Livros que nascem de filmes

Antonio Más PPF

“A gente só pode falar do que conhece. É claro que se pode pesquisar, se aprofundar em qualquer assunto, mas a arte é reveladora e acaba por evidenciar o que o criador carrega em sua bagagem.”

 

Mineiro de Nepomuceno, Marco Simas é escritor, roteirista e professor de cinema. Realizou vários filmes de curta-metragem premiados, entre eles, a transformação de um conto de Roberto Drummond, “Com o andar de Robert Taylor”. Foi um dos colaboradores do blog e da revista literária Bagatelas!, publicação de escritores alimentada pelo boom da literatura na internet nos anos 2000.
É autor do romance policial “Bárbara não quer perdão”, do romance “Último Trem”, e do primeiro volume de uma trilogia, “Aqui estamos nós – Identidade”.
Casado e pai de duas filhas, se diz mergulhado no universo feminino e feminista, algo que marca profundamente suas obras.

 

Conte como começou seu interesse pela produção literária.

Desde que me lembro, ouvir e contar histórias eram meus passatempos prediletos. Meus pais diziam que, ao ser perguntado sobre qualquer coisa, nunca respondia diretamente “porque sim” ou “porque não”. Sempre havia um envolvimento, um exagero aqui, uma mentirinha inocente ali, algo que ilustrasse a imaginação.

Minha mãe tinha uma biblioteca bastante variada, mas era trancada, e os livros, encapados. Não dava para ver as lombadas. Aquilo aguçou a curiosidade, principalmente quando comentavam sobre um ou outro livro. Então, assim que aprendi a ler, os quadrinhos entraram em minha vida.

Até que, um dia, talvez com doze, treze anos, burlei a segurança e consegui um livro da estante. Uma incógnita. O título era Veneno, não consigo lembrar o nome da autora, e nem encontrar nos sebos ou livrarias. Fui intoxicado pela história de um escritor marginal, que vivia com uma prostituta. Percebi ali que queria contar histórias verdadeiras, de gente possível, sem poderes mágicos, com questões cotidianas. A partir daí, passei a escrever tudo o que me vinha à cabeça, fosse uma redação para o colégio, fosse cartinha às namoradas, ou simplesmente “catilografando” na velha máquina de escrever. Tive um grande incentivo de uma professora de língua portuguess, no colégio. Pediu uma redação com o perfil de uma amiga. Como precocemente dirigia a velha Kombi do meu pai, e tinha por ela uma grande paixão, perfilei a chamada ximbica como se fosse uma linda amiga. Os elogios de dona Neide foram definitivos.

Mas aí, fui ver um filme, no cine Pathé, em Belo Horizonte (MG), Noite Americana, de François Truffaut…

 

E como a experiência com o cinema colaborou para o despertar dessa paixão?

Então, contagiado pelas imagens do filme, pelo trabalho do diretor, do filme e o retratado em cena, passei os vinte e tantos anos seguintes respirando celulose, impregnado pela magia e o poder de sedução do cinema. Sempre me identifiquei com os filmes saídos dos movimentos de libertação da imagem: a Nouvelle Vague francesa, o Neorrealismo italiano, o Cinema Novo brasileiro e o Novo Cinema alemão. Enquanto estudava e trabalhava em produtoras, na TVE, hoje TV Brasil, MultiRio, Universidade Estácio de Sá e como “frila”, escrevi roteiros e dirigi meus curtas, e ainda trabalhei em filmes de longa-metragem de outros diretores. Mas a atividade cinema se transformou radicalmente, se desgastou como arte, priorizando a tecnologia, com altos custos, o vício de mercado, a necessidade urgente do sucesso. Tudo isso vejo como viés da televisão, a arte do patrocinador. O tipo de filme que me atraiu agora passa em uma sessão à tarde, em um único cinema de bairro, nem chega aos shoppings.

Mas, sem dúvida, ter feito filmes, escrito roteiros e, principalmente, assistido a uma média de noventa a cem filmes por ano, durante este tempo, deu o que muito se diz sobre meus livros: o poder visual da escrita, a agilidade das cenas e a consistência das personagens.

Quando, convidado para ministrar curso de escrita criativa, reforço muito a importância de fazer o leitor ver o que está lendo. Mas, ao contrário do filme, é preciso deixar margem para que o leitor se transforme em coautor, que sua imaginação complete a do autor.

 

Você sofreu influência de algum escritor?

Como sempre fui um leitor voraz – há trinta e dois anos não durmo sem ter lido pelo menos uma página de um livro, comecei a escrever coisas que gostaria de ler, alimentado por muitos escritores, mestres como Thomas Mann, William Faulkner, Rubem Fonseca, Albert Camus, John Dunning, Dashiell Hammett, Raymond Chandler, Patrícia Highsmith, Dennis Lehanne, Godofredo de Oliveira Neto, Lygia Fagundes Telles, Ricardo Gondim, Ken Follet, Robert Ludrum, Paul Auster, Patrícia Mello… são tantos outros!

Gosto de textos mais populares que levem temas sociais tensos com a pegada dos policiais e a imagética do cinema. A ideia é entretenimento com reflexão. É uma aposta.

 

2 - capa barbara (1)

O primeiro livro, um romance policial, escrito sob pseudônimo

Você é casado e tem duas filhas. Viver mergulhado nesse universo feminino, de alguma forma, tem impacto sobre sua obra?

Total impacto. As mulheres são as protagonistas de minhas histórias, como são em casa. Inevitável. Venho de uma família mineira, do interior, minha mãe teve oito irmãs, todas mulheres fortes. Gisela, mãe de minhas duas filhas, também vem de uma linhagem matriarcal. Ai de mim se não apontar os holofotes para elas, as mulheres!

Na real, a gente só pode falar do que conhece. É claro que se pode pesquisar, se aprofundar em qualquer assunto, mas a arte é reveladora e acaba por evidenciar o que o criador carrega em sua bagagem. Não é possível, ao meu modo de ver, fingir e mentir o tempo todo. Em alguma personagem, numa fala, numa situação, a verdade do autor será exposta. Cada criador lida com a vivência que foi possível, transmite o que consegue elaborar.

Além disso, por conta da trilogia que terminei recentemente, cujo primeiro volume já está publicado, o universo feminino me envolveu, definitivamente. O feminismo reencontrou sua força na nova geração, e com as redes sociais, coisa muito nova pra todos nós, tomou dimensão inimaginável e muito bem-vinda. Vivo isso intensamente, neste momento totalmente diferente do que era para as gerações anteriores, na interação com minhas filhas, Natalia, de 19, e Luisa de 16 anos, ativas nessa batalha diária na manutenção da dignidade e liberdade das mulheres. O protagonismo é delas mas, nós, homens, temos uma responsabilidade histórica e o dever social de também lutar contra as desigualdades, o preconceito, e o famigerado machismo.

 

Fale um pouco sobre seus livros.

A ideia de publicar surgiu em 2007. Com muitos roteiros para filmes de longa-metragem na gaveta, e a dificuldade em conseguir os recursos para filmar, comecei a desenvolver os textos em um caminho inverso, do filme para o livro. Disso surgiu o primeiro esboço de um pulp fiction. Um amigo leu e disse: “isso já é um livro”.

Empolgado, trabalhei mais o texto naquele fio delgado entre o que é literatura e o que é um texto para futura imagem. Nasceu então “Bárbara não quer perdão”, adotado e apoiado por uma moçada que promovia, naquele momento, uma revolução literária na internet. Precursores e parceiros como o Raphael Vidal, ex-editor e um agitador cultural, e o Flávio Mello, ex-livreiro e um disseminador da literatura. Eles foram os criadores de um site e de uma revista, esporádica, com o título de Bagatelas!, onde jovens autores publicavam contos e poemas. Pioneirismo na web.

Para sondar e conhecer o mercado, este livro foi publicado de forma independente. Com todas as dificuldades na distribuição e divulgação, posso afirmar que se trata de um sucesso, pois toda a primeira edição de 1.500 exemplares se esgotou em menos de dois anos.

 

Capa Último Trem

O segundo livro se passa na Era Collor

Do que trata o “Último Trem”?

Em 2010, a Casa Editorial Vieira & Lent publicou o “Último Trem”, também originado de um roteiro para filme de longa-metragem. A história se passa nos anos noventa, era Collor, quando houve o confisco da poupança e a reforma que provocou o fechamento de cinemas e a derrocada da produção cinematográfica no país. Como protagonistas, Miguel, um velho projecionista de um cinema que é fechado, e Angelina, uma jovem diante das incertezas de seu futuro.

Foi também o primeiro romance “transmídia”, lançado simultaneamente em várias plataformas: impresso, e-book e mobilebook.

A Secretaria de Educação do município do Rio de Janeiro adotou o livro para o Ensino de Jovens e Adultos e para os cineclubes que funcionam em várias escolas. Alguns professores também o escolheram para trabalhar literatura em suas escolas.

 

E por que você decidiu escrever uma trilogia?

No caso do “Aqui estamos nós – Identidade”, o tema chegou a mim pelas vias de sempre, o cinema. Fui contratado por uma produtora para desenvolver o primeiro tratamento de um roteiro sobre a vida da Maria da Penha, a da lei. Li o livro em que ela narra sua incrível história, pesquisei e conversei com muitas mulheres. Por quase um ano, fiquei mergulhado nesse repugnante estado de violência contra as mulheres.

Ao entregar o roteiro tinha um fio condutor, relatos verdadeiros, emocionantes de sobreviventes, martírios e vidas desperdiçadas. O tema se impôs e a escrita, que nunca é simples, exigiu três livros para que toda a história fosse contada.

O primeiro volume da trilogia foi publicado pela Chiado Editora. Conta a trajetória de Ane, sua luta contra a cultura do machismo, do abuso, do feminicídio que chega a níveis epidemiológicos.

Estão previstas, ainda para este ano, a publicação dos outros dois volumes, “Resistência” e “Confirmação”.

 

Como você escolhe os temas para suas obras?

Está é uma pergunta muito repetida por alunos em cursos de escrita criativa. A dúvida transita entre escrever para o mercado e ter chance de publicar, ou arriscar naquele texto pessoal subjetivo, muitas vezes íntimo…

Digo sempre que depende da capacidade e proposta de cada um. Como disse antes, a gente só consegue falar bem do que conhece bem, assim como um professor só pode ensinar o que sabe. E a inspiração, ou a musa, nem sempre estão disponíveis. O que quero dizer é que talvez o tema seja a escolha mais cara ao escritor. Não pode ser pela tendência, moda ou aquilo que tem dado certo no mercado. O autor sabe que escolheu o tema certo quando consegue desenvolver, verdadeiramente, um bom texto.

 

identidade final

O primeiro volume de uma trilogia sobre violência contra a mulher

Quais são os maiores desafios para um escritor?

São muitos os desafios, não só do escritor, mas de todos que produzem arte e cultura, isso no mundo todo. O tempo é um desses reptos. O amadurecimento intelectual e, sem dúvida, o pessoal, são diferentes para cada um, mas fundamentais na criação consistente de algo que valha a pena. O tempo físico também nos desafia. Cada vez é menos possível se dedicar ao compromisso necessário à criação. Falo de conhecimento, pesquisa e da produção em si, que consomem não só na realização como também na elaboração, no pensar, no imaginar. Quantos já ouviram que ficar sentado olhando o céu não dá camisa a ninguém?

Os desafios mais terrenos, específico aos escritores, e mais localizado no Brasil, passam pela conquista de leitores em um povo que não é estimulado a ler nem pela família nem pela escola. Pelas editoras que não investem nada na prata da casa, preferindo o que já vem divulgado, ou com verbas enormes de promoção. Passa, ainda, pelas livrarias que vendem o espaço nas vitrines principais, que não formam livreiros e que mal conhecem os autores nacionais. Um exemplo desta dificuldade é a separação de estantes, nas livrarias, como se fosse gênero. Cravam lá literatura brasileira, muitas vezes, ao lado da estrangeira. É preciso convidar o leitor a procurar pelo seu gênero preferido: ação, policial, romance, ficção científica etc. Lembro que Villa-Lobos ficava uma arara quando diziam ser ele um compositor brasileiro. Era um brasileiro, mas um compositor universal como qualquer outro.

É preciso fazer justiça a alguns programas de governo, nos três níveis, que perseveram na tentativa de levar a leitura aos recônditos desse imenso território.

 

E quais são os seus próximos projetos?

Confesso que, além de mineiro, tenho aquele sentimento de que não é bom falar do que está por vir. Tenho trabalhado em textos que dão continuidade à história da Bárbara e, ao mesmo tempo, em transformar estas histórias em série e quadrinhos. Nos intervalos, pesquiso sobre o século XVIII, com a possibilidade de investir em um romance histórico.

Enquanto isso, levo adiante, aqui e ali, a tentativa de contribuir para a disseminação do prazer da leitura, com o mote: “Toda vez que se abre um livro, um mundo novo se revela”.

 

 

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Author

Jornalista, roteirista, mãe, poeta, editora, escrivinhadora, atriz. Mulher. Sou filha da PUC-Rio, formada em Comunicação Social com habilitação em jornalismo. Trabalhei em revistas sobre meio ambiente e educação. Fui parar na TV na produção do Globo Ecologia e logo estava participando da criação do Canal Futura, onde fiquei por mais de 7 anos. Trabalho na MultiRio, uma produtora de multimeios educativos da prefeitura do Rio de Janeiro, há 10 anos, atuando como roteirista e editora. Colaborei para os sites Opinião e Notícia e para o ArteCult escrevendo sobre Educação, Cultura, Cidadania, Meio Ambiente e fazendo várias entrevistas. Escrevi também para a Revista do Senac Educação Ambiental por cinco anos. Me formei em teatro pelas mãos de Bia Lessa. Fui dirigida por Alberto Renault e Roberto Bontempo. Conheci muita gente talentosa. Aprendi com muita gente boa. Fiz cursos livres de canto, de dança flamenca, de locução de rádio e de roteiro para TV e cinema. Sou uma leitora contumaz. E ótima ouvinte. Gosto de observar a vida e de dar pitaco em alguns assuntos os mais variados. Mãe de dois adolescentes, continuo aprendendo sobre a vida todos os dias. O humano me encanta. E me aterroriza também!