de futuro (quando se comprovará a finitude do homem), a serenidade de Reis soa como uma simulação, um disfarce para sua real preocupação: seu exercício de aceitação da morte, o destino involuntário de todo homem. Diz: “Nós somos o Tempo e nada mais”.
A diferença do projeto estético entre os dois é bem sutil, porque também a Horácio a fugacidade da vida atormenta. Mas ele escapa da angústia formando um encadeamento de ideias mais ou menos assim: se o amanhã é incerto e fatal, é inútil atormentar-se; melhor evitar que a angústia de saber-se mortal atrapalhe sua paz. Já Ricardo Reis fica mais preso a essa aflição e mais forte se evidencia sua preocupação com a idéia de que, mesmo que o homem lute com sua sabedoria, força e experiência contra a morte, ele a encontrará no destino comum a todos os homens e tudo o que plantou será deixado para trás.
Diz nestes versos, bem explicitamente: “Ah! Póstumo, os anos se escoam rápidos/E a piedade não adiará as rugas, a velhice iminente,/A indomável morte! (…) Um dia deixaremos a terra, o lar, a esposa amada./Nenhuma dessas árvores, que cultivastes, acompanhará/Seu senhor de um só dia, além dos odiosos ciprestes…” . Ao contrário do que, antes, Horácio escrevera: “Não procures investigar (é proibido sabê-lo qual o fim, Leucônoe,/que os deuses nos destinam (…)Enquanto falamos, foge/o temo invejoso: aproveita o momento presente, não creis no amanhã…”, deixando claro que seria perda de tempo focar no futuro, quando o compromisso em viver o presente é o que nos possibilitaria oportunidades de felicidade.
Homem moderno, preso ao fascínio pelo universo clássico, Ricardo Reis tem uma escrita elegante e traz à tona, de volta, o epicurismo nas imagens que cria em seus poemas e soa como um poeta originalmente clássico. Mas isso não consegue desviar-nos a atenção do desconsolo sempre latente que sente em saber-se mortal, o que se reflete na observação dos menores momentos da vida.
Eis os versos de “As rosas amo dos jardins de Adônis”: “As rosas amo dos jardins de Adônis,/Essas volucres amo, Lídia, rosas,/Que em dia em que nascem,/Em esse dia morrem./A luz para elas é eterna, porque/Nascem nascido já o sol, e acabam/Antes que Apolo deixe/o seu curso visível/Assim façamos nossa vida um dia,/Inscientes, Lídia, voluntariamente/que há noite antes e após/O pouco que duramos”.
Por mais que o foco de admiração do narrador esteja nas rosas, o que lhe atrai e fascina nelas é a brevidade que possuem. Por mais que convoque sua musa a viver como se também suas vidas só durassem um dia (de mãos dadas com o “carpe diem” clássico), ele o faz depois de uma elaboração acerca do destino comum a rosas e homens, porque sabe que o que os diferencia é só a lucidez ou não acerca do fim.
As rosas são ainda mais fugazes do que ele. Nascem e morrem num mesmo dia, cercadas de luz. O que lhes dê, talvez, a sensação de que são eternas é o fato de morrerem antes que percebam isso.
Já o narrador tem a consciência, durante todo o tempo em que as observa, do curto tempo que durará suas vidas e de que elas morrerão antes que o sol se ponha. E ele tem a consciência de que os homens, assim como as rosas, também possuem uma existência breve. Por isso, chama sua musa a viver como se também durassem um só dia, porque sabe que a morte está a espreitá-los.
A morte é certeza absoluta. Para ele, como para os clássicos, urge-se viver o presente de forma sábia, tirando-se dele toda a felicidade possível, sem preocupar-se com o futuro, afastando-se da mente as ansiedades que surgem de sabermo-nos mortais. A tênue diferença é que Ricardo Reis não consegue desligar seus pensamentos da morte, não se resigna e relaciona-se de forma constante (para não dizer “obcecada”) com a expectativa de sua ocorrência.
Fernando Pessoa, através de Ricardo Reis, tenta resgatar não só um purismo e um capricho estético, mas uma leveza também de sentimentos do homem em relação à vida e ao compromisso com sua felicidade. No entanto, homem do século XX, o mundo e as inquietações que o cercavam, separam-no por muitos séculos dos poetas clássicos e da visão de mundo que tinham.
Especialmente Pessoa, como artista, criou muitos caminhos e muitas vozes para cantar os vários ângulos da vida moderna que o inquietavam. Se através Ricardo Reis escolheu tentar uma conexão com a escrita clássica, através de Álvaro de Campos, por exemplo, exaltou a modernidade. Toda a poesia dos heterônimos e do próprio ortônimo soam, talvez, como tentativas de criarem-se e também de encontrarem-se opções para a manifestação pura do sentimento do homem moderno que avançou social e tecnologicamente, que possui uma expectativa de vida maior e adquiriu mais conhecimento mas, ainda assim, não domou o tempo nem a morte e, muitas das vezes, não doma sequer suas angústias.
No século seguinte, esse homem ainda vive por aí, talvez ainda busque respostas ou soluções para estancar suas aflições e ainda precise ouvir “viva o presente!”. Quantos textos encontramos nesse sentido, não só de grandes pensadores, mas até nas mensagens mais ralas das redes sociais? Alimentam-nos a coragem para romper com as armadilhas da sociedade atual que nos prende a cada vez mais compromissos que reduzem muito o tempo dedicado a viver as experiências que, de fato, nos fazem felizes. A aceitação desses textos nos sugere que, por mais que tenhamos evoluído em vários sentidos, ainda não aprendemos a lição clássica de “aproveitar o dia” com a pureza e o desprendimento necessário, nem encontramos um jeito simples de sermos felizes. Como Ricardo Reis, não nos conformamos com nossa finitude e possuímos um pequeno sentimento decadente em relação à vida – sabemos a vida pela qual deveríamos optar mas aquilo que nos assombra, a noite após o que duramos, impede que a vivamos com os corações desarmados.
Nós passamos Ricardo Reis a limpo. E, ainda assim, nossos rascunhos se assemelham. Inconscientemente, ainda dizemos: “Nós somos o Tempo e nada mais”. E a poesia de Pessoa continua alcançando o que há de mais íntimo em nós.
(Referências pra conhecer mais sobre Pessoa: "Estudos sobre Fernando Pessoa", de Georg Rundolf Lind, e "Pessoa Revisitado", de Eduardo Lourenço).