Às quartas – Língua e tecnologia

Sabemos que o uso comum pelo falante consagra vocábulos e expressões do idioma. Da mesma forma, faz com que outros sejam substituídos ou modificados. Sabemos, também, que neologismos, muitas vezes, nascem na incorporação de expressões ou palavras de outros idiomas, desde sempre.

Com a Internet, a popularização de expressões estrangeiras se dá de forma ainda mais natural entre nós. É fácil, por exemplo, encontrar quem chame de “email” seu endereço eletrônico ou de “site” o sítio de uma empresa. Da mesma forma, o uso do verbo “resetar” é mais comum do que “apagar”, em muitos casos.

Pensando na tecnologia de hoje e em como influencia nossa língua, pensei na tecnologia do passado.

Lembrei-me de uma história pessoal. Meu filho, quando pequeno, era muito tagarela. De vez em quando, brincando, eu lhe dizia: “você parece uma vitrolinha quebrada”. Um dia, ele me perguntou, curioso: “mãe, o que é uma vitrolinha?”. Foi então que me dei conta que vitrola e vitrolinha eram referências antigas da minha infância nos anos 70 e que ele, na época, não tinha visto um desses aparelhos. Assistindo a um desenho antigo na tevê, dias depois, apareceu uma vitrola tocando de forma bem barulhenta e eu a mostrei para ele. Rimos juntos, quando ele, plenamente, entendeu a metáfora.  Ao contar essa história a uma amiga, ela se lembrou de sua mãe dizer do irmão: “vacinado com agulha de vitrola“. A mesma ideia de tagarelice, com metáfora construída a partir do mesmo objeto: a vitrola.

Diferente da abordagem do artigo “Etimologia, Sociedade, Desconhecimento e Preconceito” , em que se tratou de novos olhares sociais sobre expressões antigas, essa história da vitrola me fez pensar em expressões que se perpetuam mesmo quando o objeto da metáfora ou associação envelheceu diante da tecnologia atual. Somos capazes de associar à origem de algumas expressões os recursos tecnológicos existentes num passado, que se encontram, agora, obsoletos?

Uma expressão dos nossos dias é “instagramável“. Se uma foto é “instagramável” significa dizer que é bonita de uma forma perfeita, digna de ser publicada numa página do Instagram. Por enquanto, é gíria. Será que virará verbete? E, virando, sobreviverá caso a rede social se torne menos popular no futuro?

Como exemplo, além das expressões acima, separei mais dez expressões associadas à tecnologia:

1. Cair a ficha – Em tempos de celular, quem se lembra dos orelhões? Orelhões eram telefones públicos, em que se faziam ligações, após a inserção de uma ficha de metal. Quando ouvíamos o barulho da ficha caindo no interior do aparelho, tínhamos linha para discagem e alguns minutos de ligação. Os minutos se renovavam com a inserção de uma nova ficha, se quiséssemos prosseguir a conversa. Tempos depois, as fichas foram substituídas por cartões telefônicos. E, hoje, os raríssimos orelhões que se encontram pela cidade fazem ligações gratuitas, sem cartões nem fichas (no Rio de Janeiro, pelo menos). Por analogia, “cair a ficha” é o momento em que se faz a conexão, em que uma pessoa entende finalmente a situação e o contexto em que está inserida, dando sentido ao que está vivendo. A expressão ainda é popular mas a tecnologia, ultrapassada.

2. Passar um fax – Há várias expressões nascidas na telefonia que caíram em desuso com o avanço da tecnologia telefônica. “Passar um fax” é uma expressão popular, usada como eufemismo para “defecar”. A explicação da analogia é desnecessária, bem intuitiva. Mas a questão aqui é quem, nos dias atuais, tem como banal o uso do fax, quando se enviam arquivos em PDFs pelo celular e até documentos oficiais podem ser acessados e abertos na tela do aparelho? Daqui a uns anos, novas gerações usarão esse termo?

3. Bater um fio – Duas coisas envelheceram: tanto a tecnologia quanto a cultura do telefonema. Na época em que telefones possuíam fios ligados a uma base (anterior aos telefones sem fio), “bater um fio” era a promessa de fazer uma ligação, continuar a conversa por telefone num momento posterior. Além de não associarmos mais telefones a fios com frequência, a facilidade da troca de mensagens e áudios pelos aplicativos existentes (WhatsApp, Telegram etc) tornou o próprio gesto de telefonar menos comum; só em situações específicas, a conversa se dá através de uma ligação telefônica. Será que poderíamos dizer que “bater um fio” virou o novo “me manda um zap”?

4. Discar – Além de fios, os telefones fixos possuíam discos. Muito antes da tela “touchscreen”, girávamos, um a um, os discos do número do telefone para fazer uma ligação. Por isso, no dicionário, “discar” significa “ligar” ou “telefonar”.  Curioso que os discos foram substituídos por teclas, a serem pressionadas para o mesmo objetivo. Mas “teclar” nunca significou “telefonar” e, sim, “digitar” (as teclas de um computador, por exemplo).

Foto de @czermak_photography no Unsplash.com

5. Quem tem boca, vai a Roma – Esse é um ditado popular. Já ouvi dizer que o ditado original seria “Quem tem boca, vaia Roma”, numa alusão às críticas aos imperadores romanos da antiguidade. Nada disso tem comprovação, constituindo mais uma das muitas falsas etimologias que rodam a internet. A expressão popularizada entre nós e registrada em dicionários do Brasil e de Portugal é “Quem tem boca, vai a Roma”. Significa dizer que uma pessoa pró-ativa, com sua curiosidade e desembaraço, chega a qualquer lugar do mundo. Mesmo nos dias atuais, com Aplicativos de Tradução e GPS, ainda se aplica. Será que, em algum momento, estaria condenada ao desuso?

 

6. Passar o carro na frente dos bois – Muito antes dos veículos motorizados, havia o carro de boi, um meio de transporte primitivo, puxado por bois, usado para carregar cargas ou pessoas. Ainda hoje, no Brasil, em meios rurais é utilizado. Dizer que o carro está na frente dos bois significa dizer que algo foi atropelado, precipitado, está desorganizado e, por isso, não funcionou. Isso porque sem os animais estarem à frente do veículo, não é possível a movimentação do carro.

7. Virar o disco –  As antigas vitrolas de que falamos no início tocavam discos de vinis. As faixas do álbum do artista ficavam gravadas nos dois lados do disco. Virava-se o disco para ouvir-se as músicas restantes, as que estavam gravadas no outro lado. Por analogia, “virar o disco” é mudar de assunto, introduzindo um novo assunto tema na conversa.

8. Queimar o filme – Muito antes das câmeras dos “smartphones” ou das máquinas digitais, as máquinas fotográficas precisavam do uso de filme de rolo para o registro das fotografias. O filme era posto na câmera e o compartimento fechado, garantindo-se a vedação de luz. O mau uso da câmera ou a abertura acidental do compartimento em que estava o filme, poderia estragar todo o rolo de fotos. Literalmente, as fotos saiam queimadas pela luz que entrou, nada se aproveitava.  Por analogia, quando dizemos que alguém queimou nosso filme, esse alguém não deixou nada sobre nós que se pudesse aproveitar, ou seja, acabou com nossa reputação ou com nossa chance de causar uma boa impressão.

Foto de Tania Dimas on Pixabay

9. Pelo andar da carruagem –  Havia um provérbio antigo: “Pelo andar da carruagem, se conhece quem vai dentro”. Tanto a carruagem quanto o número de cavalos que a puxavam, no século XIX, eram indícios de riqueza ou não. Assim, acredita-se, o provérbio faria alusão ao nível social ou à qualidade de uma determinada pessoa. O foco era o sujeito dentro da carruagem, digamos assim. Mas o uso constante e a capacidade de síntese do falante (e de transformação da língua) acabou tornando o provérbio menos usado do que a expressão que o introduzia – “pelo andar da carruagem” – que sobreviveu, independente. Mesmo após, nas ruas, as carruagens serem substituídas pelos veículos automotores. Hoje em dia, significa, apenas, “do jeito que as coisas vão…” . Pelo andar da carruagem, mesmo quando chegarem os carros autônomos do futuro, a expressão ainda existirá.

 

10. Não valer um tostão furado – Bem, essa não é uma expressão nascida no seio da tecnologia e, sim, da economia. No entanto, considerando-se a existência de criptomoedas, como o bitcoin, peguei uma carona no tema deste artigo. O tostão era uma moeda de prata portuguesa, que valia 100 réis. Um tostão furado seria uma moeda sem valor. Ter um tostão furado era um pleonasmo para dizer-se que a pessoa não tinha dinheiro nem qualquer bem. Estendendo o significado da expressão, se alguém não vale um tostão furado, essa pessoa não vale nada.

Muitas expressões do idioma sobrevivem sem que nos atentemos para a origem delas. Algumas, até, se distanciam do sentido original após muitos anos.  E vocês, lembram-se de mais alguma expressão da nossa língua, que se refira a uma tecnologia ultrapassada atualmente, mesmo que a expressão ainda seja usada? Conte para nós. Adoramos conversar sobre língua e literatura.

 

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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