Impressiona-me a cada dia com o Brasil de hoje, que tem sido desvendado ou desnudado celeremente, a história que nos chegam, que no passado não chegaram, não para mim enquanto estudante do ensino médio na época.
A cada dia temos novas informações, de todos os lados, em todas as áreas, e isso me faz feliz, mostra que temos chances de sermos mais reparadores.
No último vinte e um de junho, no IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros, a instituição jurídica mais antiga das Américas), localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro, o artista Deo Garcez recebeu a medalha Luiz Gama.
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Deo Garcez. Foto: Divulgação
Mas não foi só isso, ele interpretou Luiz Gama ao receber uma honra do Instituto, uma solenidade belíssima, onde às artes cênicas nos presenteou com a oportunidade de assistirmos uma justa reparação.
Conheci o artista através da novela Escrava Isaura, que era transmitida na Rede Record. Ele interpretava o personagem André, que além de apaixonada por Isaura, a protagonista, foi um amigo fiel e lutava pelos negros durante a escravidão. Não nego que criei pelo artista um carinho imenso durante a teledramaturgia, jamais imaginaria que um dia eu teria qualquer aproximação do meu André ou Deo Garcez. Jamais imaginaria também que Deo tinha tanta nobreza quanto o personagem da TV. Para minha sorte, em uma noite de sábado fui assistir ao espetáculo “Luiz Gama a Voz da Liberdade” no teatro municipal Café Pequeno no Leblon, e lá estava o André ou Deo, mais que isso, muito mais que isso, pois mais uma vez Deo me apresentou outro personagem, mas agora esse era um abolicionista de verdade, Luiz Gama.
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Luiz Gama e Nivia Helen em Uma Voz pela Liberdade
“Nascido de mãe negra livre e pai branco, foi contudo feito escravo aos 10 anos, e permaneceu analfabeto até os 17 anos de idade. Conquistou judicialmente a própria liberdade e passou a atuar na advocacia em prol dos cativos, sendo já aos 29 anos autor consagrado e considerado “o maior abolicionista do Brasil””.
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Deo Garcez. Foto: Divulgação
Lembro bem do espetáculo, e assim Deo entrou no Instituto representando o rábula, na época, hoje reconhecido advogado pela OAB. “Segundo o presidente do Instituto, Luiz Gama reuniu em vida todos os requisitos necessários para fazer parte da Casa de Montezuma.”
Faz quase uma década que o ator vem mostrando para o Brasil este brasileiro. Escola de samba, escolas de ensino, teatros e através desse trabalho incansável, Deo conseguiu que os holofotes virassem para Luiz Gama. Foi uma bela homenagem para ambos. Deo após ler o compromisso de posse do IAB e ingressar na Comissão de Igualdade Racial, declarou: “Aceito com orgulho essa posse, pois nunca é tarde para se reparar. Mas a escravidão deixa sequelas terríveis e dolorosas que perduram até hoje. A luta continua porque a luta pelo direito à igualdade é permanente”
Sei que estamos caminhando na direção certa, hoje sabemos mais sobre Maria Felipa, a marisqueira que queimou 40 navios durante a Independência da Bahia e Estevão Silva.
Não da mais para ignorar nomes como Estevão Silva, artista plástico, o precursor do modernismo no Brasil, sei que ainda não está escrito nos livros, apenas reconhecemos Tarsila e muito mal, Anita Malfatti. Estevão Silva é outro negro que merece também estar nos livros de história, de preferência antes de mencionar A Semana de Arte Moderna, respeitando a cronologia.
Como professor, Silva lecionou no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro. Na década de 1880, ligou-se ao Grupo Grimm, identificando-se com a proposta inovadora de seus membros à época: o estudo da natureza através da observação direta e a pintura ao ar livre.
O pavilhão do Brasil na Exposição Universal em Paris em 1889, incluiu uma galeria de arte. Por iniciativa do empresário paulista Antônio Prado (1840-1929), pai de Paulo Prado (1869-1943), o “mecenas” da Semana de Arte Moderna, 17 artistas expuseram 59 obras, entre retratos, paisagens e naturezas-mortas.
Dessas 59 obras, 26 pertenciam a um único artista: Estevão Roberto da Silva. Ou, simplesmente, Estevão da Silva, o pintor negro com fama de rebelde que, uma década antes, recusara o prêmio e ficara famoso por retratar naturezas-mortas com frutas brasileiras, como mangas, ananás, cajus, carambolas, laranjas, uvas e romãs.
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Estevão Silva, obra de Pereira Netto (século XIX) – Acervo do Museu Afro Brasil (São Paulo, SP)
Se por um lado tivemos o atraso das informações, do outro, estamos vendo uma onda de grandes nomes invisibilizados vindo a tona, e o teatro não quis ficar de fora. Temos nomes como Solano Trindade, Luiza Mahin (mãe de Luiz Gama) e Carolina Maria de Jesus, ambas interpretadas pela artista de imensa representatividade Cida Moreno, que também estava no Instituto quando o artista Deo recebeu a medalha, mesmo que um dia os historiadores tentaram economizar em palavras nos livros didáticos, Molière parece ressuscitado nos aristas brasileiros, e eles gritam para os quatro cantos histórias encobertas.
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Deo Garcez em Luiz Gama (foto: Vivian Fernandez)
O espetáculo “Luiz Gama – Uma Voz pela Liberdade” é lindo, evidencia a vida dolorida do advogado, que foi vendido pelo próprio pai branco, a incansável busca pela mãe, da amizade dele com Raul Pompeia, é um mergulho tão bem feito que nos deixamos levar pela história que nos foi negada e passamos a entender sobre a insanidade do racismo estrutural do país.
Sou grata por esses artistas, sou grata porque através deles entendo mais desse miscigenação linda o qual é o povo brasileiro, que acima de qualquer outra tentativa de invisibilizar alguns brasileiros, ainda há a essência da justiça em nosso meio.
Parabéns ao Instituto e aos artistas incansáveis na busca das verdades.
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Paty Lopes (@arteriaingressos). Foto: Divulgação.
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