A PROSA DO ROSA, SEGUNDO HAROLDO, CORA E MANOEL
Por Luís Turiba
Ler o Grande sertão: veredas, romance fundamental da literatura brasileira escrito pelo mineiro-diplomata João Guimarães Rosa, é prazer desafiante para quem ama, degusta e se deleita com a linguagem de invenção e excelência textual que ele, livro, apresenta.
O poeta concreto-erudito Haroldo de Campos afirma que Rosa criou com sua linguagem, um “barroco mulato contemporâneo em um sertão metafísico e mitológico”. Ou seja, o “Grande Sertão” interessa em especial a quem deseja enfrentar o “difícil” na sua travessia para um amadurecimento literário, humano e cósmico. Por ser uma história cuja gênese tem um pacto com o demo, segundo o próprio autor em conversa com Haroldo, o romance se tornou uma obra universal, com traduções e destaque em inúmeros idiomas. Na dúvida, leia nas entrelinhas o primeiro parágrafo.
No meu entender (e experiência), estamos focando nosso olhar em uma obra imensurável a ser enfrentada por quem tem pretensões nas áreas literárias, poéticas, culturais e ecológicas. Fazer ou não fazer “a travessia” do Sertão, eis a questão! Escolhi fazê-la.
O livro foi lançado em 1956 pela Livraria José Olympio e, até os dias atuais, continua ganhando novas interpretações e assim recriando velhas polêmicas com novas releituras no teatro, na dança, na TV e no cinema.
Recentemente, com o lançamento do filme Grande Sertão, estrelado por Caio Blat e Luisa Arraes e dirigido por Guel Arraes, a obra voltou a causar um certo frisson entre os puristas “roseanos”, que o consideraram uma espécie de “videoclipe” musical distante da realidade do sertão profundo. O palco dos conflitos e guerras entre os jagunços foi trocado por favelas urbanas, onde quadrilhas, milícias e bandos que atuam nas grandes cidades brasileiras exercem seus podres poderes.
“Numa grande comunidade da periferia chamada “Grande Sertão”, a luta entre policiais e bandidos assume ares de guerra urbana e traz à tona questões como lealdade, vida, morte, amor, coragem, Deus e o diabo, diz a sinopse do filme.
Fomos assistir, Rose e eu, a Caio Blat e Luisa Arraes na telona. Antes, eu já havia aplaudido as apresentações teatrais de ambos quando a peça lotou o CCBB no Rio. Diante do nosso espanto, deixei o cinema totalmente impactado com as novas soluções cenográficas e lances audiovisuais avançados na área da comunicação. A essência do texto “roseano”, porém, continuou viva, desafiadora e humana, com todos os seus desafios respondidos à altura.
Enfrentei minha travessia livresca do Grande sertão: veredas antes de completar 30 anos. Era um jovem jornalista profissional e trabalhava em três diferentes frentes em Brasília. Na editoria de Economia, cobria os grandes projetos de mineração na Amazônia durante o governo militar, como por exemplo, o formigueiro de Serra Pelada. Na área Política, acompanhei a campanha das Diretas Já e, posteriormente, a eleição de Tancredo Neves para a presidência da República pelo Colégio Eleitoral.
Na Área Cultural, o editor-geral do Jornal de Brasília na época, o conhecido jornalista Oliveira Bastos, era amigo pessoal do presidente José Sarney, que fora empossado no lugar do Tancredo, internado na véspera da posse. Tancredo faleceu após passar mais de um mês em tratamento em vários hospitais. O Bastos também era amigo do acadêmico Ferreira Gullar e dos irmãos Campos. Daí, tinha um pé na poesia.
Na época, aproveitei a passagem da poeta Cora Coralina por Brasília e fiz com ela um longo depoimento, publicado em cinco páginas por cinco dias seguidos no JBr. A certa altura de nossa conversa, Cora, curiosa, me perguntou:
– Você já leu o Grande sertão: veredas? Sua pergunta era também um teste, um desafio. Envergonhado, lhe respondi que não. E expliquei:
– Tentar, até tentei. Mas a linguagem é muito complexa, e desisti na terceira página.
Cora, então, com quase 90 anos, não se corou e me desafiou:
– Posso te ensinar a ler e entender bem a linguagem de Guimarães Rosa. É um momento literário mágico. Topa?
Perguntei como, e ela me explicou:
– O livro tem umas 400 páginas. Coloque ele à sua frente e se concentre, pedindo licença para sua travessia. Em seguida, pegue o livro e abra em qualquer página mais ou menos no meio dele. Inicie sua leitura em voz alta e, sem ter a mínima preocupação em entender o que está lendo. simplesmente inicie a leitura pronunciando, da melhor maneira possível, cada palavra lida. E vá seguindo e virando as páginas tentando entender o ritmo da leitura, pois é um livro que possui um fluxo próprio se o leitor seguir seu ritmo. Quando já estiver passando das primeiras dez páginas, pare a leitura e feche o livro. No dia seguinte, com tempo e paciência, abra o livro no capítulo inicial e comece a ler:
– “Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não. Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu – ; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram.”
Aí peguei gosto com o aprendizado da poeta doceira de Goyás Velho e demorei uns dois meses mergulhado naquela travessia de sustos, sabores e saberes. Quando perdia o ritmo, parava tudo, respirava fundo e voltava umas páginas lá de trás.
Recentemente, recebi do escritor César Manzolillo, colunista do portal ArteCult, um pequeno livro-guia apresentando um “roteiro de leitura” para os que desejam se aventurar na travessia do Grande Sertão. A autora do roteiro é a professora de Teoria Literária Kathrin Holzermayr Rosenfield, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; e a publicação é da Editora Ática. Logo na sua apresentação, o roteiro nos dá dicas importantes. Diz a autora:
“As sugestões deste livro conduzir-nos-ão em duas direções. Por um lado, elas permitirão ao leitor que não dispões ainda de uma ampla experiência literária, perceber a complexidade do trabalho poético posto em jogo pelo texto: jogos com categorias básicas – tempo, espeço, personagem –; com gêneros – épico, lírico, dramático -, com procedimentos – poesia e prosa -; com pontos de referências – personagem, narrador, autor, interlocutor-leitor -; com discursos heterogêneos – dizeres cotidianos, literários, teológicos, filosóficos, científicos etc.”
A professora preparou seu livro-roteiro baseada em pesquisas que mostram que “a travessia” se desdobra em vários processos. O livro-guia é a soma deles.
A aventura de Riobaldo, personagem contador, aparece, no entanto, fragmentada e distorcida, a tal ponto que “muitos leitores abandonam a leitura nas primeiras páginas”. O roteiro é denso e tem serventia para aqueles que já fizeram a “travessia” pelo menos uma vez, pois é comum leitores, leitoras e estudiosos refazerem suas leituras por duas ou mais vezes.
Mas não foi só Cora Coralina que me mostrou caminhos para a leitura da obra Roseana. Quando editei, por vários anos, em Brasília a revista BRIC A BRAC, com poesias inventivas, conhecimentos culturais e visuais, tive a oportunidade de entrevistar, em 1986, o também poeta pantaneiro Manoel de Barros. Óbvio que a presença do autor de Grande sertão: veredas também foi destaque dessa entrevista.
Manoel contou, com riquezas de mimos, os meses que conviveu com Rosa, quando este era adido da fronteira do Mato Grosso do Sul com países latinos. Manoel diz que Rosa queria saber de detalhes da linguagem do Pantanal:
– Rosa se aplica nas palavras com fundo indagar. Fica imaginando. Recorre a outras línguas de raízes tupis. Faz desenho de letras no caderno. Excogita. Disse para ele que o Pantanal quase teve um dialeto. Muitos anos os moradores ficaram isolados. Isso faz uma ilha linguística. Palavras sofriam erosões morfológicas ou semânticas. Outras foram criadas. E algumas sumiam por serem de cidade.
– Por exemplo, Manoel, uma palavra que sofreu erosão…
– Pode me dizer alguma expressão que ficou quase dialeto, alguma invenção?
Manoel dá uma de professor em cima de Rosa:
– O verbo clarear, por exemplo. Aqui ele tomou um outro significado. Assim: clarear de uma pessoa é fugir dela. A expressão vem de quando, nas corridas de cavalo, aquele que vai na frente, avança mais de um corpo, o cavalo faz luz dele para o outro. Quer dizer, “clareia” do outro. Para dizer que deixou a namorada, se fala: “clareei dela”.
A aula de Manoel de Barros para o Rosa sobre a linguagem do Pantanal termina com um exemplo poético surpreendente da língua de invenção:
– Tenho um amigo, Neto Botelho, que sabe das coisas, que informa que o nosso monumento, ainda inacabado, de folklore, é o cavalo. Cavalo é nosso enfeite, nosso instrumento de trabalho, nosso meio de transporte, nosso amigo, nossa arte. Com ele se ganha o pão, com ele se vai namorar. Ofereço ao Rosa um poema do Neto Botelho sobre o cavalo que teve:
“Tive um cavalo ruano
De nome Balança-os-Cachos
De cheirar e mandar guardar
Cavalo de confiança
Pegava em 40 metros
Galardão de cola e ancas
Um ente desanormal
Coisa de prateleira
Ventava como o fedor
Não foi de ensebar serviços
Não teve queda pra cangas
Pastor de primeira instância
Cavalo de putear delegado
Livre como as vertentes
Podia até lavar louças
Leve de patas que era
Só faltava ir ao cinema.
E prossegue Manoel:
– Rosa tomou nota. Gravou na caderneta. Anos atrás, fui ver, na Casa de Rui Barbosa, uma exposição dos cadernos do Rosa. Mas lá não encontrei o poema.
O poema ofertado ao Rosa por Manoel de Barros jamais permaneceria preso em cadernetas. Ele está solto nos Sertões e nas Veredas. Nas “Galáxias”, nos “Becos”, nos Cavalos, nos livros de invenções e invencionices. Nos Machados, nos Joões e nas Adélias. São tantos os “roteiros de leitura” que vale a pena escolher o seu e fazer a fantástica “Travessia”.
LUIS TURIBA
*Luís Turiba é jornalista aposentado, poeta com 3 livros editados pela 7 Letras do RJ, e outros 8 livros no campo da poesia independente e/ou marginal.É editor da revista anual de invenções poéticas Bric a Brac, criada em Brasília, em 1985. A Bric a Brac 8, última edição, saiu em 2022, uma celebração ao centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 e ainda pode ser encontrada nas melhores livrarias de Ramos
Luis Turiba, em sua prosa poético-jornalística, revela universos singulares, traça e tece saberes de três nomes significativos da nossa Literatura, imprescindiveis a nós, poetas e escritores.
Magistralmente alinhava histórias e memórias, apresentando e desmitificando os sertões- intransferiveis, de dentro, – sob olhar contemporâneo da nossa experiência diante do filme na grande tela da sétima arte: celebração ro se a na por to dos os po ros.
Parabéns, Luis, por mais esta matéria de aguçar sentidos, verdadeiro convite à travessia.
Bj, evoé,
Rose Araujo ✍️
Mais um texto saboroso do grande Turiba! E Grande Sertão, até hoje, nosso maior livro, com a ajuda do Turiba, com certeza, ganhou mais alguns leitores. Parabéns!
Salve, Turiba, que a propósito do filme Grande Sertão, dirigido por Guel Arraes, nos leva a passear com Rosa e sua “linguagem de invenção”, e nos convoca a uma autorreflexão sobre “fazer ou não fazer a travessia?”. Turiba conta que fez e encontrou em Grande Sertão: Veredas uma travessia de “sustos, sabores e saberes”. Generosamente, compartilha suas histórias de encontros e andanças pelos acontecimentos deste nosso país, cheio de sertões! Fiquei especialmente emocionada com sua conversa com Cora, então com quase noventa anos, que nos inspira com sua vitalidade e sabedoria. Quando a gente engravida das pessoas, elas não morrem!