Mitologias pelo mundo, além da grega: a história de todos nós – parte VI: conheça as mitologias Hitita e Frígia

Não foi o conflito de opiniões que tornou a História tão violenta, mas sim, a fé nas convicções.

Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), filósofo, filógogo e poeta alemão

Na primeira parte deste longo artigo, situamos o contexto histórico e algumas questões filosóficas, por assim dizer, sobre os quais as mitologias pelo mundo, de um modo geral, foram edificadas. Na segunda parte, a temática versou sobre a mitologia grega, talvez uma das mais famosas em todo mundo. Na terceira parte, mergulhamos em passagens mitológicas da nossa terrinha tupiniquim, com histórias dos povos originários e dos negros africanos que foram, indignamente, escravizados e trazidos para o Brasil. Na quarta parte, começamos, efetivamente, digamos deste modo, a passear pelas mitologias de vários povos, iniciando, este passeio, pela nossa América Latina, com históricas dos povos pré-colombianos e mesoamericanos. Na quinta parte, regressaremos para a Europa, com partes de histórias que, também, muito influenciaram a nossa cultura brasileira, até porque, mantiveram forte relação com a cultura da Grécia Antiga, no caso da mitologia romana, ou que nos fascinam sobremaneira, até os dias atuais, como a egípcia. Nesta sexta parte, falaremos, brevemente, sobre dois povos um tanto menos conhecidos dos que os gregos, os romanos e os egípcios, mas que com eles mantiveram profundas relações culturais e, especialmente, conflituosas, os frígios e o hititas. Estes últimos, com destaque especial para as várias guerras travadas com os egípcios. A despeito do espírito guerreiro, suas mitologias também são capazes de nos encantar. Continuemos, pois, nossa viagem encantada pelo mundo antigo e suas belas histórias.

Mitologia Hitita

O Império Hitita, cujas origens remontam, segundo pesquisadores, aos antigos causasianos e de etnia indo-europeia, localizava-se, basicamente, na Ásia Menor. Na antiguidade, os Hititas apresentavam-se, segundo pesquisas histórias e demográficas, com uma população escassa e dispersa, e realizavam uma agropecuária com terras menos férteis do que as irrigadas pelo Rio Nilo ou do que as irrigadas pelos Rios Tigres e Eufrates, onde hoje é o Iraque, mas ainda assim, realizavam intenso comércio com o Oriente Médio (ou Próximo, para alguns), sendo pioneiros na metalurgia do ferro. Os Hititas viveram o seu auge por volta de 1.600-1.100 a.C. Supõe-se que, em aproximadamente 1.525 a.C., o rei Telepinush estabeleceu sua sucessão dinástica e consolidou a monarquia na cultura deste povo. A maior expansão do Império Hitita se deu em aproximadamente 1.380-1.340 a.C., sob o reinado de Shuppiluliumash I, que estabeleceu sua capital em Hattusha. Contudo, mesmo sob seu comando, e de outros imperadores posteriores, o sucesso deste Império foi reduzido no tempo e na Ásia Menor e não se consolidou politicamente. Muito pelas sucessivas, custosas e nem sempre vitoriosas guerra com seus arqui-rivais, os Egípcios, como, por exemplo, na famosa Batalha de Kadesh, ocorrida em 1.274 a.C. quando esses dois povos disputaram, ferrenhamente, o controle desta região que, posteriormente, ficou conhecida como Síria. A vitória foi egípcia, sob o comando do não menos famoso faraó Ramsés II e, até onde se sabe, houve, ao final, um acordo entre Egípcios e Hititas, documento que, para muitos pesquisadores, representa o primeiro grande tratado internacional de paz entre duas nações adversárias.

A região onde viveram os Hititas, a Ásia Menor ou Península da Anatólia, área hoje pertencente à Armênia ou Curdistão e à Turquia, era (e é) uma grande península à Noroeste do Oriente Médio entre a Ásia e a Europa, limitada, ao Norte, pelo Mar Negro; ao Sul, pelo Mar Mediterrâneo; à Oeste, o Mar Egeu e à Leste, pelo Irã, pela Armênia e pela Geórgia, na parte européia, e pelo Azerbeijão, na parte aisática. A área apresenta relevo acidentado, com algumas cordilheiras e muitos vales férteis e bacias hidrográficas. É a região onde, também, de modo contíguo, pode ser observada a área conhecida por Cáucaso, localizada no extremo oriental da Europa e no extremo ocidental da Ásia, unindo ambos os continentes, abrangendo, igualmente, o Mar Cáspio. Península, que significa “quase ilha”, é uma porção de terra ligada a massa territorial maior, um continente, por um filete de terra chamado “Istmo”.  Uma dessas mencionadas cordilheiras é, justamente, chamada de Cáucaso, uma região, como dito acima, que divide a Europa Oriental e a Ásia Ocidental. Quanto à etnia indo-européia, temos, para melhor esclarecer, que os povos indo-europeus foram aqueles que se constituíram como a mistura entre habitantes do que, já de há séculos, conhecemos como Europa (especificamente, a do Sul e Oriental, como os antigos espartanos, os atenienses, os tebanos, os dórios, os jônios, os aqueus e o eólios), Ásia Central (como a Índia) e Ásia Menor (como os próprios habitantes do Cáucaso, propriamente ditos).

Escritura Hitita

Bem, em meados do século XIII a.C., o Império Hitita entrou em decadência devido aos vários  problemas externos e internos pelos quais passaram, como as guerras com o que chamaram de “povos do mar”, como a guerra há pouco citada, contra os Egípcios. A cultura hitita continuou existindo, mas o Império chegou ao fim. O rei, como na Mesopotâmia (palavra que, na origem, quer dizer “entre dois rios”), tida como “berço da civilização mundial”, e no Egito, tinha o papel de sumo sacerdote, mediador entre os homens e os deuses. Em contraste com os Egípcios e os Mesopotâmicos, contudo, a divindade Hitita só era conferida ao monarca após sua morte. Também desempenhava, o rei, o papel de legislador e juiz. Mas diferente das outras duas civilizações citadas, como não era um “deus” em vida, o rei não era idealizado como grande atleta, caçador, construtor, guerreiro ou outras qualificações normalmente atribuídas aos heróis ou aos deuses (ao menos, não por natureza e princípio).

A religião Hitita era complexa, formada pelos deuses de várias partes da Ásia Menor e de localidades como a Síria, hoje em dia, recebendo influências, como dito, da Mesopotâmia e de outros países conquistados. Outra vez mais, ao contrário de outras civilizações imperiais que lhe foram contemporâneas, os Hititas não incentivavam o sincretismo religioso e tinham uma visão negativa do homem, achando que todos eram pecadores e culpavam os males do mundo pela insatisfação dos deuses.

Embora fortemente influenciada pela mitologia mesopotâmica, a religião dos Hititas tem elementos claramente indo-europeus, como, por exemplo, a crença em Tarunte, Deus do Trovão (sempre tem um!), e seu conflito com a serpente Illuyanka (outro ser que, vez por outra, aparece em alguma mitologia, de algum povo), que se assemelha, entre outras coisas, ao conflito entre Indra e a serpente Vrtra, cuja origem remonta à mitologias ainda mais antigas. Tarunte tinha um filho, Telepinu, e uma filha, Inara. São deuses, até hoje, venerados por habitantes locais em um festival da primavera chamado PuruliIshara é a Deusa do Juramento.  Kumarbi é o pai de Tarunte, e seu papel, descrito na mitológica “Canção de Kumarbi” lembra a história de Cronos na Teogonia, do filósofo e poeta grego Hesíodo (que viveu em data incerta no século VIII a.C.). Ullikummi era um monstro de pedra, filho de Kumarbi, reminiscente de Tifão, um dos Titãs originais da mitologia grega (como visto na parte II deste longo artigo).

O Deus do Clima e do Relâmpago (mais um!), Piassassa, pode ter sido a origem do Pégaso grego. Descrições de animais híbridos, como Hipogrifos e Quimeras (ver, na parte II, também, as descrições dessas criaturas mitológicas), são típicas da arte anatólica do período. A cidade de Arinna, cuja localização ainda está por ser determinada com exatidão, era tida como provável centro do culto daquele povo, seguramente era o principal centro dedicado à principal deusa solar dos Hititas, conhecida como “Deusa do sol de Arinna“.

 

Mitologia Frígia

A Deusa Cibele. Monumento em Madrid.

Os Frígios constituíram-se como um povo procedente dos Balcãs e se estabeleceram nos arredores de Ancara (hoje Turquia) depois que o Império Hitita se enfraqueceu por causa de ataques das nações marítimas em 1.200 a.C., conforme visto há pouco, e começaram a expandir rapidamente suas terras. A antiga cidade de Gordion a cerca de 100 km de Ancara foi convertida em capital pelo rei Górdio. Os Frígios tinham um alfabeto semelhante ao grego e adoravam Cibele, Deusa da “Mãe Terra”; eles acreditavam que os túmulos em forma de porta nas rochas, se abriam para a vida futura. A península balcânica, acima mencionada, é uma região européia historicamente conflituosa e é composta pelos seguintes países: Grécia, Albânia, Macedônia, Bulgária, Turquia (parte européia), Romênia, Sérvia, Kosovo, Montenegro, Bósnia e Hezergovina e Croácia (esses seis últimos compuseram a antiga Iugoslávia, que se desfez na esteira da extinção da antiga União Soviética).

A sociedade frígia era, segundo estudiosos, desenvolvida em termos de tecnologia e nos fundamentos econômicos, já entre os séculos IX e VIII a.C.; o comércio, interno e com outros povos, era intenso. A fíbula (alfinete ou fivela; também é o nome do osso externo da perna), por exemplo, que incluía todos os tipos de peças metálicas utilizadas na antiguidade para ligar ou manter algumas das peças compõem alguns vestidos (até os dias atuais), foi descoberta pelos frígios. Não desprezemos as coisas simples da vida! Os Frígios compravam matéria-prima e vendiam produtos artesanais, já então, antecipando, de algum modo, o que, na Era das Grandes Navegações européias, foi chamado de Pacto Colonial. Ter estes (e outros) produtos frígios era considerado um sinal de prestígio, para alguns povos, notadamente, para os nobres locais. O rei Górdio, pai de Midas, veio desta aldeia.

Havia uma profecia, um mito, de que seria rei, a primeira pessoa que chegasse em um carro de bois na cidade, na manhã seguinte após a morte do monarca do país. Górdio foi essa pessoa; quando ele chegou à cidade e foi surpreendido com a alegria pelo povo e escolhido como rei. Em seguida, a carroça foi dedicada a Zeus e colocada na frente do templo construído por ele, amarrando-a com o, hoje famoso, “nó górdio”. Segundo a lenda, aquele que cortasse o nó dominaria o mundo. Alexandre, o Grande, diz o mito, chegou a Gordion durante a guerra contra os Persas e, olhando para o nó, teria pegado sua espada e o cortado; continuando sua jornada ao leste, foi para a Índia e dominou o mundo então conhecido pelos povos europeus e asiáticos.

Imagem do Rei Midas, uma figura lendária famosa pelo “toque de ouro” – a habilidade de transformar tudo o que tocava em ouro.

A subida de Midas ao trono, diz a lenda, coincidiu com a época auge da dinastia frígia. Lendas sobre Midas foram difundidas pelo mundo. A mais famosa delas é que ele tinha o poder de transformar em ouro tudo o que tocasse. Midas, em um concurso de música, gostou da flauta de e a teria preferido, ao invés da música de Apolo. O Deus ficou tão furioso com o que chamou de falta de conhecimento sobre o seu talento musical, que transformou as orelhas do Rei em orelhas de burro. Midas, envergonhado por esse fato, passou, a partir de então, a cobrir a cabeça com a mantilha tradicional da Frígia. Apenas seu barbeiro sabia sobre sua deformidade e era obrigado a manter sigilo, mas o peso da promessa era tal que ele não pode resistir e fazendo um buraco no chão, sussurrou: “Midas tem orelhas de burro”. O Rei implorou a Apolo para transformar de volta suas orelhas e ofereceu à divindade toda a sua riqueza. Com a recusa, Midas teria tentado suicidar bebendo sangue de touro. Para o funeral, vieram convidados de todo o país. Na cerimônia fúnebre, diz a lenda, foi oferecido um grande jantar e amostras de alimentos e bebidas foram colocados ao lado do túmulo dentro de copos de cobre. Arqueólogos teriam descoberto o menu de uma festa graças a estes copos. Através deles, teria sido descoberto que arroz com lentilhas e vinho de mel teriam sido servidos. É aquela História, talvez: quase todo mito tem seu fundo de verdade. Será? Quem sabe?

Outro mito sobre Midas relata seu “toque de ouro”. Um dia, Sileno, amigo do Deus (grego) Dionísio (chamado pelos romanos de Baco), adormeceu no jardim de rosas do Rei Midas. Na manhã seguinte os jardineiros o teriam achado e depois de uma semana como hóspede do Rei, Sileno regressou a Dionísio. Diante da alegria com o retorno de seu amigo, o deus ofereceu a Midas a possibilidade dele satisfazer qualquer desejo que tivesse, como recompensa por cuidar de Sileno. O rei pediu o poder de transformar em ouro tudo o que tocasse, mas ficou impedido de comer porque a comida que tocasse se transformava em ouro; não podia beber, porque a água se transformava em ouro; não podia encontrar em ninguém, que a pessoa se transformava em outro. Assim, Midas rezou a Dionísio para livrá-lo desta situação. O deus respondeu a Midas: “Vá para a montanha e busque um rio chamado Pactolus. Mergulhe sua cabeça na sua fonte e a lave com água”. Quando Midas colocou sua cabeça sob a fonte do rio, a maldição o deixou instantaneamente. Ouro ainda hoje é extraído neste rio e, dizem, a origem é, justamente, resquício do poder do rei aqui relatado. O túmulo de madeira, que se supõe ser do Rei Midas é o mais antigo edifício de madeira do mundo. Ao lado do túmulo se encontra o museu de Gordion. Centenas de mesas de madeira e outros materiais deste, que se supõe ser o túmulo do Rei Midas, estão expostos no Museu das Civilizações da Anatólia, em Ancara.

 

 

Carlos Fernando Galvão,
Geógrafo, Doutor em Ciências Sociais e Pós Doutor em Geografia Humana


cfgalvao@terra.com.br

@cfgalvao54

 

 

Bibliografia de consulta e sugerida para aprofundamento

  • LEHMANN, Johannes. Os Hititas – o povo dos 1.000 deuses. Rio de Janeiro: Editora Hemus, 2000

 

 

 

 

Author

Carlos Fernando Galvão é carioca, Bacharel e Licenciado em Geografia (UFF), Especialista em Gestão Escolar (UFJF), Mestre em Ciência da Informação (UFRJ/CNPq), Doutor em Ciências Sociais (UERJ) e Pós Doutor em Geografia Humana (UFF). Autor de mais de 160 artigos, entre textos científicos e jornalísticos, tendo escrito para periódicos como O Globo, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e Le Monde Diplomatique Brasil, também foi colaborador do Portal Acadêmico da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) entre 2015 e 2018. Atualmente, escreve com alguma regularidade no Portal ArteCult. É autor, igualmente, de 14 livros.

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